Observatório da Defesa e Soberania – O Brasil é um país baleia. Países baleia são aqueles que reúnem grandes populações em uma longa extensão territorial. Esses atributos geográficos estão combinados com profundas desigualdades internas e uma economia dependente, o que torna o país “lento” para exercer liderança estratégica, como uma baleia. Continuemos nas metáforas marítimas. Entre os internacionalistas, é comum que o seguinte dilema se apresente: o Brasil deve ser o rabo do tubarão ou a cabeça da sardinha? Aqueles que defendem que deve ser o “rabo”, advogam pela adesão aos projetos das grandes potências, mesmo que de forma subordinada. Aqueles que defendem a “cabeça”, entendem que o Brasil pode liderar os países com menor peso geopolítico em negociações coletivas, especialmente na área comercial, sendo possível se relacionar com o centro em melhores termos.
“Quem sempre espera na pura espera, vive um tempo de espera vã.
Por isso, enquanto te espero trabalharei os campos e conversarei com os homens”.
Canção Óbvia – Paulo Freire
Aqui, propomos que a tarefa dos lutadores e das lutadoras populares é, se necessário, inverter a corrente das marés. Por isso, ao discutir propostas para um governo de composição popular, partiremos dessa utopia.
Como navegadores, comecemos sentindo o ritmo das ondas. Os mares andam revoltos, numa combinação de pandemia, guerra e governo Bolsonaro. Mas essa é a superfície. No fundo do mar, placas tectônicas se movem na disputa pela hegemonia global entre os EUA e a China. Se no longo prazo essas mudanças são animadoras, no curto prazo, tendem a deixar ou deixam o mar revolto. Assim, um novo governo Lula não encontrará um cenário global similar ao que viveu, e essas eleições não se desenvolvem com a aparente normalidade de outros tempos. Abaixo propomos temas- bússolas para a travessia.
Nossa primeira pergunta sempre tem que ser: o que queremos defender? Fronteiras? Ganhos da indústria farmacêutica? Uma retórica sobre a Amazônia abstrata, que percebe como inimigos ONGs, mas não grandes mineradoras? Há diferentes entendimentos sobre quais são os interesses nacionais que devem ser objeto de proteção. Os movimentos populares trabalham com uma percepção mais próxima da segurança humana, pensando a soberania alimentar, energética, informacional; em suma, uma vida boa para todos como a principal questão a ser defendida pelo país. Os movimentos também são protagonistas na preocupação com os recursos estratégicos, especialmente o meio ambiente, um dos principais interesses internacionais no Brasil para a acumulação de mais valia global. Levando em conta a maneira como as guerras não convencionais do presente são travadas (que alguns chamam de guerras híbridas), o principal objeto de defesa deve ser as fontes de percepção/interpretação do mundo que forjam a vontade popular (não apenas durante o processo decisório). Sem liberdade para pensar, formular e decidir, inclusive sobre a forma de manejo ecológico dos recursos estratégicos (não apenas naturais, como também culturais), não existe autonomia.
Do que defender?
Qualquer pequena ação doméstica que altere a posição do Brasil na ordem hierárquica internacional gera reação. Pensar na libertação nacional dos povos em Estados de periferia sem pensar como romper as relações de exploração do centro com a periferia é ilusão. Os ambientes doméstico e internacional são intimamente conectados. Nós, na base da pirâmide (e sem condições nem para viajar de ônibus por causa do preço da gasolina) não percebemos isso, mas a classe dominante, mesmo em países periféricos, tem conexões globais. No caso dos latino-americanos, é preciso observar atentamente as movimentações dos EUA. A essência da manutenção da hegemonia estadunidense não está no seu enorme aparato bélico, muito superior aos demais países do globo reunidos.
Está na capacidade de inspirar desejos, de emular e controlar vontades. Todos visualizam aquelas casas brancas com quintais verdinhos e churrascos e pensam: poxa, deve ser bacana ter quintal! Na realidade, sabemos que a grama é de plástico e que não serve nem como casa para minhocas.
