Julia Braun – Entre as muitas memórias que a ditadura militar no Brasil se esforçou para apagar e deixar para trás está um importante evento da história do protestantismo no país.
Entre as muitas memórias que a ditadura militar no Brasil se esforçou para apagar e deixar para trás está um importante evento da história do protestantismo no país.
A Conferência do Nordeste, realizada em Recife em 1962, é vista por muitos historiadores como um marco do que é até hoje um dos mais significativos movimentos de engajamento social de lideranças progressistas cristãs na América Latina. Porém, são poucos os que sabem da existência desse evento.
A convenção, que aconteceu entre 22 e 29 de julho, aproveitou-se de um momento de intenso debate político no Brasil e no mundo para tratar de um tema que já vinha sendo discutido nos bastidores por estudantes e lideranças mais progressistas do protestantismo: a responsabilidade das igrejas diante das mudanças políticas e sociais enfrentadas pelo país na época.
Sob o tema “Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro”, pastores, reverendos e fiéis de pelo menos 20 Estados se reuniram para ouvir e debater com alguns dos mais destacados intelectuais da época, como Celso Furtado, Gilberto Freyre e Paul Singer.
Segundo Marcus de Matos, professor de Direito da Universidade de Brunel, no Reino Unido, e pesquisador do tema, ouviu-se falar muito durante aqueles oito dias sobre a pobreza e a injustiça social do Brasil da década de 1960.
“Mas eles também falaram de cultura popular e folclore brasileiros, de economia e de modelos de sociedade e transformação social”, diz o estudioso. “E, claro, discutiram muito sobre teologia, mais especificamente qual teologia permite esse tipo de reflexão.”
A conferência rapidamente despertou o interesse da sociedade da época e deu aos protestantes brasileiros uma visibilidade que eles haviam experimentado poucas vezes no passado.
O governador de Pernambuco à época, Cid Sampaio, participou de algumas reuniões, e o presidente João Goulart enviou um telegrama e um representante a Recife. Jornais do Nordeste e Sudeste noticiaram o evento, alguns com manchetes em primeira página.
A atenção recebida, porém, gerou uma forte reação de setores mais conservadores das igrejas, que buscaram se afastar dos organizadores e dos temas trazidos à tona.
Pressões vindas do próprio Estado também contribuíram para o fim do movimento que teve seu auge durante a convenção.
Em 1962 o Brasil já começava a experimentar uma certa convulsão social que culminaria no golpe militar de 1964 e, antes mesmo do evento, alguns dos principais nomes por trás da Conferência do Nordeste já vinham sendo observados pelo DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, que mais tarde serviria à Ditadura Militar.
Os anos após o AI-5 foram os mais violentos da ditadura militar
Durante os anos do regime, alguns dos líderes do movimento foram expulsos de suas igrejas e denunciados como subversivos ao governo militar. Vários tiveram que se exilar.
“Nunca antes ou depois desta conferência se viu o protestantismo brasileiro tão engajado na discussão da realidade social brasileira e tão consciente da necessidade de participação na construção de tal realidade”, afirma Raimundo Barreto, historiador e professor da Universidade Princeton, nos Estados Unidos.
‘O tema foi uma bomba’
A convenção foi organizada por um setor especial da extinta Confederação Evangélica do Brasil (CEB), órgão interdenominacional constituído de seis das principais igrejas protestantes do país na época.
Chamado de setor de Responsabilidade Social da Igreja, esse departamento foi criado por membros de diferentes denominações motivados por outros movimentos que surgiam às margens do cristianismo, comandados inicialmente por fiéis jovens e universitários.
Antes da Conferência do Nordeste, o grupo já havia organizado três consultas internas para analisar a participação das igrejas na sociedade brasileira.
“Eles foram influenciados pelas discussões em torno do Marxismo e das promessas não cumpridas do desenvolvimento capitalista de melhores condições de vida”, diz Barreto. “Com isso, emerge a questão da responsabilidade social da igreja e da Justiça”.
