Geografia

Medellín: inspiração para resgatar as cidades brasileiras

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Tiago Coelho – Em 2 de julho de 2014, quando o Rio de Janeiro sediava a Copa do Mundo e se preparava para a Olimpíada, foi inaugurado um teleférico na cidade para facilitar o acesso dos moradores à Providência, a favela carioca mais antiga, erguida a partir de 1888 no morro de mesmo nome. O governo fez grande alarde do novo meio de transporte: depois de mais de um século, finalmente a população da Providência poderia chegar às suas casas sem ter que escalar as ruas do morro.

Vista de Santo Domingo Sávio, em Medellín, com os três blocos do Parque Biblioteca España, projetado pelo arquiteto colombiano Giancarlo Mazzanti: a cidade investiu pesado em complexos culturais e esportivos nas favelas e tornou as ruas dos morros acessíveis a carros e ônibus

Logo após o início das obras, moradores relataram que famílias estavam sendo removidas de suas casas de maneira traumática e que uma das poucas áreas de lazer disponíveis na Providência – uma quadra esportiva – havia sido destruída para dar lugar a uma estação. Depois da inauguração do teleférico, pessoas que moravam na parte mais alta da favela perceberam que ele não teria grande serventia para elas, pois nenhuma estação fora construída nos lugares de acesso mais difícil do local. O teleférico custou 76 milhões de reais na época e funcionou apenas um ano e meio. Em dezembro de 2016, o serviço foi interrompido – e os moradores tiveram que escalar novamente as ruas do Morro da Providência.

Esse foi mais um dos vários projetos de urbanismo social feitos no Rio de Janeiro nos últimos trinta anos para integrar as favelas ao restante da cidade. E foi mais um que não deu certo. Seja porque foi mal planejado, seja porque os governos seguintes não quiseram dar prosseguimento a ele.

Entre esses projetos, o principal foi o Favela-Bairro, lançado em 1995. Com o nome oficial de Programa de Urbanização de Assentamentos Populares, seu objetivo era melhorar as condições de vida nas comunidades, cuidando da infraestrutura e moradia, da oferta de serviços e da criação de espaços de lazer e cultura. O projeto teve financiamento da prefeitura e do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Todas as intervenções foram feitas com a participação de escritórios de arquitetura, contratados por concurso, como o do arquiteto Manoel Ribeiro, escolhido para atuar na Serrinha, no bairro de Madureira, na Zona Norte, e depois em outras cinco favelas.

Ribeiro partiu de um dos princípios básicos do urbanismo social, o diálogo com a comunidade, para entender quais intervenções seriam importantes para ela. Na Serrinha, os pedidos concentraram-se em rede de esgoto e água encanada, escadarias e rampas com corrimões, iluminação de ruas e becos. Como a favela é berço da Escola de Samba Império Serrano e cultiva a tradição do jongo (dança ancestral africana), também entrou no rol principal o pedido de um palco para manifestações artísticas. Tudo foi feito conforme a prescrição dos moradores, que participaram das obras e foram remunerados pelo trabalho. A interlocução com lideranças comunitárias foi frequente, e o narcotráfico não dificultou a implementação do projeto. “As obras facilitaram o trânsito das pessoas mais velhas, as ruas ficaram mais seguras com iluminação, os serviços básicos de saneamento foram levados até as pessoas que não dispunham deles. A comunidade também ficou mais acessível para visitantes, que passaram a ir até lá para acompanhar as manifestações artísticas e provar quitutes de cozinheiras locais”, conta Ribeiro.

O sucesso obtido pelas intervenções do Favela-Bairro, que numa primeira fase contemplaram 38 comunidades, chamou a atenção de gestores públicos na Colômbia. Naquela época, a cidade de Medellín vivia dias terríveis, piores ainda que os da capital fluminense, com o país conflagrado por disputas violentas. Nos anos 1990, um grupo de autoridades veio ao Brasil para conhecer o projeto, com o objetivo de aplicar algumas de suas lições em um grande plano para melhorar as condições de vida nas comunidades de Medellín – outras lições foram colhidas em diferentes cidades do mundo. No Rio, os colombianos se atentaram a algumas iniciativas, como os serviços de distribuição de água e esgoto, a construção de melhores vias de acesso e a regularização da propriedade.

De volta à Colômbia, eles começaram a desenvolver um projeto para Medellín. Enquanto isso, o Favela-Bairro começou a definhar – até que, em 2010, acabou. No mesmo ano, inspirado nesse projeto, o prefeito Eduardo Paes (PMDB, hoje no PSD) criou o Morar Carioca, que foi, porém, esvaziado ainda em sua gestão e na de seu sucessor, Marcelo Crivella (Republicanos).

Um relatório publicado em 2020 pelo BID examinou o estado da infraestrutura nas 88 comunidades que participaram da segunda fase do Favela-Bairro, entre os anos 2000 e 2008. Concluiu que muitas obras estavam deterioradas por falta de manutenção da prefeitura ou por vandalismo. Criminosos haviam destruído a iluminação para melhor se esconder e feito buracos ou barricadas nas ruas reformadas para dificultar o acesso da polícia ou de gangues rivais. “Sei que, por causa dos tiroteios, é difícil para os funcionários da prefeitura entrarem lá para fazer a manutenção. Mas poderia haver uma interlocução entre a prefeitura e as lideranças comunitárias para viabilizar da melhor forma possível a manutenção das obras”, diz Ribeiro. “Falta também uma mudança na mentalidade do poder público de que os serviços de manutenção feitos no asfalto devam ser feitos também na favela.”

A partir dos anos 2000, na mesma época em que o Favela-Bairro se esvaziava, o plano de urbanismo social de Medellín dava certo – e a cidade colombiana tornava-se modelo para as metrópoles brasileiras. O Rio de Janeiro passou de mestre a aprendiz, e começou a copiar as inovações da Colômbia. Até a ideia dos teleféricos nas favelas do Complexo do Alemão e da Providência foi importada de lá. “É incompreensível que os altos investimentos feitos para a Copa do Mundo no Rio não tenham sido aproveitados para fazer uma intervenção positiva na Providência”, diz o jornalista e consultor de gestão pública colombiano Jorge Melguizo, que esteve nessa favela em dezembro passado. “Não vi lá nenhum parque, nenhuma praça, nenhum campo de futebol, nada que fosse benéfico para os moradores. E o teleférico está parado.” Em Medellín, ao contrário, as seis linhas de teleféricos criadas para ligar as favelas ao Centro da cidade estão em pleno funcionamento. Transportam cerca de 95 mil pessoas por dia.

Enquanto Melguizo visitava o Rio de Janeiro em dezembro passado, a piauí foi a Medellín conhecer os projetos de urbanismo social que agora despertam interesse não apenas no Brasil, mas no mundo todo, pelos ótimos resultados que alcançou.

