Sociedade

Hélio, o morador de favela que busca dar ‘nome aos números’

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Jeniffer Mendonça“Tá todo todo mundo filmando, fizeram uma injustiça com o moleque!”, grita um homem que mostra um jovem negro caído no chão e baleado, ao lado de policiais militares em pé em frente a uma quadra de esportes. Um dos soldados leva para a viatura um adolescente negro que pressiona uma camisa em cima do ombro, onde foi atingido por um disparo, e as imagens a seguir identificam moradores da Favela da Ilha, na região de Sapopemba, na zona leste da cidade de São Paulo, em desespero tentando descobrir para onde o menino foi levado.

De moletom preto, Hélio Augusto de França Teixeira, 39, aparece pedindo calma à população. “Eu tinha visto sirene de viatura e eles correndo atrás de um carro quando deram vários tiros, fui atrás de moto e o menino estava jogando bola na quadra e o outro não tinha arma”, lembra. “Foi aí que eu comecei a filmar. Não sei se porque eu estava com um blusa do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) , porque eu trabalho com estamparia, o PM deu uma recuada e foi o tempo de todo mundo vir atrás filmando”, diz ao recordar do registro de outubro de 2021, no qual aponta que os dois jovens foram baleados injustamente e cujos vídeos feitos por ele e pelos moradores foram encaminhados à Corregedoria.

Esse não é o primeiro e nem o último caso de violência policial com que Hélio tem contato. O designer gráfico fundou o coletivo Nome dos Números para denunciar casos de violência contra a periferia há oito anos, quando a Favela da Ilha viveu meses de terror. “Foi o primeiro caso que eu me envolvi diretamente e que fui procurar a Corregedoria da PM sobre o que estava acontecendo. Mas não só não me receberam como começaram a dizer que iam multar meu carro se não eu ficasse quieto”, lembra.

Tudo começou na antevéspera do Natal de 2013, quando o PM Edmar Rodrigo Exposto Gomes, 21, foi morto a tiros na comunidade após uma perseguição a um suspeito. Colete e arma do policial foram roubados e assim como também a paz da favela nos dias seguintes. “Começou um toque de recolher, os policiais fardados vinham fechar comércio, jogaram bombas de gás na laje da casa de uma família que fazia churrasco para ninguém comemorar o Natal”, conta Hélio, que mora na favela desde criança. Na época, fotos que ele fez serviram para uma reportagem do Brasil de Fato, de 14 de janeiro de 2014, denunciando as violações. “Os policiais invadiam as casas e saíam perguntando quem tinha matado o policial”, prossegue.

“Primeiro, os atiradores balearam três meninos nas pernas, ninguém morreu, mas depois veio a chacina”. Em 28 de janeiro de 2014, ocupantes de um veículo H20 dispararam contra pessoas na rua: três morreram e uma ficou ferida. “Foi por isso que a gente criou [o coletivo] com esse nome, para contar quem eram essas pessoas, onde viviam, o que faziam, porque a favela sempre é vista como estatística”, explica Hélio, que rejeita o título de liderança comunitária. “Tem lutas que são maiores do que a gente. Eu não comecei uma luta, a gente assume o que outras pessoas começaram”, explica. “A gente não é dono da comunidade, dono de nada, a gente participa da luta e tem funções nela”.

Favela onde Hélio vive já viveu diversas violências de Estado

Favela onde Hélio vive já viveu diversas violências de Estado

A partir dali, o coletivo passou a denunciar não apenas os casos de violência que aconteciam na zona leste, mas também em outros bairros e cidades da região metropolitana de São Paulo. Um desses casos aconteceu em maio de 2014, quando cinco pessoas foram mortas numa praça no bairro da Brasilândia, na zona norte da cidade, quando o Nome dos Números assinou uma reportagem com o jornalista Bruno Paes Manso no jornal O Estado de S. Paulo. Outra denúncia foi em novembro de 2021, quando duas pessoas foram mortes em um ataque no mesmo lugar onde dois anos antes ocorreu uma chacina.

No entanto, até hoje a morte do PM em 2013 traz consequências. “Na época, eu cheguei a receber um SMS [no celular] de ameaça anônima, com a mensagem de que ‘enterro de herói é bonito’”, revela. Um morador da favela chegou a ser acusado pelo homicídio DO PM?, mas acabou absolvido em um júri popular em 2016 por falta de provas.

Mesmo assim, ele e seus familiares continuam sendo alvo de abordagens truculentas, como Hélio denunciou à Ponte Jornalismo em maio de 2021. “Já aconteceram algumas vezes que a gente viu ele quase ser levado por viatura sem motivo e, por filmar, interceder, indo atrás da imprensa, do batalhão, da secretaria, a gente acredita que não aconteceu o pior”, afirma.

