Ingmar Bergman – No verão em que completei dezesseis anos fui mandado para a Alemanha como estudante de intercâmbio. Isso significava que permaneceria seis semanas na casa de uma família alemã, junto com um garoto da minha idade. Quando suas férias de verão começassem, ele me acompanharia à Suécia, onde ficaria durante o mesmo período.
Fui recebido pela família de um pastor em Thüringen, numa pequena localidade que se chamava Haina, entre Weimar e Eisenach. A aldeia ficava em um vale e era cercada de belas construções. Entre as casas insinuava-se um riacho indolente e turvo. Na aldeia havia uma igreja exageradamente grande, uma praça com um monumento de guerra e uma estação de ônibus.
A família era grande: seis filhos e três filhas, o pastor e sua mulher, além de uma parenta mais velha, que era diaconisa ou freira auxiliar. Ela tinha bigode, suava a cântaros e dirigia a família com mão de ferro. O pai era um homem esbelto, com barba de bode, olhos azuis carinhosos, chumaços de algodão nos ouvidos e uma boina preta bem puxada sobre a testa. Era lido e musical, tocava vários instrumentos e cantava com voz suave de tenor. A mulher era gorda, maltratada e submissa, ficava a maior parte do tempo na cozinha e me dava tapinhas tímidos na bochecha. Talvez estivesse pedindo desculpas pelo fato de a casa ser tão pobre.
Meu companheiro, Hannes, parecia recortado de um jornal de propaganda nacional-socialista: louro, esbelto e de olhos azuis, com um sorriso saudável, orelhas muito pequenas e uma barba incipiente. Nós nos esforçávamos para entender um ao outro, mas não era fácil. Meu alemão era o resultado do estudo de gramática daquele tempo: não estava no plano do curso que a língua teria de ser falada.
Os dias eram tristes. Às sete horas, as crianças iam para a escola e eu era deixado sozinho com os mais velhos. Lia, perambulava, sentia saudade de casa. De preferência ficava no gabinete de trabalho do pastor ou o acompanhava nas visitas às famílias. Ele dirigia uma velha banheira de capota alta, levantando poeira pelas estradas, no calor imóvel; por toda parte desfilavam gansos gordos e zangados.
Perguntei ao pastor se devia estender a mão e dizer Heil Hitler como todas as outras pessoas. Ele respondeu: “Meu caro Ingmar, isso seria considerado mais do que mera educação”. Levantei a mão e disse Heil Hitler, foi engraçado.
Depois, Hannes sugeriu que eu o acompanhasse à escola e às aulas. Dada a escolha entre a peste e a cólera, escolhi a escola, que ficava numa localidade maior, a alguns quilômetros, de bicicleta, de Haina. Fui recebido com efusiva cordialidade e me sentei ao lado de Hannes. A sala de aula era espaçosa, maltratada e fria pela umidade, apesar do calor de verão do lado de fora da alta janela. O assunto era religião, mas Mein Kampf [Minha Luta], de Hitler, estava sobre as carteiras. O professor leu algo de um jornal que se chamava Der Stürmer. Só me lembro de uma frase, que me pareceu estranha. Ele repetia insistentemente, em tom objetivo: “envenenado pelos Judeus”. Perguntei mais tarde de que se tratava. Hannes riu: “Ingmar, tudo isso não é para estrangeiros”.
No domingo a família ia ao culto solene. O sermão do pastor era surpreendente: ele não falava baseado nos evangelhos, e sim no Mein Kampf. Depois da igreja havia o café no salão da paróquia. Muitos usavam uniformes e eu tive numerosas oportunidades de levantar a mão e dizer Heil Hitler.
Todos os jovens da casa pertenciam a alguma organização, os meninos à Juventude Hitlerista, as meninas à Juventude Feminina Alemã. À tarde fazia-se exercício com espada em vez de revólver ou se praticava esporte nas quadras; à noite assistíamos a conferências com exibição de filmes ou cantávamos e dançávamos. Com dificuldade nos banhávamos no riacho, cujo fundo era puro lodo e cuja água cheirava mal. Os panos de menstruação das moças, tecidos de algodão grosso, estavam pendurados na lavanderia primitiva, sem água quente ou outras comodidades.
Era dia de parada em Weimar, uma gigantesca marcha com Hitler à frente. Na casa paroquial havia pressa, camisas eram lavadas e passadas, botas e cinturões lustrados, os jovens partiram ao amanhecer. Eu e a família do pastor seguiríamos depois, no carro. A família mencionava com certa ênfase que havia conseguido lugares perto da tribuna de honra. Alguém brincou dizendo que minha presença era o motivo da localização vantajosa.
Nessa manhã irrequieta, o telefone tocou, era uma ligação de casa. Muito longe escutei a bonita voz de tia Anna, pois sua imensa riqueza lhe permitia fazer essa ligação tão cara. Ela nem sequer se incomodava em se apressar, só aos poucos chegava perto de seu objetivo principal. Mencionou uma amiga que vivia em Weimar e era casada com um diretor de banco: ela soubera por intermédio de minha mãe que eu me encontrava perto e logo telefonara à sua amiga sugerindo que eu fosse visitar sua família. Depois, tia Anna falou com o pastor em alemão fluente, voltou a falar comigo e mostrou seu contentamento em saber que eu me encontraria com sua amiga e suas lindas crianças.