A segunda maior cidade colombiana, com 2,6 milhões de habitantes, lembra muito o Rio de Janeiro, mas sem as praias, pois se situa no coração do país, esparramada no Vale do Aburrá e cercada pela Cordilheira dos Andes. Prédios altos acumulam-se na parte baixa do vale, as favelas espalham-se pelas encostas e a vegetação frondosa preenche o restante da paisagem.

A Linha J do Metrocable – como o sistema de teleféricos é chamado –, com 2,7 km de extensão, parte da estação San Javier e atravessa uma das áreas mais pobres da cidade, deixando os moradores nas estações Juan XXIII, Vallejuelos e, finalmente, La Aurora, a mais alta. Conforme sobe o teleférico, a visão da favela se faz mais ampla – e surge um mar de casas simples de tijolos aparentes, como nas comunidades cariocas. A diferença é que ali se vê nitidamente o resultado das intervenções urbanísticas: ruas amplas, limpas e pavimentadas, comércio vibrante, escadarias e rampas, sólidas coberturas de encostas e obras de contenção de deslizamentos de morros. Não há sinal de lixões ou esgotos a céu aberto. No miolo da favela, há uma escola, uma quadra poliesportiva, uma praça e um centro de convivência.

O comerciário Arley Sanchez, de 34 anos, que tomou o teleférico com sua mulher, me contou que as ruas são suficientemente largas para permitir o trânsito dos caminhões de lixo e de entregas. “Veja aquela ponte”, disse Sanchez. “Ela liga duas áreas que, no passado, eram de bandos rivais. Quem morava num lugar não podia cruzar para o outro.” Quando passamos pela estação Vallejuelos, Sanchez apontou para um barranco coberto de vegetação. “Na minha infância, muitos corpos eram despejados ali. Mas isso ficou para trás. Hoje, vivo tranquilo, sem sustos.” Ele, a mulher e um dos filhos moram em La Aurora, em um apartamento popular financiado pelo governo.

Depois de cerca de quinze minutos, chegamos a La Aurora. A saída da estação dá para uma praça bem cuidada e com rede wi-fi. Alguns adolescentes estavam reunidos no local, conversando, ouvindo música e ensaiando danças que filmavam com o celular. Micro-ônibus aguardavam os moradores que chegavam pelo teleférico para levá-los a pontos mais distantes. Os bilhetes do sistema de transporte são integrados, de acordo com a necessidade do usuário. Para quem usa metrô, teleférico e ônibus, custa 3 125 pesos (cerca de 4 reais). Ao contrário de outras áreas, esta em La Aurora tem prédios altos de moradia popular, com sacadas, acabamentos de qualidade, acessibilidade para deficientes e áreas de convivência no entorno.

Enquanto esperava o seu sanduíche comprado numa barraca de rua, Isabel Vargas, uma venezuelana de 27 anos, me disse que não era perigoso circular por ali. “Há gangues em todos os bairros de Medellín, mas não são vistas com facilidade, porque estão escondidas na maior parte das vezes”, contou. Vargas chegou a Medellín há dois anos, em busca de uma vida melhor. Por ser imigrante, tem dificuldade em conseguir emprego formal e trabalha como vendedora ambulante de cigarros e vinho barato. Perto dali, havia dois policiais, com as pistolas guardadas no coldre, dando orientações às pessoas. Foram as únicas pessoas armadas que vi no local. Apesar de ser um bairro pobre, La Aurora não transmite a impressão de ser um lugar violento e apartado da cidade, pois é bastante acessível, a partir do Centro da cidade.

No alto de La Aurora, resolvi fazer um teste: chamar um carro por aplicativo para voltar ao Centro de Medellín. Em boa parte das favelas cariocas, o morador tem dificuldade para fazer o mesmo. A corrida é frequentemente cancelada quando o motorista descobre que foi solicitada de dentro da comunidade. E, mesmo quando o morador pede o carro do lado de fora da favela, há motoristas que se recusam a buscá-lo, pois os navegadores de GPS identificam a região como “área de risco”.

Fiz o pedido, que foi logo aceito pelo motorista Diego Alejandro. Pelo mapa do aplicativo, dava para ver o carro subindo o morro até La Aurora. As vias públicas das partes mais altas dos morros são acessíveis a carros, ônibus e até caminhões. “Eu circulo em todos os bairros sem medo”, disse Alejandro. “Medellín ficou conhecida como uma das cidades mais violentas do mundo, mas já deixamos isso para trás. Teve a participação do governo, das empresas, mas o povo contribuiu muito. As gerações foram entendendo que aceitar a violência só leva a mais violência.”

O teleférico de La Aurora faz parte do amplo projeto de urbanismo social implantado em Medellín – uma das soluções encontradas pelas autoridades para enfrentar os graves problemas que atingiram a cidade a partir dos anos 1970.

Nessa época, conflitos violentos no campo e as ações da guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) aceleraram o fluxo migratório para Medellín, que vivia um novo ciclo de industrialização. O governo também enfrentava os narcotraficantes, concentrados no chamado Cartel de Medellín, sob o comando de Pablo Escobar. Na década de 1980, a violência explodiu, e a cultura do medo e da morte se espalhou.

Sem qualquer perspectiva de futuro, os adolescentes das comunidades eram cooptados como soldados pelo narcotráfico ou pela guerrilha. “Eu tinha 15 anos quando um vizinho de 18 anos passou a vender drogas e foi morto em sua casa. Foi a primeira pessoa que eu conhecia que morreu assassinada”, conta Melguizo, o consultor de gestão pública colombiano. “Os outros vizinhos diziam: ‘Ele morreu porque vendia drogas.’ Como se a morte dele fosse um problema a menos. E eu disse: ‘Mas vamos ficar contentes com isso? Agora temos um assassino no bairro. Não estamos seguros.’” Melguizo nasceu há 59 anos na Comuna 13, na época um bairro pobre e que depois se tornou uma imensa favela, hoje com quase 200 mil habitantes.

O narcotráfico mostrava seu poder assassinando ou sequestrando políticos, ativistas de direitos humanos e quem mais se dispusesse a enfrentá-lo. “Chegou a um ponto que não sabíamos de onde vinham as balas. Em todos os lugares você poderia ser uma vítima. Cada um de nós se sentia como um sobrevivente na cidade”, recorda Melguizo. “A violência se naturalizou. Nossa sociedade pensava: ‘Vivemos numa guerrilha?’ Sim, mas isso é a Colômbia. ‘Estão matando muita gente?’ Sim, mas isso faz parte da Colômbia.” Enquanto os operadores do narcotráfico enchiam os bolsos de dinheiro, a população das favelas vivia em condições precárias, abandonada pelo Estado.

