Ana Carolina Evangelista – Segmento do eleitorado de influência decisiva na política brasileira apresenta muitas nuances.
Com os acontecimentos das últimas semanas e as oscilações em pesquisas de intenção de voto para presidente, a variável religião voltou a chamar a atenção de quem acompanha o processo eleitoral deste ano. Mais do que isso, o chamado “voto evangélico” ocupou as reuniões de pauta de quase todas as redações que cobrem as eleições brasileiras. E hoje, quando saírem novas pesquisas, de novo os analistas se perguntarão sobre o impacto desse eleitorado nas eleições de outubro. Diante disso, vale a pena refletir sobre algumas afirmações que se tornaram comuns para tratar desse segmento.
1. É um voto quase homogêneo
Quem lê grande parte da cobertura político-eleitoral no Brasil fica, à primeira vista, com uma certeza: há um “voto evangélico” em disputa. Quase único, quase homogêneo, uma espécie de bloco ideológico-religioso-moral convertido em objeto de desejo de candidatos e partidos que poderia levar candidaturas à vitória.
De fato, há um peso crescente dessa parcela significativa do eleitorado, especialmente depois do crescimento da população evangélica no país e, consequentemente, sua reivindicação de representação e registro de seus anseios nas urnas. No entanto, é equivocado sugerir um “voto evangélico”, como se pessoas evangélicas seguissem em bloco rumo a uma mesma direção política. Ou como se, ao compreendermos esse ou aquele elemento motivador, pudéssemos extrapolá-lo a todos desse recorte populacional. Ninguém é apenas evangélico, assim como não é apenas católico, tampouco apenas mãe, apenas mulher, apenas trabalhador. E nesse grupo que insistimos em analisar como “os outros” numa sociedade de maioria católica, existem diferenças sociais, de cunho ideológico-político, de renda e escolaridade, de práticas religiosas e por aí vai.
Ao mesmo tempo que esse voto não é tão uníssono assim, chama a atenção o crescente alinhamento de parte desse eleitorado com pautas conservadoras e simbologias que sintetizem ameaças morais. Afirmar que não é um bloco não significa dizer não haver elementos que nos permitam identificar o que tem mobilizado o voto de pessoas que se autodeclaram evangélicas.
2. Os pastores fazem a cabeça dos fiéis nas eleições
Há uma tentação frequente no Brasil de pensar em voto de rebanho, sobretudo quando alguma importante liderança religiosa evangélica declara seu voto. Não raro, a partir daí, surgem análises tentando decifrar “para onde vai agora o voto evangélico”. Esse tipo de abordagem tornou-se ainda mais comum quando a diferença de votos num único segmento – o evangélico – bateu recordes a ponto de ser decisiva na definição do resultado das eleições presidenciais, como em 2018.
Isso não significa, porém, que, diante da orientação de um pastor, todo o seu rebanho vote como ele recomenda. Primeiro: a divisão e a fragmentação no universo evangélico são enormes, com inúmeras igrejas, denominações, histórico, práticas litúrgicas e lógicas muito distintas. Não custa lembrar que uma parcela significativa dos evangélicos no Brasil é formada pelos chamados “sem denominação” ou “desigrejados”.
Agora, mesmo que o pastor não faça a cabeça do fiel pura e simplesmente e sejam muitos pastores diferentes, falando com comunidades evangélicas diferentes com identificação institucional de variados níveis, é importante reconhecer que cada vez mais espaços de igreja têm buscado influenciar politicamente seus fiéis de múltiplas maneiras. Isso não era comum no meio evangélico institucional até trinta anos atrás, mas vem se intensificando.
No início dos anos 1990, o Iser (Instituto de Estudos da Religião) já media, na região metropolitana do Rio de Janeiro, a presença explícita do tema eleitoral nos templos e se a pessoa orava ou não por algum candidato. A pesquisa Novo Nascimento – Os Evangélicos em Casa, na Igreja e na Política, realizada durante a campanha presidencial de 1994, mostrou, por exemplo, que a Igreja Universal do Reino de Deus já se destacava pela incidência política e eleitoral a partir dos púlpitos. Enquanto, na média entre diferentes denominações evangélicas, 39% diziam orar por um candidato, entre fiéis da Universal esse número subia para 56%. Uma prática que se confirmou e se aprofundou nos últimos tempos.