“Muito desse movimento aconteceu às margens das igrejas protestantes, porque o mundo do protestantismo brasileiro sempre foi conservador e influenciado por movimentos missionários americanos mais individualistas cuja maior preocupação era a conversão.”
A cidade de Recife foi escolhida como palco do evento justamente por abrigar na década de 1960 importantes iniciativas políticas e culturais que inspiraram as discussões. Além disso, era no Nordeste brasileiro, a região mais empobrecida do país, que a injustiça social no país era mais visível.
Waldo César em entrevista a documentário em 2005
Entre os principais nomes por trás da organização estava o do pastor e sociólogo Waldo César, falecido em 2007.
Ele era o secretário executivo do setor de Responsabilidade Social e é autor de um dos poucos registros do dia-a-dia e dos bastidores da conferência, um livro de crônicas que leva o nome do evento: Cristo e o Processo Revolucionário Brasileiro.
Em uma entrevista concedida em 2005, para um curta-metragem produzido pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), César relata como o evento foi recebido pela sociedade e pelas próprias igrejas.
“Foi uma luta enorme dentro da Confederação (CEB) para organizar a conferência, porque o tema era bravo né?”, disse. “O presidente era João Goulart, e o Brasil estava uma efervescência com nacionalistas, reformas de base… estava pegando fogo”.
“O tema foi uma bomba”, afirmou ainda, citando especialmente a reação dos jornais da época.
“O sermão de abertura, feito pelo presidente da CEB da época, Amir dos Santos, foi de tremer o teatro, e a gente soube depois que as autoridades locais ficaram profundamente chocadas.”
Em sua pesquisa, Marcus de Matos reuniu algumas das principais publicações da imprensa da época.
“Última Hora, Correio da Manhã e o Globo repercutiam imediatamente o que acontecia nesse evento. A repercussão foi gigantesca”, diz.
“Alguns jornais mais progressistas detalharam as discussões, enquanto outros fizeram acusações de comunismo.”
‘160 delegados de pelo menos 20 Estados e 16 denominações’
Livros originais sobre a Conferência do Nordeste publicados em 1962
A convenção aconteceu no colégio presbiteriano Agnes Erskine. A abertura foi realizada no Teatro do Parque, no centro do Recife, com a presença de autoridades locais e militares.
“Tínhamos 160 e tantos delegados, de 20 Estados pelo menos. Eram 16 denominações presentes”, relatou Waldo César.
Segundo o sociólogo, os dias que seguiram foram de discussões sobre temas relevantes à época, como movimentos sociais e estudantis, reformas de base e até Reforma Agrária.
“Fizemos um movimento que incluía também arte, filmes, peças de teatro, exposição de material folclórico – tudo dentro de uma perspectiva social.”
Em seus relatos, o pastor afirma que nem todos os presentes concordavam durante as discussões, mas a maioria gostou do que ouviu por ali.
“O prof. Gilberto Freyre nos mandou muitas publicações do instituto que dirige; e o ex-secretário de Segurança nos enviou material geralmente de propaganda anticomunista para distribuição gratuita. Adotamos como medida não impedir nada disso que vinha”, escreveu em suas crônicas.
‘Eles é que deveriam ter medo de virar cristãos’
Ao ser questionado sobre as acusações de envolvimento com o movimento comunista na entrevista de 2005, César brincou: “Alguns perguntavam se não tínhamos medo de virar marxistas. E eu brincava que eles é que deveriam ter medo de virar cristãos”.
Segundo Marcus de Matos, as pautas sociais defendidas pelo setor de Responsabilidade Social da Igreja estavam bastante próximas de uma política de esquerda, mas à época seus integrantes não diziam se identificar com o comunismo.
“Muitos se identificavam com uma corrente importada de alguns pensadores dos Estados Unidos de que era preciso ouvir o marxismo e sua crítica ao capitalismo, mas encontrar a resposta superior do cristianismo para essas questões”, diz o historiador Raimundo Barreto.
“O diálogo com o marxismo não era necessariamente uma adesão, mas um diálogo crítico e aberto.”