Em 1991, com cerca de 380 homicídios por 100 mil habitantes, Medellín ganhou o título de cidade mais violenta do mundo – eram quase seis vezes mais homicídios do que na cidade do Rio de Janeiro na mesma época (65,2 por 100 mil habitantes). No mesmo ano, o governo colombiano decidiu criar o Conselho Presidencial para Medellín, a fim de combater a violência e a desigualdade com políticas públicas para as regiões marginalizadas da cidade. Diversos setores da sociedade se reuniram para projetar o futuro: gestores públicos, empresários, acadêmicos e pessoas da sociedade civil. O conselho também fomentou debates com as organizações comunitárias, durante os quais foram feitas propostas para enfrentar a desigualdade em Medellín e em sua região metropolitana.

Em dezembro de 1993, uma operação conjunta dos governos da Colômbia e dos Estados Unidos capturou e matou Pablo Escobar. O narcotráfico viu seu poder se fragmentar entre vários grupos e passou a atuar nas sombras. “Nesse momento, resolvemos olhar de frente e conversar sobre a violência em que vivíamos e a sociedade na qual havíamos nos transformado, naturalizando a morte e a miséria”, diz Melguizo, que atuou em projetos educacionais e de comunicação comunitária em favelas e sindicatos. Entre 1994 e 1996, os primeiros planos de urbanização social foram formulados, e não visavam o curto prazo – traçavam metas para 2015.

Nos anos 2000, o governo do presidente Álvaro Uribe ampliou o combate ao narcotráfico e ocupou a Comuna 13 com helicópteros e artilharia. Na investida, 18 pessoas foram mortas e 281 presas. Uribe também promoveu uma política de “desmobilização”, em que negociou com traficantes um plano de anistia ou redução de penas em troca da confissão dos crimes, da suspensão da matança entre gangues, do desarmamento e da entrega dos bens adquiridos na atividade do tráfico. Essas medidas garantiram a redução da violência.

Melguizo havia deixado Medellín no final dos anos 1990 para trabalhar em uma ONG em Bilbao, na Espanha. Quando retornou à Colômbia, foi convidado para ser, em 2005, secretário de Cultura Cidadã da Prefeitura de Medellín e no governo do prefeito Sergio Fajardo, eleito em 2004.

Fajardo e sua equipe desenvolveram o Projeto Urbano Integral (PUI), um conjunto de intervenções abrangentes e integradas de urbanismo em áreas socialmente marginalizadas e vulneráveis de Medellín. O objetivo era enfrentar problemas crônicos de mobilidade, habitação, meio ambiente, serviços públicos básicos e escassez de espaços de convivência, recreação e educacionais.

A Prefeitura de Medellín sobrepôs três mapas para identificar os locais com maior taxa de pobreza, violência e densidade demográfica. Sobre esses dados, colocou mais um filtro, a fim de identificar onde havia a maior população de crianças de 0 a 6 anos. Localizadas, as regiões mais críticas passaram a receber os PUI. Famílias que viviam em áreas de risco foram reassentadas em habitações construídas pelo governo. O sistema de transporte foi ampliado até as regiões pobres. Houve forte investimento em projetos de arte e educação, com a criação de complexos culturais e das bibliotecas-parque, hoje espalhadas pela periferia de Medellín, além da universalização dos serviços básicos. Diferentes secretarias municipais foram envolvidas no projeto, sob a coordenação de um órgão diretamente responsável por dirigir as ações.

Os principais financiadores dos PUI foram as Empresas Públicas de Medellín (EPM), uma gigantesca companhia controlada pela prefeitura, responsável por saneamento, energia elétrica, telecomunicação e coleta de lixo, entre outros serviços essenciais da cidade. Mas houve também contribuição internacional e de empresas privadas locais. O projeto durou de 2004 a 2011, período durante o qual o Índice de Qualidade de Vida (IQV) subiu de 82,20 (em 2004) para 83,48 (em 2011).

Para Mauricio Fraga, professor da Faculdade do Maranhão (Facam) e autor do livro Urbanismo Social e Criminalidade, o enfraquecimento do narcotráfico, as mudanças promovidas pelos projetos de urbanismo social e a participação ativa da população nas transformações contribuíram para o sucesso do projeto. “Medellín renasceu com políticas públicas cujo lema era ‘O melhor para os mais pobres’. A cidade investiu pesado nas bibliotecas-parque e em grandes complexos culturais e esportivos, atrativos para as crianças e adolescentes, desviando-os da criminalidade. Ficou provado que, quanto mais investimento social, menos mortes”, diz Fraga. Mas ele ressalta que um projeto assim depende “da boa vontade política” não apenas dos governantes, mas da população em geral. “Medellín conseguiu porque teve isso, e o projeto contou com o apoio da sociedade, criando uma plataforma de transparência para que ela acompanhasse os gastos públicos.”

Fraga cita em seu livro que 79% do orçamento municipal de Medellín passou a ser aplicado em melhorias na cidade. A porcentagem da área de educação no orçamento passou de 12%, em 2003, para 40%, em 2006. No que foi seguida pela da cultura, cujo orçamento saltou de 0,68% para 5%, no mesmo período.

“A Colômbia é uma aula de cidadania para a gente, de como resolver os problemas dos mais pobres de maneira mais ampla”, diz Tomas Alvim, coordenador do Laboratório Arq.Futuro de Cidades do Insper (Instituto de Ensino e Pesquisa). “Não se resolve esses problemas focando só em educação ou em saúde. Tem que resolver os problemas de moradia, saneamento, regularização fundiária, capacitação profissional. O Estado precisa olhar para o cidadão e atendê-lo de forma integral e transversal. Foi o que Medellín fez, com um grande projeto de convergência de políticas públicas nos territórios onde a violência e a pobreza eram mais fortes.”

Melguizo – que também foi secretário municipal de Desenvolvimento Social do governo Alonso Salazar, que em 2008 sucedeu o de Fajardo – destaca a importância da persistência e renovação dos projetos. “A sustentabilidade e continuidade dependem de três coisas: participação comunitária em todas as suas etapas, alta qualidade e renovação constante de suas propostas. Esses espaços precisam se converter, permanentemente, em essenciais para o cotidiano da comunidade, senão perdem o sentido.”

Graças às mudanças em Medellín, o número de homicídios na cidade despencou. Passou de 160 por 100 mil habitantes em 2000 para 35,3 em 2005, um ano depois do início dos PUI. Manteve-se nesse patamar nos três anos seguintes, mas em 2009 voltou a crescer, chegando a 94 mortes por 100 mil habitantes. Nos quatro anos seguintes, caiu novamente: 86 (em 2010), 69,6 (em 2011), 52 (em 2012) e 38 (em 2013). E seguiu reduzindo, com 14 mortes em 2020 – número equivalente ao da cidade do Rio de Janeiro, no mesmo ano, quando foram registrados 14,2 homicídios dolosos por 100 mil habitantes, segundo o Instituto de Segurança Pública do governo do estado.