Em outras palavras, a probabilidade de um fiel da Universal ser influenciado por seu pastor podia – e pode – ser maior do que em outras igrejas, e isso tem acontecido em outros espaços religiosos. Não pela relação automática líder-fiel, mas porque grandes corporações evangélicas, especialmente pentecostais, mas não apenas elas, possuem diferentes formas de manter influência e comunicação com seus fiéis além dos períodos eleitorais. Por meio de conteúdos de formação em escolas dominicais e grupos de oração, por meio de atividades culturais e de assistência social, por meio de veículos de rádio e televisão, e mais comumente nos cultos e templos.
Determinadas denominações evangélicas vêm aperfeiçoando, também, desde os anos 1990, a forma de se organizar para eleger candidatos e representantes “oficiais”. Essa maior organização política e essa “orientação de voto” têm, sim, tido impacto. Principalmente em relação às Assembleias de Deus, suas subdivisões, e à Universal do Reino de Deus. São as denominações que hoje têm mais filiados a elas eleitos para o Congresso, as Assembleias Legislativas estaduais e as Câmaras Municipais das capitais.
3. É um voto definido por motivação ou identificação religiosa
A identificação religiosa explícita não tem sido, sozinha, fator de êxito numa disputa eleitoral. Basta ver que nomes como o pastor Everaldo, nas eleições presidenciais em 2014, ou o bispo Marcelo Crivella, nas eleições municipais em 2020, perderam eleições. Ou inúmeras candidaturas ao Legislativo pelo Brasil afora que utilizam ativamente sua identidade religiosa e não são eleitas. Porém, a identidade religiosa tem estado presente de maneira mais difusa e crescente em discursos e posicionamentos de candidaturas. Na realidade, é uma identidade cristã ampliada que nem sempre aciona linguagens e símbolos bíblicos, mas mobiliza moralidades religiosas de forma genérica, buscando alcançar evangélicos e católicos.
No estudo recente do Iser – Religião e Voto: uma fotografia das candidaturas com identidade religiosa nas Eleições 2020 –, identificou-se que os evangélicos fazem uma mobilização mais direta à religião que católicos e pessoas de outras religiões. A mobilização direta é aquela em que candidatos e eleitos utilizam sua identidade religiosa como referência central na campanha eleitoral, com o nome nas urnas, material de campanha e mídias sociais, ou quando a relação com a religião já é de conhecimento público. No caso dos evangélicos, 94% da mobilização foi direta, em comparação com apenas 60% entre católicos.
Mobiliza-se uma identidade cristã ampla e difusa e, paralelamente, acionam-se pautas priorizadas por esse segmento desde os últimos ciclos eleitorais: a defesa da moral e da família, o controle e a ordem no campo da segurança pública, e o forte posicionamento antiesquerda. Essas pautas não estão presentes apenas no eleitorado de base evangélica e fazem parte da vida de eleitores de diferentes matizes conservadores, com ou sem identificação religiosa – mas têm, sim, apresentado maior incidência na base evangélica.
4. As pautas morais perderam força para a pauta econômica
As pautas morais seguem com forte apelo sobre os anseios e demandas desse recorte do eleitorado, e é justamente por essa força que os políticos recorrem a elas. É muito comum que materiais de campanha citem práticas ou temáticas consideradas “desvios morais”, sob a ótica de proteção à família e à fé cristã. Mistura-se tudo num mesmo balaio: de corrupção, passando por permissão ao aborto, pela legalização das drogas, chegando à chamada ideologia de gênero.
Quando o pânico moral volta a ser fortemente acionado, as intenções de voto do segmento evangélico mostram oscilações. Aconteceu em 2018, aconteceu em 2020 e está acontecendo em 2022.
5. Não é um segmento com tanto peso político e eleitoral assim
Os evangélicos não se destacam no Brasil apenas pelo seu crescimento, mas também por seu ativismo de fé. Em comparação com católicos e outras religiões, eles se declaram mais praticantes, frequentando templos e afirmando orar com mais frequência. Também é um segmento que compartilha mais a sua fé fora dos templos, ocupando as artes, a música e a política. Estamos falando, portanto, de uma população que cresce e que é mais ativa em seus hábitos de fé num país até poucos anos de maioria católica não praticante.
