Maurilio Lima Botelho
1.
Os textos que compõem o dossiê de capa da Margem Esquerda n. 35 oferecem uma introdução à crítica do valor. Há mais de três décadas essa abordagem teórica reformula a crítica radical do capitalismo a partir de alguns fundamentos deixados por Marx em sua “crítica da economia política”, principalmente a análise da forma valor, do fetichismo da mercadoria e da teoria da crise. Mas não se resume a isso.
É difícil precisar o momento de nascimento da chamada “crítica fundamental do valor”, pois seu caráter foi sempre o de uma “theory in progress”, mas alguns textos básicos podem ser rastreados a partir de meados da década de 1980, na Alemanha, depois que alguns militantes de esquerda, veteranos de 68, do movimento pacifista e dos grupos comunistas da década anterior criaram a Initiative Marxistiche Kritik. Os primeiros artigos da revista Marxistiche Kritik, em 1986, elaboram uma teoria da crise original, afastando as reflexões do marxismo tradicional e dando início à transição para o que passaria a ser chamado, no fim da década, de crítica do valor. Entre eles, destacam-se “A crise do valor de troca” de Robert Kurz e “A categoria trabalho abstrato e seu desenvolvimento histórico” de Ernst Lohoff. A mudança de título do periódico para Krisis, em 1990, marca a autoconsciência de uma ruptura teórica que, entretanto, estava longe de se consolidar. Exatamente no momento de decadência do socialismo real, de “refutações” à teoria marxista e de uma guinada “neorreformista” na esquerda ocidental, os autores em torno da Krisis enfatizavam a necessidade cada vez maior de uma “crítica fundamental da produção de mercadorias, do trabalho, do dinheiro, da organização social patriarcal e das relações de dominação” exatamente porque “o sistema de produção de mercadorias da modernidade se encontra num processo de crise fundamental e irreversível que desencadeia gigantescos danos a nível mundial”.
Esse esforço teórico ficou conhecido principalmente por meio das obras de Robert Kurz, cujo livro O colapso da modernização (1991)1 teve grande repercussão tanto na Alemanha quanto no Brasil. Além da revista teórica, a produção dos autores da Krisis apareceu em livros como Os bebês de Rosemary: a democracia e seus radicais de direita (1993),2 que analisa os movimentos de extrema direita da perspectiva da crise do capitalismo, e Fim de turno! Onze investidas contra o trabalho.3 O texto de maior repercussão, no entanto, é o Manifesto contra o trabalho, publicado em nove línguas.4 Em 1999, o volumoso Livro negro do capitalismo, de Kurz, marcaria um esforço de síntese histórica da constituição do capitalismo, sua imposição violenta e seu processo de crise.5
O esforço conjunto de elaboração ao longo de vários anos não deixou de produzir tensões teóricas, o que resultaria na divisão do grupo Krisis. Em 2004, Kurz e outros autores criaram uma nova associação e a revista Exit!, na qual a abordagem anterior é reformulada a partir do teorema do “valor-cisão”. Central para essa reformulação foi a pesquisa feminista realizada por Roswitha Scholz, cuja abordagem foi desenvolvida no livro O sexo do capitalismo: teorias feministas e a metamorfose pós-moderna do capital (2000).6 O projeto da antiga Krisis continuou a sair regularmente até 2012, quando encerrou a publicação em formato de revista. Desde então, seus textos são publicados na homepage krisis.org. Nesse mesmo ano, Norbert Trenkle e Ernst Lohoff, do grupo Krisis, publicaram A grande desvalorização: por que especulação e a dívida nacional não são a causa da crise.7 Outros projetos e contextos teóricos sob a influência da crítica do valor surgiram no espaço de língua alemã, tais como a revista Karoshi, de Hamburgo, e a vienense Streifzüge, com 25 anos de publicação contínua. Outros autores aproximaram-se da crítica do valor com abordagens originais, como Moishe Postone e sua análise da relação entre forma do valor e antissemitismo ou Anselm Jappe, com uma abordagem estética radical.
2.