Por isso, a primeira capacidade que precisamos buscar para sermos um país soberano é a de autonomia no pensar. É necessário desconfiar (MUITO!) sobre o que nos apresentam enquanto ameaças para o Brasil. Por exemplo, somos um povo formado por migrantes que vieram voluntariamente ou escravizados. Entender a migração como uma ameaça é desconhecer a formação social do povo brasileiro. Segurança e insegurança são, assim, sentimentos relacionados. Em outros termos, o que eu percebo como ameaça pode não ser assim identificado por outros. Quem detém a hegemonia na formulação das ideias detém também a capacidade de escolher o que deve ser entendido enquanto uma ameaça. Isso impede que os países de periferia identifiquem o que de fato ameaça o bem-estar dos seus povos, e não apenas seus Estados. Na América Latina, o narcotráfico (e outros crimes transnacionais) é apresentado como a maior ameaça ao bem-estar dos povos. No globo em geral, esse lugar cabe ao terrorismo. Além disso, seguem no imaginário ameaças tradicionais, mas pouco realistas, como a fragmentação territorial, que justifica a manutenção de organismos militares em regiões de fronteira.
É preciso identificar com o povo aquilo que ele entende enquanto ameaça. Constataremos que muitas questões, como falta de saúde, alimentação ou mesmo segurança, não tem nas armas uma resolução.
Como se defende?
1. Autodeterminação dos povos. Construir um mundo de paz não significa ausência de conflitos, mas que estes deixem de ser mediados por meio do uso (ou ameaça de uso) da força. Mesmo sabendo que um mundo de paz é impossível enquanto o imperialismo – entendido como a forma atual do capitalismo – perdurar, a paz entre os povos deve ser construída desde já. A autodeterminação dos povos é ponto crucial, pois é ela que confere aos povos o direito de autogoverno e de decidir livremente sobre a sua situação política num mundo que é hierarquizado. No caso dos países de passado colonial, ela é particularmente relevante, pois em nome de uma nação abstrata alimentada pela elite interna dependente, a decisão popular é deixada em segundo plano. A autodeterminação não pode ser negociada inclusive em situações que, hipoteticamente, ameacem os direitos humanos, como é alegado no caso da Venezuela. Situações de alto risco humanitário são causadas pelo capitalismo e impossíveis de serem resolvidas pela via militar que, ao contrário, as agrava. Isso se escancara em momentos de guerra, como vemos no tratamento diferenciado e racista que refugiados da Ucrânia recebem diante de vários povos africanos ou mulçumanos na Europa.
2. Multilateralismo. Os princípios inscritos na carta de 1945 da ONU seguem importantes. Entretanto, a organização em si se mostra cada vez mais débil para cumprir as funções a ela inicialmente atribuídas, e funcionais aos interesses hegemônicos. Na Ucrânia, a ONU se manifestou favoravelmente à OTAN e se inviabilizou enquanto instância de diálogo para a resolução deste conflito. Quais as implicações programáticas dessa avaliação sobre a ONU? Segue pertinente a reivindicação histórica brasileira de reorganização dos mecanismos internacionais. O multilateralismo deve buscar quebrar os monopólios em cinco áreas, como ensina o professor Samir Amin: ciência e tecnologia, finanças, controle sobre recursos naturais, armas e comunicações. Segue pertinente a necessidade de aderirmos àquelas alianças que oferecem boas perspectivas para mudanças globais, como os BRICS; e segue fundamental nos engajarmos na construção de mecanismos na América do Sul, como a Unasul. Mas essas iniciativas encontrarão um cenário mais difícil pós-guerra na Ucrânia e pandemia, que fortalecem sentimentos chauvinistas nos Estados e uma busca continuada por autossuficiência em todos os campos. O surgimento de novas variantes do vírus no mundo serve de lição: problemas globais precisam de soluções globais. Nos mecanismos multilaterais, deve-se priorizar a circulação de pessoas ou de possibilidades de melhorias na vida dessas pessoas, e não de mercadorias. Por outro lado, a crise da ONU deve suscitar outras reflexões. Vale mesmo a pena se engajar em missões como a Minustah, no Haiti, em troca de um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU? Faz sentido lutar por um banquinho numa ordem global que implode e que nós mesmos queremos implodir? Por que as organizações progressistas do mundo inteiro não pedem o fim da OTAN, uma aliança militar ofensiva? Mais do que reformular o que já existe, é preciso forjar instituições que expressem os interesses dos povos (e também dos Estados) periféricos.
