RAFAEL R. IORIS – Considerações sobre a crise da democracia e a rearticulação da lógica neoliberal
A surpreendente ascensão ao poder de Donald Trump, nos EUA, em 2016, e de Jair Bolsonaro, no Brasil, em 2018, representou não só problemas graves nas estruturas políticas de tais países, como também uma crise mais ampla na lógica de funcionamento da democracia liberal, que parece mesmo estar enfrentando hoje um dos seus maiores desafios. Tragicamente, ao invés de oferecer formas reais de atender às demandas por novas e mais eficientes práticas de representação política, tais líderes, e seus similares ao redor do mundo, aceleram a própria crise estrutural em curso.
De fato, como iterações renovadas de demagogos autoritários do passado, Trump e Bolsonaro aprofundam a deslegitimação da representação política mediada, mas como resposta propõem não o aprofundamento da lógica democrática, mas sim a fragmentação do tecido social, onde ‘escolhidos’ serão protegidos pelo grande líder, enquanto ‘rejeitados’, de toda natureza, teriam que ser excluídos, quando não mesmo eliminados por completo.
Esse salvacionismo midiático se vale mesmo da xenofobia e do recrudescimento das divisões como instrumentos centrais da sua lógica. E foi assim que, de maneira concreta, Donald Trump exacerbou a imagem do imigrante ameaçador, ao passo que Jair Bolsonaro reativou, de maneira tacanha mas ainda assim efetiva, a imagem rediviva da ameaça comunista. Mas, embora eficazmente promovidos nas redes digitais, tais dispositivos retóricos não teriam sido suficientes para trazer ao poder tais personagens não fosse o caso de muitos eleitores que já se sentiam fortemente frustrados com a política institucional, assim como com várias mudanças de viés econômico, demográfico e cultural ocorrendo em seus respectivos países ao longo dos últimos anos.
É fato que as muitas transformações (políticas, ideológicas, econômicas, etc.) que vêm se desenrolando de maneira rápida desde o final da Guerra Fria têm, sim, revelado, cada dia mais claramente, seus limites e contradições. Lembremos que o triunfalismo neoliberal dos anos 1990, aliado à imposição de ajustes econômicos duríssimos no Sul Global e à globalização espacial do processo produtivo, amparava-se na noção de ganhos que, se ocorreram para alguns, levaram também ao aprofundamento de desigualdades estruturais de toda ordem. Além disso, tal processo vem ocorrendo em meio a uma ampla complexificação das demandas de grupos sociais cada vez mais diversos, muitas vezes auto-excludentes, enquanto nossa lógica básica de representação continua ancorada em preceitos e funcionamentos formulados ainda no século XIX.
Mas antes que joguemos a criança fora com a água do banho, cabe lembrar que se o Liberalismo político não nasceu democrático, ao longo dos últimos 250 anos seu escopo e meios para buscar garantir não só a vontade das maiorias legitimamente representadas, mas também para assegurar a participação de minorias religiosas, étnicas, raciais, culturais ou ideológicas no processo deliberativo, expandiram-se de forma importante, mesmo que certamente não ideal.
É certo também que o liberalismo se ocupou historicamente mais com a questão da igualdade legal e formal do que com a consecução de igualdade das condições reais de existência. Mas ainda assim, a noção liberal de uma dignidade humana intrínseca, se não foi capaz de produzir igualdade efetiva, foi fundamental para amparar a própria agenda de promoção da igualdade ao longo da história recente. E é exatamente a centralidade da noção da igualdade formal, com potencial emancipatório inerente, ainda que historicamente limitado, que se tornou alvo da extrema direita global, em ascensão nos últimos anos.
Como sabemos, líderes de diversos países – como Viktor Orbán, na Hungria, Narendra Modi na Índia, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Recep Erdogan na Turquia, Vladimir Putin na Rússia, Donald Trump nos EUA e Jair Bolsonaro no Brasil – têm buscado erodir garantias constitucionais de grupos minoritários; destruir a independência investigativa e judicial de órgãos autônomos do aparelho de Estado; deslegitimar vozes de oposição; suprimir a liberdade de imprensa; e reprimir atores contrários a tais desdobramentos, que acabam sendo tratados como inimigos da suposta verdadeira nação. E dada a rapidez com que tais eventos têm ocorrido, assim como sua natureza complexa, não temos ainda uma base conceitual consensual para defini-los.
Por um lado, o caráter formalmente democrático e o apelo popular de tais lideranças poderia remeter-nos a um afã demasiado fácil de caracterizá-los como uma nova versão de um populismo, nesse caso, de direita. Ainda assim, entendo que talvez seja melhor caracterizá-los por meio de uma análise da experiência histórica do Fascismo, tendo em vista o estilo agressivo, a lógica persecutória, a ação destrutiva contra opositores e a promoção dos interesses do grande capital manifestadas por tais políticos. Tais elementos parecem, sim, ecoar dinâmicas anteriores embora cabe também ressaltar que a mobilização que os sustenta tende a não operar mais por meio de partidos de massas, mas, sim, pelas redes digitais, e não parece haver hoje a preocupação em prover assistência social seletiva às frações do lumpensinato adesista.