Com o risco de uma redução “ortodoxa” das perspectivas fundamentais da crítica do valor, é possível dizer que três aspectos são centrais nessa elaboração. O primeiro se refere à interpretação do capitalismo como um processo histórico cego e abrangente de socialização pelo valor, na qual as relações sociais são plasmadas e mediadas pela forma da mercadoria e do dinheiro. A partir do momento em que a vida social foi conectada à lógica da multiplicação do dinheiro, todos os campos e elementos sociais passaram gradativamente a ser envelopados por essas formas, perdendo sua autonomia e seus princípios intrínsecos, sofrendo as coerções da rentabilidade. De modo mais ou menos demorado de acordo com a “esfera” a que se refere, esse processo de ampliação e aprofundamento das relações de mercado também se desenvolve de modo “não-simultâneo” em termos históricos e geográficos. O patamar mais elevado dessa subordinação é o da “sociedade fordista”, onde a socialização indireta pela mercadoria e dinheiro rompe de vez com os resquícios das antigas relações pessoais e critérios determinados por status, transformando quase todos membros da sociedade em mônadas mercantis. Esse processo avançado também leva progressivamente à crise das divisões classistas, estabelecidas no processo de afirmação e ascensão do capital, onde as posições sociais e os interesses conjuntos produziam representações e comportamentos políticos “coletivos”. Não é por um acaso que esse processo social de individualização coincide, no centro do capitalismo, com os limites internos dessa formação social.
No seu processo de socialização abrangente, entretanto, é preciso destacar que o mercado se estabelece em oposição a uma “esfera de reprodução” cindida: tanto uma reelaboração histórica de pressupostos históricos anteriores (o antigo patriarcado) quanto uma base necessária de seu próprio desenvolvimento, a lógica do valor se estabelece criando um momento não-mercantilizado. A coerção da multiplicação do valor é sentida num domínio público, marcado pela racionalidade abstrata econômica e pela instrumentalização política, prioritariamente masculino; já as mulheres são coagidas na esfera privada, “íntima”, doméstica, a repor as condições (físicas, emocionais e espirituais) para que o fim em si no mercado continue. Assim, de modo mais preciso, o patriarcado capitalista não é regido por uma lógica única e total determinada pelo valor, mas cria uma cisão estrutural em que este domina apenas uma esfera, sendo que a outra metade da sociedade torna-se a contraface desse brutal processo de acúmulo de riqueza abstrata. A individualização levada ao extremo, com o capitalismo avançado, também conduz a cisão sexual ao colapso. O que é aparentemente visto como “libertação sexual” pelas novas abordagens é interpretado, na crítica do valor, como um asselvajamento das relações sociais básicas: os “papéis” masculinos e femininos, historicamente impostos e cultivados na ascensão do mercado, são desestruturados e essa crise é experimentada por meio de uma sobrecarga de violência cada vez maior sobre as mulheres.
Nessa compreensão do desenrolar histórico do capitalismo, o trabalho é compreendido como o fim em si mesmo da valorização do valor, como a atividade básica de reprodução econômica e, por isso, como uma típica atividade masculina, dada que realizada na esfera do mercado. Como uma atividade específica e apartada dos demais contextos da vida social, portanto, o trabalho já é por sua própria natureza e condicionamento histórico uma relação social abstrata, cuja finalidade é a produção da substância econômica dessa formação social – a abstração real do valor. Entendido dessa maneira, o segundo aspecto fundamental da crítica do valor é uma rejeição radical do trabalho como um princípio ou relação emancipatória: sua forma e seu conteúdo pertencem a esta sociedade e não conferem nenhuma predeterminação que liberte. Pelo contrário, com o avanço mercantil sobre todos os domínios sociais, os sujeitos da mercadoria e do dinheiro passam a desconhecer qualquer outro nexo social que não seja o da coerção econômica: é preciso trabalhar para sobreviver! Entretanto, um ponto crítico chega quando a própria finalidade da multiplicação do valor começa a devastar as bases necessárias à sua manutenção, quando o avanço da produtividade elimina mais trabalho do que acumula para dar continuidade à reprodução econômica. Aqui também se manifesta a crise do patriarcado, pois coincide com esse momento de disrupção a “entrada da mulher no mercado de trabalho”, o que leva a uma dupla sujeição.
