Internacional

A nova realidade do mundo multipolar

Tempo de leitura: 10 min

Pepe Escobar – Uma nova realidade está a formar-se: o mundo unipolar torna-se irrevogavelmente uma coisa do passado, forma-se um mundo multipolar.

É algo a ser contemplado. Dmitri Medvedev, ex-presidente russo, atlantista impenitente, atual vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, decidiu ficar totalmente desconectado numa explosão que combina com a estrela de combate Khinzal [1], que causou visível choque e pavor em todo o NATOstão.

Medvedev disse que as sanções ocidentais “infernais” não apenas falharam em paralisar a Rússia, mas estão “a reverter sobre o Ocidente tal como um bumerangue”. A confiança nas moedas de reserva está “desaparecendo como a névoa da manhã”, abandonar o dólar americano e o euro deixa de ser irrealista: “A era das moedas regionais está a chegar”.

Afinal, acrescentou, “quer queiram ou não, terão de negociar uma nova ordem financeira (…) E a voz decisiva será então a daqueles países que têm uma economia forte e avançada, finanças públicas saudáveis e um sistema monetário confiável.” Medvedev transmitiu a sua sucinta análise antes mesmo do Dia D – prazo estabelecido nesta quinta-feira, 31 de março, pelo presidente Putin, após o qual os pagamentos do gás russo por “nações hostis” só serão aceites em rublos.

O G7, previsivelmente, fez uma pose (coletiva): não vamos pagar. “Nós” significa os quatro que não são grandes importadores de gás russo. “Nós”, além disso, significa o Império das Mentiras ditando as regras. Quanto aos três que estarão em apuros, não apenas são grandes importadores, mas também perdedores da Segunda Guerra Mundial – Alemanha, Itália e Japão, de facto ainda territórios ocupados. A história tem o hábito de pregar partidas perversas.

A negação não durou muito. A Alemanha foi a primeira a quebrar – mesmo antes de os industriais, do Ruhr à Baviera, encenarem uma revolta em massa. Scholz, o insignificante chanceler, ligou para Putin, que teve que explicar o óbvio: os pagamentos devem ser convertidos em rublos porque a UE congelou as reservas cambiais da Rússia – numa violação flagrante do direito internacional.

Com paciência taoista, Putin também expressou a esperança de que isso não representaria uma deterioração nos termos do contrato para os importadores europeus. Especialistas russos e alemães devem sentar-se juntos e discutir os novos termos.

Moscovo está a trabalhar num conjunto de documentos que definem o novo acordo. Essencialmente, isso significa não há rublos, não há gás. Os contratos tornam-se nulos e sem efeito quando a confiança entre as partes é violada. Os EUA e a UE quebraram acordos legais com sanções unilaterais e, além disso, confiscaram reservas estrangeiras de uma nação – nuclear – do G20.

MNE chinês manifesta-se contra as sanções.

As sanções unilaterais tornaram os dólares e os euros inúteis para a Rússia. Os ataques de histeria não serão suficientes: isso será resolvido – mas sob os termos da Rússia. Ponto final.

O Ministério das Relações Exteriores já havia alertado que a recusa em pagar o gás em rublos levaria a uma grave crise global de não pagamentos e falências em série a nível global, uma reação em cadeia infernal de transações bloqueadas, congelamento de ativos colaterais e fecho de linhas de crédito.

O que acontecerá a seguir é parcialmente previsível. As empresas da UE receberão o novo conjunto de regras. Terão tempo para examinar os documentos e tomar uma decisão. Aqueles que disserem “não” serão automaticamente excluídos do recebimento de remessas diretas de gás russo – com todas as consequências político-económicas incluídas.

Haverá algum compromisso, é claro. Por exemplo, alguns países da UE aceitarão usar rublos e aumentar as suas aquisições de gás para que possam revender o excedente para os seus vizinhos e obter lucro. E alguns também podem decidir comprar gás nas bolsas de energia.

Portanto, a Rússia não está impondo um ultimato a ninguém. Tudo isto levará tempo – um processo contínuo. Com alguma ação lateral também. A Duma está contemplando a extensão do pagamento em rublos a outros produtos essenciais – como petróleo, metais, madeira, trigo. Vai depender da voracidade coletiva dos caniches da UE. Todo mundo sabe que sua histeria ininterrupta pode traduzir-se numa colossal rutura das cadeias de fornecimentos em todo o Ocidente.

Adeus oligarcas

Enquanto as classes dominantes atlantistas enlouqueceram totalmente, mas permanecem focadas em lutar até o último europeu para extrair qualquer riqueza remanescente e palpável da UE, a Rússia está a jogar com calma. Na verdade, Moscovo tem sido bastante branda, brandindo o espectro da falta de gás na primavera em vez do inverno.

O Banco Central Russo nacionalizou as receitas em divisas de todos os principais exportadores. Não houve falhas de pagamentos. O rublo continua subindo – e agora está de volta ao mesmo nível de antes da Operação Z. A Rússia continua auto-suficiente em termos de alimentos. A histeria americana sobre a Rússia “isolada” é risível. Todos os atores importantes em toda a Eurásia – para não mencionar os outros quatro BRICS e praticamente todo o Sul Global – não demonizaram e/ou sancionaram a Rússia.

Sem dúvida como um bónus extra, o último oligarca capaz de influenciar em Moscovo, Anatoly Chubais, foi-se. Um magnifico truque da história: a histeria de sanções ocidentais de facto desmembrou a oligarquia russa – o projeto favorito de Putin desde 2000. O que isso implica é o fortalecimento do Estado russo e a consolidação da sociedade russa.