É assim mesmo, sempre tratando como “a gente”, no coletivo, que Hélio se refere ao trabalho não só de denúncia, mas de acolhimento no local. “Meus pais vieram de Minas Gerais, incentivaram eu e meus irmãos a estudar, então eu tenho uma biografia que me diferencia de outras pessoas que não têm uma família estruturada, não têm alternativas, mesmo morando no mesmo lugar que elas. Então, se consegui ter acesso, o objetivo é que as outras pessoas também tenham e passem esse conhecimento para frente: criar lideranças para que possam dar continuidade”, explica. “A gente não quer ser personagem, a gente quer contar a nossa história por nós mesmos”.

Conhecimento como poder

Nascido em Santo André, no ABC paulista, Hélio se mudou ainda pequeno para a zona leste de São Paulo, com os pais e dois irmãos. Primeiro, morou no Conjunto Habitacional Teotônio Vilela, no bairro de mesmo nome, depois passou a residir na Favela da Ilha, com um pouco mais de 10 anos.

“Comecei a militar com 14 anos, quando fazia curso de elétrica numa associação de moradores, depois teve um curso de marketing numa cooperativa”, conta. “Mas isso era muito uma conjuntura da época também, no final dos anos 1990, ainda no governo Fernando Henrique, tinha uma verba para projetos em periferias e tinham associações que faziam, não só em Sapopemba, mas em outros lugares”.

Além disso, desde novo frequentava a igreja e teve contato com a Teologia da Libertação, uma corrente católica que interpreta os ensinamentos de Jesus Cristo pelo olhar dos pobres e oprimidos. “Eu ia na igreja na época do Teotônio Vilela, dei uma afastada e aqui [na Ilha] eu conheci gente da paróquia daqui e encontrei uma maneira que podia juntar a fé com a vontade que eu tinha de fazer algo pela comunidade, porque não acredito que só rezar e segurar o terço funciona para mudar a realidade”, explica.

“Então, nessa paróquia daqui, eu conheci gente mais ligada à Pastoral da Juventude, que tinha uma fé um pouco mais politizada, nessa paróquia também havia uma Pastoral de Fé e Compromisso Social, que era ligada à pauta da criança e do adolescente, gente que estava mais ligada com disputa política. O partido mais forte na época aqui era o PT, mas eu acabei me envolvendo mais com o movimento contra a enchente em 2003.”

Hélio ao lado do córrego que margeia a favela onde mora

Hélio ao lado do córrego que margeia a favela onde mora

A comunidade justamente tem o nome de Ilha por ser circundada pelo Córrego do Oratório, que é um afluente do rio Tamanduateí e se localiza nas divisas com as cidades de Santo André e Mauá. As águas, quando ocorrem enchentes, também afetam as comunidades do Mangue, São Nicolau, Coral e Vila Prudente.

“Na época, teve uma enchente monstruosa, então a gente começou a bater de porta em porta na comunidade, não só aqui [na Ilha] para juntar gente e conseguir trazer o DAEE para uma reunião na Paróquia São Pedro e a gente conseguiu manter um canal de diálogo por um bom tempo”. DAEE é o Departamento de Águas e Energia Elétrica do governo estadual, responsável pelo gerenciamento hídrico.

A insistência do movimento, segundo Hélio, fez com que os piscinões no bairro Jardim Elba, em 2007, e na cidade de Mauá, em 2004, fossem implementados com dificuldade, mas ainda são insuficientes para toda a demanda urbanística e social da região, que tem desde casas de alvenaria a outras de madeira. “A gente conseguiu um acordo de que fizessem a limpeza do córrego, mesmo que ainda fosse insuficiente, mas, a cada vez que limpavam, a gente apontava um problema: por exemplo, se limpavam o rio e não limpavam a cabeceira do córrego e as proteções de margem, que se chamam gabião, não adiantava.”

Gabião é uma espécie de estrutura metálica que, entre suas funções, evita erosões. Ao passar pela favela, essas paredes eram visíveis no decorrer do córrego, mas não havia nenhum tipo de grade ou barreira de proteção para que as pessoas que passam próximo não caiam. “O gabião ajuda, mas aqui, dependendo de quando chove, a gente ainda bate nas portas avisando os moradores para colocar os móveis no alto, em cima de alguma coisa”, aponta a estudante Kethelyn Cristina, 21, que é nascida e criada na Favela da Ilha.