A política de desmobilização da criminalidade em Medellín contribuiu para a redução de homicídios, mas não acabou com o narcotráfico. O que leva a outra explicação para a queda dos assassinatos, segundo o livro Criminal Enterprises and Governance in Latin America and the Caribbean (Empresas criminosas e governança na América Latina e no Caribe), de Enrique Desmond Arias: o chamado pacto del fusil, um acordo de não agressão que foi selado entre os principais grupos controladores do tráfico.

No tempo em que os criminosos reinavam, Medellín fechava mais cedo. As milícias paramilitares impunham toques de recolher às 18 horas. O governo aconselhava que a população se recolhesse às 22 horas. Mas esse tempo ficou para trás. Numa noite de dezembro passado, por volta das 21 horas, jovens se divertiam no Complexo Esportivo Atanasio Girardot, inaugurado em 1953 e um dos maiores e mais bem equipados da América Latina, com mais de 900 mil m2. Em um dos ginásios, algumas pessoas treinavam voleibol. Outras aguardavam em uma imensa fila na frente do estádio de futebol para assistir ao show de Karol G, uma artista pop colombiana. O transporte público garantiu que jovens de classes sociais distintas chegassem com facilidade ao local para aproveitar a noite de sábado.

Em torno do complexo esportivo, onde há várias lanchonetes e bares descolados, jovens comiam perros calientes (cachorros-quentes) e bebiam cervejas long neck e drinques coloridos. Para os que estavam com pouco dinheiro, a opção eram os buñuelos (bolinho frito, recheado ou não) ou arepas (pão de milho usado para sanduíches) nas padarias ou barraquinhas de rua. Ambulantes vendiam bebidas em copos plásticos. Numa calçada, dois rapazes estavam parados diante de um muro. Passaram dois policiais em suas motocicletas e pararam. Pediram aos jovens que mostrassem os documentos, usando “por favor” no final da frase. Os policiais conferiram os papéis, os devolveram e foram embora.

Uma abordagem policial sempre é humilhante. Mas quem é preto e vive no Brasil sabe que, além de humilhante, pode ser letal. Não é incomum policiais militares com fuzis abordarem pessoas no Rio de Janeiro. Em Medellín, me chamou a atenção como os policiais mantiveram um distanciamento mínimo dos interpelados, a arma sempre no coldre, o tom de voz sóbrio, e não recorreram a palavras agressivas.

A Polícia Nacional da Colômbia é unificada – ao contrário do Brasil, onde há as polícias civil e militar – e responde diretamente ao presidente do país. Nos últimos anos, diminuíram os casos de corrupção e ligação com o narcotráfico entre os policiais e aumentaram os investimentos em inteligência, tecnologia e práticas preventivas. (Os protestos contra a política fiscal do governo no ano passado, entretanto, expuseram a extrema truculência com que pode agir a Polícia Nacional. Suas ações durante manifestações de rua levaram a 28 mortes e a centenas de casos de abusos denunciados por organizações internacionais, como a ONU e a Human Rights Watch.)

O administrador de empresas Murilo Cavalcanti, secretário de Segurança Cidadã da Prefeitura do Recife, já fez 36 viagens a Medellín, quase sempre acompanhado de outras pessoas que querem conhecer a experiência de urbanismo social da cidade colombiana. “Se for preciso, venho mais 36 vezes. O modelo de Medellín é muito profundo e pedagógico. E não é fácil de entender”, diz ele. “A cidade fez uma pactuação que envolveu setor público, sociedade civil, ONGs, universidade e empresários para tirá-la, literalmente, do inferno em que vivia. Era a cidade do medo e da desesperança.”

Na sua 36ª visita, no início de dezembro passado, ele viajou com Pâmela Alves, secretária executiva de Planejamento e Gestão por Resultados da Prefeitura do Recife, e com Marcos Toscano, secretário executivo de Inovação Urbana. A piauí acompanhou o grupo em sua visita a alguns marcos do urbanismo social em Medellín.

Em primeiro lugar, o grupo foi até o alto da favela Santo Domingo Sávio nº 1, que no passado foi uma das mais pobres e violentas da cidade e era dominada por milicianos. Também ali houve uma intervenção urbanística de qualidade, com destaque para o Parque Biblioteca España, projetado pelo arquiteto colombiano Giancarlo Mazzanti. Junto com o Museu de Arte Moderna, o Museu de Antioquia e o Jardim de Infância Timayui, o parque forma um conjunto que colocou Medellín na lista das cidades com atraentes obras arquitetônicas. É um complexo de três prédios pretos impressionantes que parecem rochas quadrangulares imensas penduradas na encosta. Ali, as pessoas têm acesso à biblioteca, computadores com internet e cursos de arte, ciência e tecnologia.

Na mesma favela, Cavalcanti e seus colegas seguiram por uma rua de comércio popular. Por causa dos riscos que se corre ao entrar em comunidades cariocas, fiquei atento para algum sinal da presença de traficantes ou da polícia nas ruelas do bairro. Mas não havia. “Olha essa pracinha!”, disse Cavalcanti, um homem alto e magro, que não deixa os detalhes passarem despercebidos. “Repara na qualidade dos materiais que não enferrujam. Na mão de tinta recém-retocada. E olha aquela escola, como é bonita.” Era o Instituto Educativo La Candelaria. Assim que o Estado chegou a Santo Domingo Sávio, a escola foi uma das primeiras construções. Fica perto de um mirante, de onde os turistas observavam a cidade. “Virou um símbolo importante para quem vive aqui. Antes era tudo dominado pela milícia paramilitar”, disse o secretário de Segurança Cidadã do Recife.

A segunda parada de Cavalcanti e sua equipe foi a favela de Moravia, que fica perto de Santo Domingo. Havia ali, nos tempos em que a criminalidade imperava em Medellín, um lixão onde famílias miseráveis catavam resíduos, e gangues despejavam os corpos de pessoas assassinadas. O lixão foi removido e no lugar foram instalados o Centro de Desenvolvimento Cultural de Moravia e um dos maiores jardins urbanos da Colômbia.

O centro cultural é um prédio amplo de tijolos vermelhos (como as casas no entorno), com um anfiteatro no meio, onde jovens que ali aprenderam a arte circense se apresentam para crianças da comunidade. Jasmine Palácios, de 45 anos, sua filha pequena e um sobrinho estavam assistindo a um desses espetáculos. Ela é técnica em comércio exterior e cresceu em Moravia. “Minha infância foi muito dura. Minha mãe foi abandonada pelo meu pai e teve que trabalhar fora de casa para nos sustentar. Ficávamos sozinhos, eu e meus irmãos. Garotos de nossa idade eram assassinados na frente de nossa casa”, disse. A visão de cadáveres é uma espécie de trauma que acompanha quem viveu em Medellín nas décadas de 1980 e 1990.