Esse momento crítico é o resultado da própria socialização abrangente pelo valor: o fim em si da multiplicação monetária não produz uma linha histórica sempre idêntica. Pelo contrário, a cada ciclo crescente de transformação das bases sociais pelo “desenvolvimento das forças produtivas”, novos critérios são estabelecidos pelo mercado, novas dimensões econômicas, políticas e reprodutivas são formuladas. Mas dada a processualidade interna contida na lógica do capital, que impulsiona à universalização do trabalho abstrato, a coerção da produtividade e da concorrência conduz à redução de trabalho individual necessário para a valorização do valor. A contradição entre uma necessidade crescente de mais-trabalho para ampliar a base já existente de riqueza abstrata e o constrangimento a reduzir o trabalho individual necessário à sua produção é compensada apenas em determinadas condições. O desemprego gerado pela ampliação da produtividade pode ser contornado pela expansão dos mercados, que exigem ainda mais trabalho para as novas mercadorias. Quando não há mais possibilidade de encontrar novos mercados ou quando as tecnologias desempregam de modo radical mesmo nos novos setores produtivos criados, então o ímpeto abrangente do valor se esgota. A crise estrutural do capitalismo, terceiro ponto fundamental para a crítica do valor, significa que no próprio núcleo tautológico do trabalho abstrato está contida a contradição fundamental que vai explodir em determinado momento da história. Quando esse ponto é atingido, os limites internos do capitalismo são atingidos e se abre uma nova era em sua história, mas que corresponde a um declínio. O fim das antigas posições de classe não leva ao término dos conflitos sociais, pelo contrário, estes se multiplicam por todos os lados, mas assumem cada vez mais o sentido cego da afirmação individual ou da luta de bandos, numa concorrência levada ao extremo da guerra de todos contra todos. A forma do valor, do trabalho e do capital, portanto, formam um nexo histórico explosivo que deve ser apreendido pela crítica radical. Qualquer aceitação dessas categorias é incapaz de oferecer bases críticas para a emancipação, que se torna urgente devido à guerra civil difusa, decomposição social, exclusão mercantil e destruição ambiental crescentes.
3.
Esses temas são abordados e desenvolvidos em diversos livros e artigos dos autores dos variados círculos articulados à crítica do valor. Muitas dessas reflexões são traduzidas e disponibilizadas em sites de diversos países, formando núcleos de estudo e produção independentes. Para termos uma pequena ideia da amplitude desse “programa” de reformulação da crítica do capitalismo, trazemos três breves artigos de intervenção no dossiê “Crítica do valor” da revista Margem Esquerda n. 35.
No primeiro artigo, “As origens da crise econômica atual”, Thomas Konicz explora os aspectos principais da crise estrutural do capitalismo, orientando uma primeira leitura da teoria da crise no âmbito da crítica do valor. Em seguida, em “Miséria informalizada”, Norbert Trenkle argumenta que o crescimento da informalidade e da precarização do trabalho não representam um retorno aos primórdios do capitalismo e sim a um processo de crise fundamental. Ernst Lohoff, em “A quarta expropriação”, apresenta a história da modernização como uma sequência de processos de expropriação, mostrando como a própria crítica do capitalismo é determinada por um campo cada vez mais reduzido de ação. Assim, o próprio Estado de bem-estar social é entendido como um processo de expropriação das condições de reprodução social, que são separadas e indiretamente supridas por uma instituição autonomizada. Além disso, na seção Artigos do mesmo número da revista, um texto de Robert Kurz, “A ditadura do tempo abstrato”, em que as categorias básicas da subjetividade moderna, tempo e espaço, são submetidas a uma crítica radical em virtude de seu vínculo interno com a abstração do trabalho.
Fonte da matéria: Crítica do valor: uma apresentação – Blog da Boitempo – https://blogdaboitempo.com.br/2021/01/22/critica-do-valor-uma-apresentacao/
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