3. Desmilitarizar a política de defesa e de segurança pública. Interna e externamente, é preciso desmilitarizar! O espaço e a Antártida devem ser mantidos livres de armas. É fundamental limitar gastos com armas (sim, ainda mais em tempos de guerra!) e construir ou fortalecer mecanismos para a erradicação de armas químicas, biológicas e nucleares, incentivando ações como a de desminagem. Ter uma bomba nuclear não tornará o Brasil um país mais seguro; pelo contrário, tornaria toda a América Latina um continente mais inseguro. O dilema da segurança é que quando um país compra armas, seus vizinhos também as compram, pois se sentem inseguros quanto às intenções do primeiro. O resultado final são muitos países mais armados em geral, e também muito mais inseguros. Quebrar o dilema da segurança implica em, diante da escolha de investir recursos em armas ou em medidas que melhorem a vida do povo, como água e educação, escolher o segundo, inclusive estrategicamente. Voltaremos a esse ponto. Desmilitarizar implica em muito mais que tirar os 8 mil militares do Executivo. É preciso desmilitarizar todo o Estado, e principalmente a sociedade. Isso não significa deixar de ter um sistema de defesa ou desarmar o país. Implica em pensar a política de defesa de um país de periferia de maneira desmilitarizada, voltada para a construção da paz e com forte componente civil.
4. Construir o controle popular sobre os instrumentos de violência. O Brasil não é parte ativa de nenhum conflito internacional (embora Bolsonaro tenha tentado bastante) e desenhou suas fronteiras com poucas guerras. Só que essa paz em nível internacional convive com um país recordista em violência interna. Para o destinatário central da bala (o corpo negro jovem, masculino e morador da periferia das grandes cidades) não faz muita diferença quem deu o tiro. Por isso, não é suficiente falar em controle civil sobre as forças armadas (FFAA), mesmo nas suas concepções mais avançadas, que tratam do controle também sobre o que ocorre dentro dos quartéis. Ter um ministro civil à frente do Ministério da Defesa é o mínimo, assim como um corpo burocrático civil educado para a democratização da política de defesa; e não nos esqueçamos de que as polícias militares estão hierarquicamente subordinadas às FFAA. O controle popular diz respeito à construção de mecanismos de participação popular sobre a política pública, algo fundamental em democracias. E o controle deve ocorrer sobre os instrumentos de violência: armas (produção, circulação e venda) e instituições (FFAA, polícias, etc).
5. Separar rigorosamente defesa e segurança. Se na ponta da bala a percepção institucional é a mesma, a formulação e a gestão das duas áreas precisam ser rigorosamente distintas. A segurança pública que, ao menos em teoria, deveria proteger a vida antes da propriedade, lida no pior dos casos com cidadãos em conflito com a lei. Nesses casos, cabe a prisão e julgamento pelas leis nacionais. A defesa nacional lida com o potencial inimigo externo, cujo destino é, em última instância, a eliminação. Policializar as forças armadas e militarizar as polícias é a proposta dos EUA para a América Latina e a prática corrente no Brasil desde sempre, quando o inimigo principal era (e continua sendo) identificado dentro das fronteiras nacionais. Assim, é preciso separar e diferenciar a segurança cidadã da defesa nacional, inclusive nos documentos orientadores nacionais, a começar pela Constituição, que permite o emprego interno, brecha utilizada para a instauração de operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e outros tipos de ameaças políticas domésticas. É também necessária uma revisão na área de segurança pública, que torne as polícias cada vez mais cidadãs e menos militares, o que será objeto para outro texto.
6. Rever a concepção estratégica brasileira. Ter as FFAA voltadas para o enfrentamento de um inimigo externo costuma levar imediatamente a duas reflexões: 1) o Brasil é frágil militarmente; 2) precisamos gastar mais dinheiro com armas e homens. É preciso questionar esse raciocínio. O Brasil é dependente em termos de formulação estratégica, pois copiou a resposta estadunidense à pergunta ‘como se defender’. A resposta: com muitas armas de última geração. Essa receita não é útil para países de periferia, com tantas urgências demandando gastos públicos. É preciso investir numa estratégia de defesa cuja principal base seja a própria população, e não o investimento intensivo de capitais (tecnologia militar de ponta). Quem defende um país é o seu povo. Apenas eventualmente as FFAA. O povo só defende aquilo que entende como seu, aquilo que acredita que lhe faz bem. Daí que construir um Brasil justo, que educar o povo, que construir a reforma agrária, urbana, são medidas que fortalecem a defesa nacional, pois aumentam a coesão social, a pertença e o engajamento do povo brasileiro na defesa do seu próprio território.