Palácios contou sobre outro tipo de violência enfrentado por sua geração. “Naquela época, as garotas eram abusadas pelos criminosos ou forçadas a se relacionar com eles. Muitas jovens engravidavam cedo. Minha mãe tinha medo de que o mesmo acontecesse com a gente”, recordou. “Mas as coisas mudaram. Medellín varreu a violência e apareceram oportunidades para estudar, aprender, descobrir coisas novas. Eu me formei. A cidade em que minha filha vive hoje é completamente diferente daquela da minha infância. Vejo para ela oportunidades que minha mãe não enxergava para mim. Não tinha um lugar como esse, que a gente pudesse frequentar.”

Toda obra urbanística em bairros pobres de Medellín é também uma espécie de memorial. Na parede do Centro Cultural Moravia há fotografias em preto e branco do antigo lixão, com crianças brincando na sujeira e as casas miseráveis em volta. Uma das fotos mostra um casebre de madeira com uma placa na frente: “Comitê Popular – A casa é um direito, não uma esmola” – imagem que ressalta a importância das organizações de bairro na luta por direitos em Medellín.

Cavalcanti apontou um prédio de seu projeto preferido na cidade: o dos jardins de infância do Programa Buen Comienzo (Bom começo), que, no conjunto, atendem 74 mil crianças na primeira infância em toda a cidade. Estão instalados em locais onde o desemprego é alto e os pequenos correm risco de desnutrição. A criança recebe assistência educacional e de saúde, ao mesmo tempo que sua família tem ajuda financeira.

De Moravia, Cavalcanti e seus colegas seguiram para a Comuna 13, a favela mais famosa de Medellín, por ser considerado um dos territórios mais violentos da cidade. O objetivo do grupo do Recife era visitar a ONG Casa de Las Estrategias, que pesquisa a criminalidade e desenvolve projetos de reafirmação da cidadania e de desnaturalização da violência entre os jovens. Na entrada do local, havia uma bandeira colorida em que se lia: “Nada justifica o homicídio.” A economista Camila Uribe, diretora executiva da instituição, explicou que garotos de bairros muito pobres ainda se organizam em gangues e se envolvem com o crime. Os homicídios ocorrem não apenas em razão de disputas do tráfico de drogas mas de brigas entre os jovens. “Eles não pedem permissão para os chefões do tráfico para matar. A maioria mata e morre por questões fúteis”, disse Uribe. “Em Medellín, ocorrem em média quinhentos homicídios por ano. Estimo que, desse total, dez foram cometidos pela polícia.”

Se a polícia não é tão letal para jovens em Medellín quanto é nas cidades brasileiras, ela tampouco se interessa em protegê-los. “Entrevistamos policiais de Medellín para uma pesquisa e descobrimos que 40% deles não estão dispostos a proteger um jovem desses territórios. Uma das alegações dos policiais é que eles não têm ferramentas institucionais para dar proteção”, afirmou Uribe. “Mas há também muita estigmatização. Alguns policiais dizem: ‘Esse problema é dos chefões do crime, eles que resolvam.’”

Todo enfeitado com bandeirinhas coloridas, o morro da Comuna 13 estava lotado de turistas naquele sábado. Sobe-se até lá não por teleférico, mas por escadas rolantes. Em cada patamar, guias da própria comunidade oferecem passeios, como o que faz um circuito por muros grafitados. Por toda parte, havia um clima de festa parecido com o que se vê nos fins de semana na região boêmia da Lapa, no Rio de Janeiro.

A guia turística Cristina Zapata, de 32 anos, cresceu na Comuna 13. No passado, em um sábado como aquele, ela estaria em casa, pois eram frequentes os tiroteios na favela. Por isso, a guia comemorava o vaivém de gente na porta de sua casa, onde vive com o pai, ex-pedreiro, e a mãe, ex-babá. Atualmente o sustento da família vem da lojinha de suvenires que montaram na frente de casa e do trabalho de Zapata como guia. “As escadas rolantes mudaram nossa vida. Depois que Medellín foi considerada a cidade mais inovadora do mundo, até Bill Clinton veio aqui e, depois, não pararam de chegar turistas”, disse ela.

“Hoje, quem visita Medellín não pode deixar de vir à Comuna 13. É parte da identidade da cidade”, afirmou, orgulhoso, o estudante Juan Sebastian, de 17 anos. “Cada família passou a lutar para que um filho não entrasse para o crime e se mantivesse na escola. Os filhos mais velhos tinham a responsabilidade de dar o exemplo para os mais novos, evitando contato com a criminalidade.”

Quando já estava escurecendo, um micro-ônibus na entrada da favela nos levou até o metrô. Da janela, Cavalcanti exclamou: “Repare naquele banco de praça! É o mesmo usado nos bairros mais ricos da cidade. Eles ficam um de frente para o outro. É para estimular as pessoas a sentarem uma de frente para a outra e conversarem.” Ele contou que Jorge Melguizo costuma lhe dizer que o contrário de insegurança não é segurança, mas convivência. “Em espaços onde as pessoas convivem, elas se protegem. Antes não era assim”, disse Cavalcanti. “Chegou a um ponto aqui que não importava mais se você era rico, pobre ou de classe média: a violência mais cedo ou mais tarde iria te atingir. Medellín estava no fundo do poço quando decidiu reagir. Acho que nós, no Brasil, ainda não chegamos tão fundo. Mas estamos nos aproximando.”

Medellín ainda enfrenta difíceis desafios, como outras metrópoles da América Latina. Entre 2019 e 2020, por causa da pandemia, o número de pessoas em situação de pobreza aumentou de 921 mil para 1,2 milhão, nos cálculos da entidade privada Medellín Cómo Vamos, que faz análises sobre a qualidade de vida na cidade.

Segundo Melguizo, isso pode botar abaixo os esforços que a cidade fez nos últimos vinte anos. “Hoje, muitos jovens entendem que seu futuro pode estar em outro negócio que o narcotráfico. Mas a pandemia trouxe a preocupação de que eles abandonem as escolas”, afirmou, em dezembro. “Estamos há dois anos com escolas fechadas fisicamente. Se os adolescentes se retirarem do mundo educacional, não terão chance no mercado de trabalho, que também foi afetado. Logo, suas famílias voltarão a uma espiral de pobreza, e os jovens podem ver oportunidades no crime.”

O principal interlocutor entre os gestores públicos brasileiros e os colombianos é Murilo Cavalcanti, o secretário de Segurança Cidadã do Recife. Convidado por ele, Melguizo chegou à capital pernambucana para explicar o modelo de Medellín a uma plateia formada por secretários municipais e funcionários da Prefeitura do Recife, em 16 de dezembro passado. “Em Medellín, paramos de olhar o mapa da cidade para aplicar políticas baseadas em áreas. Fomos ver os indicadores por bairro e ouvir suas necessidades. É preciso reconhecer, valorizar e potencializar o que há em cada território. Quais são os bairros mais violentos? O que eles precisam? A transformação lá não foi só urbana, mas cultural. Qualificar o serviço público não é só uma questão estética, mas também ética”, disse Melguizo aos ouvintes.