Além de César, outros nomes conhecidos do protestantismo brasileiro também participaram da organização da reunião, como o escritor e pastor Rubem Alves, o metodista Anivaldo Padilha e o jornalista e pastor Jether Ramalho.
Anivaldo Padilha em entrevista para projeto do Instituto de Estudos da Religião
‘Já não podíamos falar, escrever ou conversar’
Ao mesmo tempo em que a Conferência do Nordeste representou o ponto alto das discussões sobre classe, justiça social e desenvolvimento na igreja protestante, também marcou o início do fim dessa mobilização.
Antes mesmo do golpe militar de 1964, integrantes do setor de Responsabilidade Social e de outros movimentos aliados já começaram a ser vigiados.
Em 1960, Waldo César recebeu sua primeira visita de um agente do DOPS. Em 1963, um coronel do Exército visitou a sede da CEB fazendo perguntas sobre a Conferência do Nordeste.
O tumulto enfrentado pela política brasileira também influenciou setores mais conservadores das igrejas, que passaram a fazer pressão contra os organizadores.
Pouco após o evento, a CEB suspendeu as atividades do setor de Responsabilidade Social e demitiu quatro de seus secretários, incluindo Waldo César.
Uma das manifestações estudantis ocorridas em 1968 contra o regime militar
“Com o golpe de 64, a coisa se dispersou. Nós já não podíamos falar, escrever ou conversar por telefone, tudo era censurado”, relatou Waldo César na entrevista de 2005.
“Muitos dos envolvidos com os movimentos sociais foram entregues ao regime por integrantes das próprias igrejas”, diz Barreto.
César foi preso pelo regime militar por uma semana em 1966, acusado de estar dirigindo um protesto da Associação de Estudantes Secundários, e algum tempo depois se exilou fora do país.
Rubem Alves, Anivaldo Padilha, Jether Ramalho e muitos outros protestantes também foram perseguidos. Padilha ficou nove meses encarcerado e foi brutalmente torturado.
Um dos jovens estudantes que fizeram parte do movimento de estudantes cristãos, Paulo Wright, foi torturado e assassinado pelo governo militar.
“Em minha pesquisa entrevistei 17 membros do movimento que culminou com a Conferência do Nordeste, alguns com mais ou menos envolvimento, mas todos eles foram perseguidos”, diz o professor Marcus de Matos.
“Muitos eram teólogos de formação, mas foram obrigados a abandonar a teologia porque as igrejas institucionais não os acolhiam mais”.
Segundo os estudiosos, houve ainda um empenho por parte das igrejas para apagar muitos dos registros e das memórias que rodearam o trabalho dessas figuras.
“Houve um esforço por parte da cúpula das igrejas daquela época para apagar essa memória evangélica dos anos 1960 e 1970”, diz Matos. “A ditadura tentou apagar muitas coisas, mas dificilmente seria capaz de sozinha acabar com essa memória social das igrejas.”
“Existe uma lógica de sumiço de documentos, inclusive por parte dos perseguidos, que jogaram fora muitos dos registros com medo de serem presos ou estarem sendo vigiados”.
Ponte Princesa Isabel em Recife em 1962
De acordo com o advogado, por isso quase não existem fotos ou registros da Conferência do Nordeste.
Para Raimundo Barreto, todo esse movimento dificulta até hoje a análise desse período da história protestante.
“A maioria dos evangélicos hoje sequer ouviu falar neste movimento tão significativo para a história protestante no Brasil”, lamenta Barreto.
Segundo o professor de Princeton, mobilizações semelhantes, de cristãos progressistas dispostos a discutir temas de relevância social, ressurgiram com a redemocratização no Brasil, mas ainda são minoritárias.
“Da mesma forma que aconteceu no passado, grande parte das lideranças protestantes e daqueles que estão no controle das igrejas evangélicas do Brasil não gostam desse movimento”, diz.
“Há muita coisa acontecendo, tanto a nível local quanto nacional e internacional, mas permanecem às margens.”
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