E assim, como epifenômenos de forças mais profundas, tais experiências tendem a ocorrer em momentos de crises econômicas nacionais, vinculadas a processos de reestruturação produtiva mais amplos, e do enfraquecimento do sistema partidário estabelecido. Da mesma forma, tendem a apresentar um discurso moralista que ataca o processo político formal, embora participem do mesmo. Há também uma recorrente utilização de uma lógica binária que opõe os bons aos maus cidadãos. E assim, como bem demonstra o caso de Jair Bolsonaro, o apelo do salvacionismo não se atrela hoje ao provimento de melhorias concretas de vida mas, sim, à reiteração constante, e em bom som, da vilificação do inimigo. Nesse sentido, enquanto a crítica neoliberal tecnocrática (do Estado gerente) dos anos 1990 buscava redesenhar o papel do Estado na sociedade, hoje, ataca-se a própria lógica representativa, apresentando o grande líder como instrumento de uma ação política não mediada.
Interessantemente, mais do que no centro do capitalismo, onde as políticas econômicas se demonstram cada dia mais protecionistas, busca-se em países da periferia, como no Brasil, Índia, Colômbia, etc., promover toda uma série de políticas fiscais, tributárias e regulatórias de viés neoliberal – dessa vez, por meios ainda mais autoritários. E assim, o “neofascismo” emerge hoje como instrumento central na promoção da agenda do grande capital em contextos de recrudescimento do econômico. Sua agenda não se resume mais ao ajuste econômico estrutural dos anos 1990, mas busca desmantelar princípios centrais da própria lógica e cultura democrática, como igualdade formal e acesso ao processo deliberativo formal.
Por isso, vemos cada vez mais fortemente um movimento para reverter conquistas fundamentais de grupos historicamente marginalizados por meio da deterioração dos serviços públicos básicos, eliminação de direitos de matriz econômica (trabalhistas e previdenciários) e das legislações ambientais. Minorias de todo tipo vêm, pois, sendo perseguidas em todos países onde tais lideranças chegaram ao poder e o próprio sufrágio universal vem sendo redefinido não como uma conquista civilizatória necessária para o funcionamento da democracia, mas como um privilégio de alguns que estariam usurpando a vontade de uma maioria supostamente oprimida.
Esse tem sido bem o caso dos EUA ao longo dos últimos anos, embora o processo venha de mais longe. Lembremos que o movimento neoconservador (Neo-Con), que surge no final dos anos 1960, foi fundamental para levar ao poder Richard Nixon e Ronald Reagan por meio de um discurso de viés culturalista que articulava a noção de uma maioria ameaçada por mudanças sociais em curso. Competentemente os Neo-Cons deram assim o mote para o partido Republicano articular uma visão econômica de matriz neoliberal mas que não obstante encontrou forte apoio junto ao eleitorado branco, pobre, religioso e conservador.
Ao chegar ao poder, especialmente nos anos 1980, com Reagan, institucionalizava-se a noção do “Estado como problema”, abrindo espaço para a rápida desindustrialização e financeirização da economia norte-americana. Questionava-se a capacidade, assim como a própria legitimidade do Estado como agente capaz de atender às demandas coletivas da população, aprofundando assim a própria deslegitimação da representatividade democrática como forma de dar respostas a necessidades reais crescentes de amplos setores da sociedade.
A eleição de Barack Obama, em 2008, exacerbou ainda mais o ressentimento com o sistema político formal, especialmente junto à base do partido Republicano, que se demonstrou muito receptiva aos apelos do outsider pleno, Donald Trump, em 2016. Lembremos que, sob uma retórica xenofóbica e racista, já em seu primeiro discurso de campanha, Trump demonizou a imagem do imigrante que viria ao país, especialmente da fronteira sul, não só para supostamente tomar os empregos dos norte-americanos brancos, mas também para roubar suas propriedades e estuprar suas mulheres.
Donald Trump conseguiu, assim, ativar a frustração de pelo menos duas gerações desses segmentos brancos pobres e conservadores de forma a mobilizá-los a finalmente irem às urnas animados para defender sua América. Para tanto, utilizou-se de uma estratégia inovadora de comunicação ancorada nas mídias digitais. Prometia-se uma América que renasceria das cinzas da decadência industrial das últimas décadas e da vergonha da derrota das intervenções militares, mas claro, sem adotar as estratégias corporativistas e multiclassistas consagradas nos EUA pelo New Deal dos anos 1930 e solidificadas nas duas décadas após a Segunda Guerra Mundial. Seria, sim, a “América grande de novo”, mas somente para alguns.