“A que horas fecham os museus no Recife?”, ele perguntou, de repente, ao responsável pela pasta municipal de Cultura. O funcionário respondeu que era às 17 horas. “Mas as pessoas trabalham até depois desse horário. Precisamos que os serviços funcionem até mais tarde. Os espaços que deixamos vazios à noite são ocupados por vendedores de drogas”, continuou Melguizo. “O Rio recebeu aportes financeiros para a Copa do Mundo e o que restou foram projetos que agora estão fechados. O teleférico que deveria ligar as favelas ao restante da cidade não funciona. Não foram perguntar às mulheres das comunidades onde deveria ser instalada uma escola.”

A conversa com Melguizo aconteceu no auditório do Centro Comunitário da Paz (Compaz) Dom Hélder Câmara, na favela recifense do Coque. O Compaz é um projeto formulado para áreas pobres em que há grande incidência dos chamados crimes violentos letais intencionais. São quatro unidades no Recife, que atendem mais de 40 mil pessoas cadastradas. Feito com parceria público-privada, todas têm a mesma característica: equipamentos modernos, bem preservados, e boa oferta de serviços públicos. Os moradores dispõem de biblioteca, avaliações médicas numa sala ambulatorial, atividades para a terceira idade e cursos de programação de computador, empreendedorismo, artes marciais, capoeira e balé, entre outros. O projeto Compaz é claramente inspirado no que foi feito em Medellín, inclusive no que diz respeito à governança. Onze secretarias de governo atuam articuladas para zelar pelas unidades, sob o comando da Secretaria de Segurança Cidadã.

A primeira unidade inaugurada, em 2016, foi o Compaz Governador Eduardo Campos, uma construção de 13 mil m2 no topo do bairro Alto Santa Terezinha, na Zona Norte do Recife. O centro comunitário atende os moradores do bairro, que tem 7 703 habitantes, e também os do entorno: Água Fria (43 529 habitantes), Linha do Tiro (14 867) e Alto José Bonifácio (12 462). Em fevereiro passado, somente neste Compaz havia 15 mil pessoas cadastradas.

Articulador social da unidade, Elisandro Damasceno chama a atenção para as casas ao redor do prédio, mais bem preservadas que as mais distantes. “É um efeito do urbanismo social. Quando você chega com uma intervenção como este prédio, mexe com a autoestima da vizinhança ao redor. Os moradores querem acompanhar a transformação e dão um trato em suas casas”, diz Damasceno, que cresceu no Alto Santa Terezinha, é formado em engenharia agrária e fez pós-graduação em urbanismo social no Insper. “Tanto mais que, antes de construí-lo, nós levamos a maquete do projeto nas reuniões comunitárias para saber quais serviços os moradores gostariam que tivesse.”

Debaixo de Sol forte, Lohana Spears, de 27 anos, andou por vinte minutos do bairro Dois Unidos até o Compaz Governador Eduardo Campos. Queria apresentar seu currículo numa agência de empregos que fica na unidade. “Vim tentar um trabalho. Se tiver vaga em salão de beleza ou restaurante, vai ser ótimo. Para quem é trans, é muito difícil achar alguma coisa”, disse a jovem. Era a primeira vez que ela ia ao Compaz, que lhe foi indicado por uma vizinha. “Tem lugares que eu evito ir porque nem sempre sou bem tratada. Mas aqui me trataram muito bem. A recepcionista disse que dá para fazer cursos de graça. Mas hoje estou mesmo atrás é de um emprego. Não quero depender mais dos meus pais.”

Elson Ferreira, de 17 anos, estava sentado na escadaria que dá acesso ao vão livre do prédio. Aproveitava o wi-fi gratuito para ver vídeos no celular. Ele está no segundo ano do ensino médio e fez uma aula de capoeira no Compaz. “Tenho muitos projetos na minha cabeça. Penso em fazer medicina, mas o que eu quero mesmo é dar palestra”, disse. “Quero falar num espaço desses para o meu povo. Eu venho em quase todas as palestras daqui. Aqui tem de tudo, mas tem uns carinhas no bairro que não se interessam. Tem que chegar neles.” Perguntei o que ele faria se fosse gestor do Compaz. Ferreira se animou: “Eu ia fazer um negócio com o nome Minha Favela, Minha Gente. Chamaria o [youtuber] Whindersson Nunes pra falar. Ele é nordestino e veio da pobreza igual a gente. É uma inspiração para qualquer garoto da minha idade. Eu ia dizer: ‘Whindersson, dá o recado pra molecada do meu bairro. Qual é a atitude certa?’ Duvido que os garotos daqui não iam vir e ouvir o que ele tem a dizer.”

Na favela do Coque, onde fica o Compaz Dom Hélder Câmara, vivem 12 629 pessoas. É um dos lugares mais pobres do Recife. Antes da inauguração do centro comunitário, não havia ali nenhuma instituição do Estado, seja para segurança ou cultura e lazer. Agora, as crianças da região vão direto da escola para o Compaz, onde podem jogar bola, brincar no parque e usar o computador da biblioteca, além de se refugiar do calor no prédio climatizado. Ana Campelo, gerente-geral da unidade do Coque, percebeu que algumas crianças que vivem em moradias precárias passaram a usar todo dia os banheiros do Compaz, onde há papel higiênico disponível. Assim como toda a estrutura, os banheiros estavam muito limpos quando a piauí visitou o local, entre 13 e 16 de dezembro.

No Coque, a desburocratização dos serviços ainda é uma meta a ser alcançada. Quando Campelo avisou a um grupo de crianças que mais tarde haveria uma festa de Natal com Papai Noel, uma menina, ao me ver com uma caneta e bloco de papel, achou que eu fosse um funcionário do local e me perguntou: “Pode me dar uma senha? Tem que trazer documento?” Não precisava. Mas essa era a maneira que ela entendia a relação com um equipamento público. Um garoto perguntou a Campelo se poderia entrar na piscina. “Pode, mas tem que vir com um responsável para fazer seu cadastro para as aulas de natação”, explicou a gerente-geral. “Mas eu queria entrar só para tomar banho, está muito calor”, disse o menino. A piscina do Compaz Dom Hélder Câmara, entretanto, tem finalidade educativa.

Há também serviços para os adultos em todas as unidades do Compaz. Na sala do projeto municipal Mãe Coruja são dadas orientações sobre amamentação e cuidados básicos com o recém-nascido. As mulheres dispõem também de uma sala com assistente social pronta para atender casos de violência doméstica. Dali, elas podem ser encaminhadas para delegacias, a fim de pedir medida protetiva contra os agressores, receber apoio para frequentar abrigos em casos extremos e obter atendimento psicológico. Há ainda uma sala de mediação de conflitos extrajudiciais, à qual os moradores recorrem para resolver problemas como pedidos de pensão alimentícia, dívidas feitas no bairro e briga entre vizinhos. Caso as pendências não sejam resolvidas e uma das partes quiser, o caso pode ser encaminhado para a Justiça ou para a Defensoria Pública.