Hélio Augusto e a estudante Kethelyn Cristina

Hélio Augusto e a estudante Kethelyn Cristina

No dia da visita a Hélio, a reportagem viu equipes do governo do Estado fazendo obras de limpeza na Avenida Marginal do Oratório, ao lado do córrego. “Apesar de a gente pagar impostos, aqui não tem galeria de esgoto e canalização pluvial”, critica ele.

E também há outros serviços que não chegam. Por ter sido uma comunidade criada a partir da ocupação das pessoas e sem planejamento do poder público, as casas têm números irregulares, ou seja, às vezes você está à frente da altura 200 e a residência seguinte é 900 e a próxima é 10. “Os Correios não chegam, os moradores pegam algum endereço de referência e pedem para a pessoa receber”, pontua Kethelyn.

“Transporte por aplicativo, tipo Uber, ou iFood, também não chegam porque consideram a favela como área de risco. É bem difícil”. A própria reportagem da Ponte teve dificuldades para conseguir um carro da Uber após a entrevista, que indicava que a área da Favela da Ilha era uma zona que não era atendida pelo serviço.

Depois de se envolver com o movimento para regularizar a situação hídrica da região, Hélio entendeu que a comunicação era uma ponte necessária para as demandas locais,e ele mesmo mais tarde se formou em Comunicação Social com habilitação em Publicidade e Propaganda e atuou com assessoria parlamentar.

“A gente tinha proximidade com a Pastoral da Juventude, com associação de moradores, e depois do curso da cooperativa, a gente fez um jornal que se chamava A Lanterna. Isso era em 2003 mais ou menos, a gente era moleque, tinha 18, 19 anos, juntava gente que ia escrever no jornal, ia atrás do dinheiro para imprimir, ia atrás da gráfica, ia atrás de patrocínio e aprendeu bastante. Essa experiência me fez ver que o campo da comunicação é importante para trazer outras narrativas.”

Sem contar as atuações que não aparecem no campo da denúncia, como encaminhamento a órgãos públicos. “A gente tem tido demanda, por exemplo, de documentos. Casos como pessoas que cumpriram pena e têm uma multa para pagar e com essa pendência não consegue tirar título de eleitor, fica sem CPF, não consegue arrumar um emprego e abrir uma conta num banco, e sem ter como trabalhar, ele vai viver do quê? Quando vai ver, só tem uma biqueira perto de casa, para onde ele vai recorrer?”, questiona Hélio.

Além das denúncias de violações, Hélio aponta que o direcionamento tem sido também de se fazer reconhecer a violência pela falta de acesso a oportunidades e pensar maneiras de fortalecer a comunidade.

“A denúncia é importante, e aqui tem acontecido menos [casos de violência] porque sabem que a gente denuncia, filma, mas às vezes parece que a gente tá enxugando gelo”, diz. Ele é estudante de Pós-Graduação em Economia e Trabalho na Escola Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos) de Ciências do Trabalho, onde conseguiu bolsas de estudo de graduação para alguns moradores de periferia, incluindo a Favela da Ilha. Kethelyn é uma delas. “Quando a gente tem a oportunidade, a gente tem que agarrar”, afirma a estudante. “A gente tem todos os motivos para se revoltar por causa da violência, mas a gente precisa mostrar que não é igual a eles”, prossegue ela.

De acordo com Hélio, o objetivo é qualificar moradores da favela para que eles mesmos possam ser voz ativa e que “a violência não é apenas o tiro que um policial dá”. A ideia é criar um grupo de pesquisa sobre economia, trabalho e periferia para pensar possibilidades.

“Não é porque eu sou da periferia que eu sofro o mesmo problema que um ex-presidiário sofre, de um rapaz que é negro e sofre uma violência, de um morador de rua ou de uma mulher que vai visitar o parente no presídio e é chamada de ‘marmita’, mas a partir do momento que eu ajudo a formar essa pessoa para que ela traga essa vivência, ela consegue fazer uma construção não para o momento, mas para a história”, explica Hélio. “Um diploma é um escudo para a favela”.

Outro lado

A reportagem entrou em contato com a Corregedoria da Polícia Militar para saber o resultado da denúncia de Hélio mas não teve resposta até a publicação deste texto. Também procuramos Correios, iFood e Uber para questionar sobre o motivo de os serviços não serem realizados na Favela da Ilha e também não tivemos resposta.

Fonte da matéria: Hélio, o morador de favela que busca dar ‘nome aos números’ – https://www.terra.com.br/comunidade/visao-do-corre/pega-a-visao/helio-o-morador-de-favela-que-busca-dar-nome-aos-numeros,0cd853c71001c1abbafecb9b9b0a8ccass900863.html

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