Ainda não temos todos os factos, mas pode-se argumentar que, após anos de avaliação cuidadosa, Putin optou ir até ao limite e quebrar as costas do Ocidente – usando como casus belli a seguinte tríade: ataque iminente da Ucrânia ao Donbass; laboratórios de armas biológicas dos EUA; a Ucrânia trabalhando sobre armas nucleares.

O congelamento das reservas estrangeiras deveria ter sido previsto, especialmente porque o Banco Central da Rússia vinha aumentando as reservas de títulos do Tesouro dos EUA desde novembro do ano passado. Há então a séria possibilidade de Moscovo ser capaz de ter acesso a reservas estrangeiras “secretas” no exterior – uma matriz complexa construída com a ajuda interna chinesa.

A mudança repentina de dólares/euros para rublos foi um golpe de judo geoeconómico de nível olímpico. Putin seduziu o Ocidente coletivo a desencadear o seu ataque de sanções em histeria demente – e utilizou esse ataque contra o oponente com um movimento único e rápido.

E eis-nos todos, agora, tentando absorver tantos desenvolvimentos que mudam o jogo, em sincronia com as armas contra ativos em dólar: rupia-rublo com a Índia, o petroyuan saudita, cartões de crédito Mir-UnionPay emitidos por bancos russos, a Alternativa SWIFT Rússia- Irão, o projeto União Económica Euroasiática-China, EAEU, para um sistema monetário/financeiro independente.

Sem falar no golpe de mestre do Banco Central da Rússia, fixando o preço de 1 grama de ouro a 5 000 rublos – já em torno de 60 dólares, e a subir. Juntamente com o “não rublos-não gás”, o que temos aqui são produtos energéticos de facto ligados ao ouro. Os caniches da UE e a colónia japonesa precisarão comprar muitos rublos em ouro ou comprar muito ouro para ter gás. E vai ficar melhor. A Rússia pode reestabelecer a paridade (re-peg) do rublo ao ouro num futuro próximo. Poderia ir para os 2 000 rublos, 1 000 rublos, mesmo 500 rublos por um grama de ouro.

É tempo para a soberania

O Santo Graal nas discussões em evolução sobre um mundo multipolar, desde as cúpulas do BRICS nos anos 2000 com Putin, Hu Jintao e Lula, foi sempre como contornar a hegemonia do dólar. Esta solução está agora patente a todo o Sul Global, como uma aparição benigna com o sorriso de um gato de Cheshire: o rublo ouro ou rublo apoiado por exportações de petróleo, gás, minerais, matérias-primas. O Banco Central da Rússia, ao contrário do Fed, não pratica as ditas facilidades temporárias de financiamento (quantitative easing) e não exportará inflação tóxica para o resto do planeta.

A Marinha Russa não apenas protege todas as linhas marítimas russas, mas os submarinos russos movidos a energia nuclear são capazes de aparecer em todo o planeta sem aviso prévio. A Rússia está muito, muito à frente, implementando o conceito de “poder naval continental”. Em dezembro de 2015, deu-se na Síria o divisor de águas estratégico. A 4ª divisão de submarinos baseada no Mar Negro é a estrela do show.

As frotas navais russas podem agora utilizar mísseis Kalibr [2] num espaço que abrange a Europa Oriental, Ásia Ocidental e Ásia Central. O Mar Cáspio e o Mar Negro, ligados pelo canal Don-Volga, oferecem um espaço de manobra comparável ao Mediterrâneo Oriental e ao Golfo Pérsico juntos. São 6 000 km de extensão. E nem precisam ter acesso a águas quentes. Isto cobre cerca de 30 nações: a tradicional esfera de influência russa; fronteiras históricas do império russo; as atuais esferas de rivalidade política e energética.

Não admira que Washington esteja frenética

A Rússia garante o transporte marítimo através da Ásia, Ártico e Europa, em conjunto com a rede ferroviária da Belt and Road Iniciative em toda a Eurásia. E por último, mas não menos importante, não arranjem confusões com um Urso Nuclear. Essencialmente, é disto que trata a dura política de poder.

Medvedev não estava a gabar-se quando disse que a era de uma moeda de reserva única tinha acabado. O advento de uma moeda de reserva global baseada em recursos significa, em poucas palavras, que 13% do planeta não mais dominarão os outros 87%.

Trata-se do NATOstão vs Eurasia. Guerra Fria 2.0, 3.0, 4.0 e até 5.0. Não importa. Todas as anteriores nações do Movimento dos Não-Alinhados veem para onde os ventos geopolíticos e geoeconómicos estão a soprar: o momento de afirmar a sua real soberania está próximo quando a “ordem internacional baseada em regras” morde o pó. Bem-vindo ao nascimento do novo sistema mundial.

O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, na China, depois de se encontrar com vários homólogos de toda a Eurásia, não poderia te-lo descrito melhor:

“Uma nova realidade está a formar-se: o mundo unipolar torna-se irrevogavelmente uma coisa do passado, um mundo multipolar está a tomar forma. É um processo objetivo. É imparável. Nessa realidade, mais de um poder vai “governar” – será necessário negociar entre todos os Estados-chave que hoje têm uma influência decisiva na economia e na política mundial. Ao mesmo tempo, percebendo a sua situação especial, esses países garantem o cumprimento dos princípios básicos da Carta da ONU, incluindo o fundamental – a igualdade soberana dos Estados. Ninguém nesta Terra deve ser visto como um participante menor. Todos são iguais e soberanos”.

Fonte da matéria: A nova realidade do mundo multipolar – https://resistir.info/p_escobar/m_multipolar.html

Deixe uma resposta