A Prefeitura do Recife tem ainda o Programa Mais Vida nos Morros, que promove intervenções urbanísticas em bairros pobres e melhorias em casas precárias. Hoje, a cidade é uma referência para outras no país em urbanismo social. Em dezembro, recebeu uma comitiva do governo piauiense para conhecer os Compaz.

Em 2007, quando Pernambuco atingiu a taxa de 4 557 mil homicídios no ano, o governo do estado lançou o Programa Pacto Pela Vida. O professor José Luiz Ratton, do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), foi um dos idealizadores e coordenou o mecanismo de consulta à sociedade civil. O projeto criou um comitê de gestão, diretamente ligado ao governador, para acompanhar os indicadores de violência e distribuiu suas ações em 26 áreas integradas de segurança na região metropolitana e no interior de Pernambuco, com trabalho conjunto das polícias militar e civil, priorizando a investigação dos crimes e a proteção às pessoas. “Demos gratificações para o policial que reduzisse práticas de homicídios. O importante naquele momento era diminuir mortes. E cada comandante era cobrado em sua área”, conta Ratton. Em 2013, o número de homicídios caiu para 3 124 mil casos.

O Pacto Pela Vida ganhou prêmios, virou referência no país, mas deixou de ter acompanhamento e, como as experiências no Rio de Janeiro, também entrou em declínio. “Não foram implementadas as políticas de prevenção primária, secundária e terciária, voltadas para a redução da violência contra mulheres, jovens, LGBTQIA+ e pessoas negras, como estava previsto inicialmente”, diz Ratton. Em 2014, os índices de homicídios voltaram a crescer, com 3 358 casos – chegando a 5 419 casos em 2017. No ano seguinte, caíram de novo. Em 2021, foram registrados 3 370 homicídios.

Apesar de reconhecer a importância do Compaz como instrumento de cidadania, Ratton é cético quanto à capacidade de esse projeto dar uma resposta mais direta no combate à criminalidade. “O Compaz é um equipamento social maravilhoso, mas o impacto na redução da violência é limitado. Vão lá mães, crianças e jovens que estão na escola. Quem frequenta o local já não pratica violência de forma sistemática vinculada a grupos armados”, diz ele. “Qual é o efeito provável do Compaz? A presença do Estado por meio do equipamento inibe alguns dos comportamentos violentos no entorno. Efetivamente, o Compaz goza de uma legitimidade social que ao menos regula indiretamente os mercados ilícitos. Mas é uma diminuição da violência sem foco. Tanto que o Recife não sai de um número parecido de homicídios, mesmo com o Compaz se multiplicando pela cidade.”

Para Ratton, o centro comunitário poderia trazer para sua estrutura projetos que estabelecessem diálogos com quem vive a realidade do crime. “Não é incompatível com o Compaz ter programas de reinserção de egressos do sistema prisional em que eles sejam treinados para mediar conflitos nessas áreas. O mercado de drogas é imortal e invencível. O que se pode fazer é reduzir a violência no mercado de drogas, o que já é um ganho enorme para a sociedade.”

O problema também tem raízes mais fundas – como a situação econômica e política do país. No bairro Alto Santa Terezinha, próximo do Compaz, ocorreram dois casos de crimes letais em 2016, ano da inauguração da unidade. Em 2018, não houve nenhum. Mas, a partir de então, com o agravamento da crise política e econômica, os números voltaram a crescer, até atingir sete casos no ano passado.

Murilo Cavalcanti acredita no potencial do Compaz para reduzir crimes violentos, mas acha que a efetividade do projeto vai além dos números. “Há um impacto que não é mensurável, que os colombianos chamam de cultura cidadã, quando as pessoas do entorno deixam de jogar lixo na rua, depredar o patrimônio público, destruir os ônibus que atendem aquela região. E eu acho que o Compaz tem sido uma peça importante nisso, na disseminação de uma cultura não violenta, de mostrar que não se deve fazer justiça com as próprias mãos”, afirma.

Para a professora de segurança pública e ativista Eliana Sousa Silva, que dá aulas na pós-graduação em urbanismo social do Insper e é fundadora da ONG Redes da Maré, do Rio de Janeiro, os projetos de urbanismo social podem ter um caráter preventivo, como complemento de políticas de segurança pública. “Esses centros são uma oferta para a juventude pobre ter outras perspectivas de cidadania que transformem a relação deles com a violência.” Mas ela ressalta que os projetos não podem existir sozinhos. “Devem vir acompanhados de uma ideia abrangente e estrutural do direito dos cidadãos a políticas públicas. Senão, correm o risco de ser uma obra vazia.”

Aliar projetos de urbanismo social com os de segurança pública é uma prática que começa a se disseminar no Brasil. No Pará, criou-se o Projeto Usina da Paz, parte do programa estadual Territórios da Paz, que articula segurança pública com ações de cidadania. Um Complexo Comunitário Usina da Paz já foi inaugurado em Ananindeua, e outros nove estão previstos. No Ceará, existe a Rede Cuca. Em Alagoas, há o Programa Vida Nova nas Grotas, uma parceria do governo do estado com a ONU-Habitat (Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos), que faz intervenções urbanísticas em bairros pobres de Maceió.

Numa tarde de dezembro, Ruan e Joanderson, ambos com 10 anos, passavam na Estrada Icuí-Guajará, em Ananindeua, no Pará, e ficaram curiosos com os dois prédios da Usina da Paz. Erguidos havia dois meses, as construções grandes diferem em tudo do que se vê naquele bairro, de casas térreas muito simples. Os meninos decidiram entrar em um deles. Depararam com salas de música, oficinas e biblioteca equipada com computadores. Há, no total, oitenta serviços gratuitos de esporte, lazer, educação, saúde e profissionalização. Quando uma funcionária explicou que era tudo gratuito, eles arregalaram os olhos.

Ananindeua, na Região Metropolitana de Belém, é a segunda cidade mais populosa do Pará, com 540 mil habitantes, e as ruas em torno da Usina da Paz são ainda mais pobres que as do bairro Alto Santa Terezinha, no Recife. Línguas negras de esgoto sem tratamento saem das casas e cruzam ruas sem asfalto.

Em 2018, Ananindeua alcançou a exorbitante taxa de 92,47 homicídios por 100 mil habitantes, que no ano seguinte baixou para 43,91, segundo o Atlas da Violência. Por isso, foi a primeira cidade do Pará a receber a Usina da Paz, inaugurada em outubro do ano passado em um terreno de 10 725 m2. A área construída é de 4 103 m2, com dois prédios principais, o auditório e a quadra poliesportiva. Os prédios circulares de ferro e madeira, projetados pela arquiteta Bel Lobo, são tão surpreendentes quanto os de Medellín.