Esse fenômeno não é novo, e o sistema político sabe disso. Desde os anos 1990 já se identificava, por exemplo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, que o sucesso eleitoral de candidatos evangélicos aparecia associado a uma comunicação mais intensa entre eleitores e eleitos nesse segmento — os evangélicos fluminenses se comunicavam mais com políticos, se comparados com a população em geral. Mais exemplos? O mesmo estudo do ISER já mencionado mostrava que o peso de candidatos evangélicos em eleições proporcionais, em 1994, representou 60% dos votos obtidos pelo PP e 49% dos votos do PFL no estado do Rio. Sem esquecer a emergência da “bancada evangélica”, com 33 membros em 1986 e hoje chegando a mais de 100 parlamentares.
O sistema político sabe, portanto, desse peso político e eleitoral há pelo menos trinta anos.
6. Os evangélicos invadiram a política
Não, os evangélicos não invadiram a política. Entretanto, os evangélicos conservadores e denominações e igrejas mais ativas praticamente invadiram o governo federal atual. A presença de representantes conservadores do segmento evangélico em cargos importantes encontrou seu ápice no governo de Jair Bolsonaro.
O governo começou com a pastora Damares Alves ganhando a direção do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. A Casa Civil foi ocupada pelo luterano Onyx Lorenzoni. O Ministério do Turismo era conduzido pelo membro da Igreja Maranata Marcelo Álvaro Antônio. Na Advocacia-Geral da União, o pastor presbiteriano André Luiz Mendonça (mais tarde nomeado por Bolsonaro para o Supremo Tribunal Federal). O ministro-chefe da Secretaria de Governo era o general Luiz Eduardo Ramos, membro da Igreja Batista.
Em 2021, ocorreram trocas significativas na Esplanada dos Ministérios, e enquanto Marcelo Álvaro Antônio era afastado do governo, o pastor presbiteriano Milton Ribeiro passava a ocupar o Ministério da Educação, e o recém-criado Ministério das Comunicações ia para as mãos do deputado federal Fábio Faria, da Igreja Batista.
Essa presença, somada à força da bancada evangélica no Congresso Nacional, reforçou a incidência da pauta e de políticas públicas de interesse desses setores evangélicos conservadores com incidência, consequentemente, sobre o eleitorado.
7. Os evangélicos “bolsonarizaram”
Nem todo evangélico é bolsonarista, mas Jair Bolsonaro sintetizou em 2018 o que até então parecia disperso: um eleitorado que vinha dobrando à direita, para usar uma expressão do cientista político Jairo Nicolau ao radiografar as eleições daquele ano. Isso aconteceu de forma ampla e especialmente no segmento evangélico. Especialmente porque a figura do então candidato personificava e sintetizava demandas prioritárias de lideranças desse campo que o agora presidente transformou em políticas ou pautas legislativas.
Fundamental sempre destacar que a articulação de políticos religiosos evangélicos e católicos conservadores se aprofundou e faz parte desse marco geral de maior alinhamento.
A presença de lideranças religiosas no espaço público e na política tem uma enorme influência em moldar esse cenário, e hoje as lideranças religiosas com força política e voz pública marcante são as de cunho ultraconservador. É um movimento duplo: políticos ultraconservadores mobilizam o religioso e os líderes religiosos, hoje em sua maioria evangélicos, usam o espaço da política institucional para impor a moral do seu segmento como agenda geral.
Além desse casamento de intenções comuns a partir de 2018, os evangélicos também se destacam pelas candidaturas legislativas de perfil religioso, e a maior parte delas, nas últimas eleições municipais pelo menos, está no campo da direita. No caso católico, apesar de as candidaturas legislativas estarem em maior número em partidos de esquerda, as que tiveram mais sucesso eleitoral foram aquelas vinculadas também aos partidos da centro-direita e direita, em 2020.
Na minha última coluna neste espaço refleti sobre o apelo a símbolos, fatos e medos na mobilização por eleitores. Esse raciocínio segue válido e é inegável que, no segmento evangélico especificamente, por mais heterogêneo que seja, a incidência de símbolos e medos se mostra muito eficiente há décadas na mobilização por votos.
Não é possível, portanto, falarmos em “voto evangélico” ou igualarmos esse segmento ao campo conservador, mas tampouco é suficiente afirmarmos apenas que não se trata de um campo homogêneo. É fundamental continuarmos a destrinchar qualitativamente como votam os evangélicos num país onde “ser cristão” está cotidianamente na boca do presidente. E mais ainda, num país em que as preferências desse segmento resultam, em grande medida, em vitória nas urnas.
Fonte da matéria: Desvendando o voto evangélico – revista piauí – https://piaui.folha.uol.com.br/eleicoes-2022/desvendando-o-voto-evangelico
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