7. Rediscutir o orçamento e reorientar os gastos de defesa. Os dois terremos em que a guerra vem ocorrendo são a economia (sanções) e comunicações. Em ambos, os mais atingidos são civis. Rediscutir o orçamento permite redirecionar gastos militares para diminuir outras vulnerabilidades nacionais. Permite também redirecionar gastos em áreas como assistência social ou esportes, atualmente executados por militares, para as suas pastas de origem. Por sua vez, a revisão estratégica possibilita a reorientação dos gastos de fato em defesa. Por exemplo, a redução do efetivo permanente libera uma parcela maior para investimentos em equipamentos. Uma vez que o objeto principal a ser defendido no Brasil é a vontade do povo, é isso que deve determinar as prioridades para a base industrial de defesa: áreas aeroespacial e cibernética, ambas voltadas para as comunicações. Em geral, as discussões ficam restritas ao como produzir armamentos, tendo seu auge na decisão sobre como fazer compras com transferência de tecnologia e produzir materiais de uso dual – civil e militar. É preciso rediscutir o que produzir em primeiro lugar. Paralelamente, é preciso interromper as compras de equipamentos que, ao invés de aumentar nossa autonomia, transferem recursos do povo para os potenciais adversários, notadamente os EUA, além de incrementarem nossa dependência e endividamento externo. Os países hegemônicos apenas no discurso transferem tecnologia. Na prática, transferem para os países periféricos sucata e vendem a assistência técnica para manter a própria sucata em funcionamento. Por fim, é preciso enfrentar o lobby das empresas de armamentos, nas quais militares da reserva são beneficiados pela porta giratória FFAA – empresa – governo.
Quem defende?
Rediscutir para que servem as FFAA. No Brasil, militares são empregados basicamente em atividades de ordem interna (que por si só já é injusta) e na defesa de fronteiras contra delitos transnacionais. Vivem numa situação oportunista orientada pela estratégia de aferirem maiores ganhos para si mesmos e variando entre serem políticos, policiais, militares, gestores, assistentes sociais. Sua percepção positiva pelo povo brasileiro não tem relação com as atividades de defesa, mas com as atribuições subsidiárias que elas cumprem utilizando recursos desviados de outras agências civis responsáveis pelas atividades a serem desempenhadas. As FFAA devem ser empregadas nas atividades de defesa nacional e, ocasionalmente, em outras, como desastres. É preciso profissionalizar e modernizar as FFAA, repensando contingente, distribuição do efetivo, recrutamento universal, interoperabilidade, em função da discussão do que se defende e como se defende.
Romper com a autonomia militar. A tutela militar é um componente geral da política brasileira, sendo o período Bolsonaro uma expressão mais aguda disso. Para romper de fato com a autonomia, é preciso acabar com as três áreas de reserva de domínio que a instituição manteve mesmo com a Constituição de 1988: educação, justiça e inteligência. Esse legado é mais danoso do que a punição individual a torturadores da ditadura militar. Aqui, cabem medidas como a revisão do Artigo 142, acabar com a porta giratória legislativo – FFAA, reestruturar o Ministério da Defesa, impor medidas de respeito à diversidade social e cultural brasileira (mulheres, questão racial, LGBTs), etc.
Como levar a cabo tudo isso?
A tarefa número um de todos os lutadores e lutadoras do povo nesse momento é a eleição de Lula. Porém, é preciso aproveitar o processo eleitoral para discutir a questão militar e da defesa dentro da esquerda, contribuindo para dar fim ao medo ou ao idealismo que envolvem o tema.
Para isso, precisa romper com o elitismo, construindo força social. FFAA gozam de alto prestígio e não terão a iniciativa para nenhuma das mudanças aqui sugeridas; pelo contrário, imporão forte resistência e, por isso, mudanças precisam ser construídas de fora para dentro. As discussões das relações internacionais são elitistas, tanto a condução da política externa quanto a política de defesa. São comuns comentários como o “povo não sabe,” “não tem visão de longo prazo”, “não tem interesse”. Daí a esquerda alimentar dois tipos de expectativas: temos que acabar com as FFAA, pois ela é uma instituição que maneja a violência fora do controle popular; ou seu inverso: na ausência de força de sustentação social, buscar um seguro militar, procurando “um general para chamar de seu”. Sem força social, é irreal pensar a reversão de processos como a entrega da Base de Alcântara. É necessário trazer os princípios da democracia e da participação popular para a gestão também das relações internacionais do Estado, fazendo com que o “braço forte e a mão amiga” não caminhem de forma paralela, mas sim subordinada a um projeto popular de país. Para isso, são necessárias medidas concretas como: criação de conselhos, realização de conferências, discussão coletiva dos documentos orientadores de defesa nacional, prática permanente da educação popular em defesa, traduzindo esses temas para o cotidiano das pessoas.
A tarefa do momento é organizar a esperança, construindo força para alterar a corrente das marés.
Fonte da matéria: É tempo de esperançar: debate sobre uma política de defesa nacional – https://thetricontinental.org/pt-pt/brasil/e-tempo-de-esperancar-debate-sobre-uma-politica-de-defesa-nacional/
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