No pátio em frente aos prédios, funciona uma feira onde mulheres da região vendem seus produtos de artesanato, produzindo ali certa movimentação. Em Medellín, acontece algo parecido: nas favelas que receberam ações de urbanismo social sempre tem uma feira ou barraquinhas. Diante do ambulatório da Usina da Paz de Ananindeua, havia uma grande fila. Outra, ainda maior, se formara em frente ao Centro de Referência da Assistência Social (CRAS), onde se estava fazendo cadastro para o Programa Auxílio Brasil, para seguro-desemprego e outros benefícios do governo. A biblioteca, porém, estava vazia naquela tarde de sexta-feira.

Em visita ao local, o educador Ricardo Balestreri, titular da Secretaria Estratégica de Articulação da Cidadania do governo do Pará, abriu a porta de uma sala: era um curso de corte e costura, com mais de vinte alunas. Entre elas, Edna Valesca, de 46 anos, que frequenta a Usina da Paz de segunda a sexta. “Além do curso de costura, acompanho minha filha, que tem epilepsia e retardo mental leve, nas aulas de reforço de português e matemática. Com o que aprendi aqui ajudo meu marido nas despesas de casa, costurando e vendendo bolsas e aventais”, disse a estudante, que mora no bairro desde que nasceu. “Nunca teve nessas bandas nada oferecido por governo nenhum. É tudo uma novidade. Aqui dentro passa uma sensação de segurança. A gente que é mãe quer proteger nossos filhos. É muita violência lá fora.”

“São décadas de abandono nessa região. É um desafio oferecer a experiência de dispor de serviços do Estado e fazer a população abraçar esse equipamento”, afirma Balestreri. A Usina da Paz Icuí-Guajará é dirigida por um coronel da reserva, Marcos Lopes, que listou os principais crimes que costumam ocorrer nas cercanias: violência doméstica, homicídio, latrocínio, roubo e violência sexual contra menores.

Há mais problemas em Ananindeua: 67,6% das pessoas não têm acesso à água encanada e 97,9% não têm rede de esgoto, segundo dados de 2019 (os mais recentes) do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS). Balestreri reconhece que há problemas de infraestrutura, mas acredita na capacidade irradiadora de transformação do espaço urbano por meio de projetos como o Usina da Paz e o Compaz. “O primeiro fator é o da autoestima que esses aparelhos provocam na população. O segundo, é que ele é motivacional para a gestão pública. Quando você começa a cuidar de um bairro, você insere na realidade um elemento novo, o de que o território merece mais atenção e atrai mais investimento.” Ele deixa clara a diferença entre Medellín e o que está sendo feito na periferia de Belém: “Medellín passou por um processo de reformas urbanas mais amplas. É diferente do que nós estamos fazendo aqui: um programa de inclusão social oferecido pelo Estado, mas com grande possibilidade de transformação do entorno.”

Tomas Alvim, do Insper, destaca outra diferença essencial entre o projeto de Medellín e os que costumam ser feitos no Brasil. “O urbanismo social colombiano tem sobrevivido há vinte anos com mudanças de prefeitos e partidos e ideologias distintas. Projetos que foram construídos com o povo e para o povo. Isso é fundamental para que políticas públicas sobrevivam no longo prazo”, diz. “É diferente do que ocorre no Brasil. O Bolsa Família teve sua gênese no governo Fernando Henrique, se aperfeiçoou no governo Lula e veja o que está acontecendo agora. Um projeto vencedor de distribuição de renda prestes a ser extinto. Isso dificilmente aconteceria em Medellín.”

Cavalcanti afirma que, sendo o Compaz um projeto não de governo, mas da população, isso pode impedir que seja descontinuado em futuras gestões. O Compaz sobreviveu à troca de governo municipal em 2021, de Geraldo Julio para João Campos – mas eram ambos do mesmo partido, o PSB. Pode ser a exceção que confirma a regra – e a regra tem sido, por razões diversas, de descontinuidade absoluta.

Tome-se o caso do teleférico que atendia às comunidades do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, onde vivem cerca de 180 mil pessoas. Inspirado no projeto de Medellín, foi inaugurado em julho de 2011 e transportava 10 mil passageiros por dia. Ao viajar nele, a francesa Christine Lagarde, então diretora do Fundo Monetário Internacional e atual presidente do Banco Central Europeu, chegou a dizer, à guisa de elogiar o teleférico, que se sentia “numa estação de esqui” dos Alpes. Em outubro de 2016, pouco mais de um mês depois do fim da Olimpíada no Rio, já não havia mais o teleférico do Alemão. Teve uma vida tão curta quanto o do Morro da Providência.

Em Poá, município da Região Metropolitana de São Paulo, fica a ONG Gerando Falcões, comandada por Edu Lyra, que atua em rede com várias favelas brasileiras para pensar soluções para a pobreza. Uma dessas parcerias foi com o Morro da Providência, no Rio de Janeiro, por intermédio da ONG Instituto Entre o Céu e a Favela. O projeto Favela 3D dividiu a Providência em dezesseis microrregiões e ouviu os moradores sobre suas demandas em áreas como saúde, cidadania, cultura, educação, autonomia da mulher, geração de renda, entre outros.

A partir daí, chegou-se a várias propostas, como criar uma escola de ensino médio perto de uma das microrregiões que não dispunha de nenhuma. Os alunos precisavam sair da favela para chegar a uma escola em outro bairro. “Nesses casos estamos falando de pobreza também. Um jovem que trabalha o dia todo para sustentar a família acaba desistindo da escola porque ela está longe de casa. E tem aqueles que nem sequer têm dinheiro para se deslocar. A gente percebe como a falta de acesso a equipamentos públicos impede o desenvolvimento dos moradores. Em outras microrregiões, uma creche pode fazer mais falta que uma escola”, diz Cintia Sant’anna, que cresceu na Providência e fundou a ONG Instituto Entre o Céu e a Favela, que dá aulas de reforço escolar, cursos de qualificação profissional para as mulheres e de teatro.

As propostas do projeto Favela 3D foram colocadas na mesa e apresentadas à Prefeitura do Rio de Janeiro. O prefeito Eduardo Paes (PSD) sinalizou que pode juntar as secretarias para ajudar a melhorar a qualidade de vida na Providência. A meta para a execução das melhorias é de dois anos. A piauí perguntou a Sant’anna se, em 2024, a Providência seria um território menos pobre. “É tudo no que acredito neste momento. Se eu deixar de acreditar, nem levanto da cama.”

Fonte da matéria: Medellín: inspiração para resgatar as cidades brasileiras – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/outrasmidias/medellin-inspiracao-para-resgatar-as-cidades-brasileiras/

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