Chegamos a Weimar por volta do meio-dia. A parada e o discurso de Hitler começariam às três. A cidade fervilhava numa excitação festiva, com as pessoas passando pelas ruas em seus trajes domingueiros ou em uniformes. Por toda parte orquestras tocavam, as casas estavam cobertas de guirlandas de flores e bandeirolas. Os sinos das igrejas tocavam, tanto os sombrios tons protestantes como os alegres tons católicos. Um grande parque de diversões tinha surgido numa das velhas praças. No Opera House anunciava-se Rienzi, de Wagner, apresentação que seria seguida de fogos de artifício, à noite.
Eu e a família do pastor ficamos próximos à tribuna de honra. Enquanto esperávamos na soalheira pesada que anunciava um temporal, bebemos cerveja e comemos sanduíches de um embrulho engordurado que a mulher do pastor, durante a viagem, trouxera apertado contra o seu peito inchado.
Às três em ponto ouviu-se alguma coisa parecendo um furacão que se aproximava. O ruído surdo e amedrontador se espalhou pelas ruas e foi de encontro às paredes das casas. Lá longe, no prolongamento da praça, avançava devagar um cortejo de carros pretos abertos. O barulho cresceu e se sobrepôs aos trovões, que se desencadeavam; a chuva caiu como uma cortina transparente, enquanto os estrondos se precipitavam sobre o local da festa.
Ninguém se importou com a tempestade; toda a atenção, todo o êxtase, toda a glória se concentravam numa só figura. Ele estava de pé, imóvel, no enorme automóvel preto que contornou a praça lentamente. Voltou-se e olhou para todas aquelas pessoas possuídas, gritando e chorando. A chuva banhava seu rosto e o uniforme, que a água embebía, estava escuro. Aí ele saltou devagar, pisou o tapete vermelho e desfilou sozinho até a tribuna de honra. Seus seguidores se mantiveram a distância.
De repente, tudo ficou em silêncio, somente a chuva tamborilava nas pedras das ruas e nas balaustradas. O Führer falava. Foi um discurso curto. Não entendi muito, porém a voz era às vezes solene, às vezes burlona, os gestos sincronizados e bem ajustados. Quando o discurso acabou, todos gritaram seus Heil, o temporal cessou e a luz quente irrompeu por entre as formações de nuvens negro-azuladas. Uma enorme orquestra tocava e a parada surgiu das ruas laterais em direção à praça, passou pela tribuna de honra e, depois, em frente ao teatro e à catedral.
Eu nunca, jamais, tinha visto algo parecido com aquele arrebatamento, tal manifestação de força. Gritei como todos os outros, estendi a mão como todos os outros, bradei como todos os outros, amei como todos os outros.
Em nossas conversas noturnas, Hannes explicara a guerra da Abissínia, como fora importante que Mussolini finalmente cuidasse dos indígenas que viviam na escuridão e com mãos generosas lhes transmitisse a milenar cultura italiana. Tinha dito também que nós, lá longe na Escandinávia, não entendíamos como os judeus, após o colapso, tinham explorado o povo alemão. Esclareceu que os alemães construíram um baluarte contra o comunismo, que fora consequentemente sabotado pelos judeus, e afirmou que todos nós devíamos amar o homem que formara nosso destino comum, e com decisão nos unira para juntos sermos uma vontade, uma força, um povo.
No meu aniversário, ganhei um presente da família: uma fotografia de Hitler. Hannes pendurou-a sobre a minha cama para que “sempre tivesse esse homem diante dos olhos”, para que aprendesse a amá-lo da mesma forma que Hannes e a família Haid o amavam.
Eu o amei também. Durante muitos anos estive do lado de Hitler, alegrando-me com suas vitórias e me entristecendo com as derrotas.
Meu irmão foi um dos diretores e organizadores do partido nacional-socialista sueco; meu pai votou diversas vezes nos nacional-socialistas. Nosso professor de história tinha entusiasmo pela “velha Alemanha”, o professor de ginástica viajava todo verão para os encontros de oficiais na Baviera, alguns pastores da paróquia eram criptonazistas, amigos próximos da família expressavam forte simpatia pela “nova Alemanha”.
***
Quando as declarações das testemunhas dos campos de concentração me alcançaram, não compreendi e não aceitei o que meus olhos registravam. Como muitos outros, chamava as fotos de montagens propagandísticas mentirosas. Quando a verdade finalmente venceu minha resistência, fui tomado de desespero, e o desprezo por mim mesmo, que já era uma carga pesada, cresceu até os limites do insuportável. Não percebi senão muito mais tarde que apesar de tudo era inocente.
Como estudante de intercâmbio, não vacinado, despreparado, mergulhei de cabeça numa realidade reluzente de idealismo e culto ao herói. Além de tudo, estava entregue, indefeso, a uma agressividade que em grande parte coincidia com a minha. O brilho exterior me ofuscou. Não enxerguei o escuro.
Quando, no ano seguinte, com o fim da guerra, cheguei ao Teatro Municipal de Göteborg, havia um corte profundo e sangrento dividindo o foyer dos artistas. Lá estavam o locutor do cinejornal da UFA, os produtores de filmes de propaganda nacionalista e seus partidários incondicionais de sempre, de um lado. Do outro lado: os judeus, os seguidores de Segerstedt, atores com amigos noruegueses e dinamarqueses. Todos estavam lá sentados, mastigando seus sanduíches trazidos de casa, tomando a repugnante bebida da cantina. O ódio era visível, palpável.
Quando soava a campainha, entrava em cena e se apresentava a melhor companhia de teatro do país.
Eu me calava sobre os meus extravios e meu desespero. Uma estranha resolução amadurecia devagar. Política nunca mais! Naturalmente, deveria ter tomado uma decisão bem diferente.
Fonte da matéria: Bergman e o nazismo – https://palavrasdecinema.com/2022/09/04/bergman-nazismo/
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