Na América Latina, no Brasil em particular, a onda autoritária neoliberal ganhou lastro na reação aos governos reformistas da chamada Onda Rosa, do início dos anos 2000. De maneira concreta, Pepe Mujica no Uruguai, Michelle Bachelet no Chile, Lula no Brasil, Evo Morales na Bolívia, ou mesmo Hugo Chavez na Venezuela – os principais governos da Onda Rosa – foram capazes de implementar significativas mudanças no padrão de gastos públicos, expandindo programas sociais de maneira significativa, assim como imprimir um novo tom, mais inclusivo, no debate público em relação à questão da exclusão histórica de minorias (muitas vezes, de fato, maiorias) étnicas e/ou culturais.
Mas embora tenham tentado implementar algumas novas estratégias de crescimento voltada ao mercado doméstico, tais governos seguiram um caminho de reprimarização de suas economias, valendo-se, em grande parte, da alta demanda por commodities no mercado global, fruto da pujança e voracidade da economia chinesa. Assim, embora críticos da ordem econômica global, os governos da Onda Rosa não conseguiram (muitas vezes, nem tentaram) escapar da dependência de suas economias na exportação de produtos primários, em alta demanda no mercado internacional no início do século, mas que a partir de 2010-2012, sofrem uma forte queda de preços. De fato, a partir do início da segunda década do século, os efeitos econômicos da crise do mercado imobiliário norte-americano e, de maneira associada, da liquidez e demanda globais, passam a ser sentidos pelos governos regionais de maneira contundente. O crescimento econômico registrado na região como um todo, entre os anos de 2014 e 2020, foi, na média, o mais baixo dos últimos 70 anos.
De maneira especialmente impactante, os trabalhadores, base política central dos governos da Onda Rosa, foram os primeiros a sentir a queda na produção doméstica para a exportação e, consequentemente, de seus novos níveis de consumo. Passaram mesmo a questionar de maneira surpreendentemente rápida os ganhos, certamente frágeis, que tais governos tinham promovido. Mas essa frustração e a busca por alternativas não ficou restrita aos setores mais diretamente ligados à produção para exportação. E muitas vezes fruto do trabalho crítico das mídias locais oligopolísticas e conservadoras, as ditas classes médias também se envolveram de maneira decisiva na veiculação do seu descontentamento, inclusive ocupando as ruas, arena tradicionalmente das esquerdas, desde pelo menos o processo de transição das ditaduras para democracia nos anos 1980 e 1990.
Como resultado, a região como um todo passou a experimentar uma série de crises políticas, onde a própria lógica representativa liberal seria crescentemente questionada. Mesmo grupos que tinham ganhado muito com o crescimento econômico durante a bonança do início do século, como as elites do agronegócio, se convertem rapidamente em críticos vorazes dos governos de então. Tais grupos passaram mesmo a liderar uma verdadeira cruzada pelo fim de programas sociais, que assumiram, assim, o papel metonímico de representar tudo o que estaria indo mal em um contexto de taxas de crescimento historicamente baixas.
Os primeiros governos de direita que chegaram ao poder embasados na rearticulação das forças conservadoras regionais atacaram os programas implementados pelas administrações anteriores e restabeleceram as bases da lógica neoliberal dos anos 1990. De início, seriam ainda coalizões que aceitavam a institucionalidade democrática formal. E assim, Sebastián Piñera, no Chile (2010-2014), Mauricio Macri, na Argentina (2015-2019), Pedro Pablo Kuczynski, no Perú (2016-2018), como talvez mesmo Michel Temer, no Brasil (2016-2018), ainda se ocuparam em manter o funcionamento da democracia liberal como meio inclusive de conseguir perseguir as “reformas que o país precisa”. Mas essa fase parece não ter sido suficientemente eficiente na implementação da agenda econômica das oligarquias regionais vinculadas ao capital global, crescentemente oligopolizado.
E assim, Jair Bolsonaro, no Brasil, mas também Jeanine Anez, na Bolívia, Nayib Bukele, em El Salvador, e Ivan Duque, na Colômbia, aprofundaram os ataques à lógica da representação em moldes liberais, garantidora da existência e da manifestação da oposição e de órgãos de controle do poder central – criando assim uma verdadeira situação de Choque (Naomi Klein)[1] – a fim de promover, da forma mais autoritária, e efetiva, as reformas que o grande capital buscava em um contexto global de aprofundamentos das disputas econômicas, geopolíticas e militares, cada dia mais acirradas e violentas. E mesmo que alguns desses personagens já não ocupem mais a cadeira presidencial, e que outros se encontrem enfraquecidos, o fato é que são expressões claras da obsolescência da política institucional, assim como do apelo a soluções de viés autoritário que têm sido apresentadas nos últimos anos.
Ainda que, por vezes, fora do poder, como no caso de Donald Trump, mas especialmente ainda no seu controle, a alternativa neofascista atual permanecerá como um fator central nas definições dos rumos da democracia no mundo. Entendê-la e resistir a ela são tarefas centrais que teremos que cumprir nos próximos anos.
Nota
[1] The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. New York, Picador, 2007.
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