Schirlei Alves – Aricelia Ferreira Alves, 19 anos, vive com o marido e seus dois filhos, uma bebê de 9 meses e um menino de 3 anos, em Lagoa de Dentro, uma das comunidades isoladas e de difícil acesso do município de Pilão Arcado, no sertão da Bahia. No dia em que percorremos a região onde a jovem mora, em meados de dezembro de 2021, a Caatinga estava coberta de folhas verdes e adornada com flores brancas e amarelas.
Quem passa pela estrada nessa época do ano não imagina que a mesma vegetação fica completamente cinza por cerca de nove meses, período que costuma durar a seca. O baixo volume de chuva impede que o solo se mantenha nutrido para o plantio.
Distante apenas 12 quilômetros do Rio São Francisco, um dos mais importantes cursos d’água do Brasil, a comunidade não tem acesso à água encanada, a água de poço é salgada e a água distribuída poucas vezes ao mês em caminhões pipa não é tratada.
A única forma de se obter água potável é por meio da cisterna — uma tecnologia desenvolvida por um sergipano e que foi incorporada a um programa do governo federal em 2003, no mandato Lula, após articulação da sociedade civil. A tecnologia coleta água da chuva e a armazena em reservatórios construídos no quintal das casas. Só que Aricelia ainda não teve acesso à cisterna, portanto, não conta com uma fonte própria de água para beber, cozinhar e muito menos plantar. Segundo o próprio Ministério da Cidadania, 1,4 milhão de famílias brasileiras estão na mesma condição que ela.
O recurso federal executado na ação orçamentária de Acesso à Água para Consumo Humano e Produção de Alimentos na Zona Rural, mais conhecida como Programa de Cisternas, encolheu 96,8% em seis anos (de R$ 714 milhões, em 2014, caiu para R$ 22,5 milhões, em 2020).
Os dados foram obtidos pela reportagem de O Joio e O Trigo via Lei de Acesso à Informação (LAI), por meio do Ministério da Cidadania. Nós solicitamos, mas não recebemos os valores de 2021. Segundo Alexandre Pires, coordenador da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA) — principal rede que põe em prática o projeto através da verba pública —, não houve pagamento do recurso no último ano. A Articulação também tentou apresentar um plano de universalização do acesso à água ao Congresso Nacional e ao Ministério da Cidadania, mas não teve sucesso.
“Para além da falta de prioridade do governo, a gente ainda tem o fato de que a secretaria [Secretaria Nacional de Inclusão Social e Produtiva] a que o projeto estava vinculado foi esfacelada por completo. O menor orçamento foi o de 2006, com R$ 63 milhões. O orçamento de 2021 foi de R$ 61 milhões e sem operação”, disse Pires.
Esse valor corresponde ao orçamento inicial previsto a partir da lei orçamentária sancionada por Bolsonaro. Mas esse recurso pode ser alterado tanto para baixo quanto para cima. No Painel do Orçamento Federal, onde estão disponíveis todas as ações do governo, consta que o orçamento de 2021 foi reduzido pela metade e a previsão de recurso para 2022 é de apenas R$ 46,7 milhões.
Se a verba fosse mantida no patamar de 2014, considerando a correção anual pelo Índice Nacional de Custo de Construção (INCC) e a hipótese de execução contínua dos recursos, é bem provável que Aricelia já tivesse recebido a tão sonhada cisterna.
Um edital de justificativa, publicado pelo Ministério da Cidadania em 16 de dezembro de 2021, firmou 11 convênios com consórcios intermunicipais e prefeituras para aplicação de R$ 31 milhões do valor que não foi executado durante o ano na implantação de tecnologias de acesso à água. Os convênios devem atender nove estados. A dispensa de concorrência pública é justificada pela condição de extrema pobreza do público-alvo. O edital traz a informação de que 647 mil famílias rurais não possuem nenhuma solução adequada de acesso à água no Semiárido e 1,4 milhão de famílias estão na mesma condição no Brasil. A referência é o Cadastro Único — ferramenta do governo federal abastecida pelas prefeituras. O documento não informa qual será o tipo de tecnologia empregada a partir desses convênios, diz apenas que há 27 possibilidades.
As cisternas construídas pela rede da ASA são de placas de cimento, têm formato cilíndrico, são cobertas e instaladas a uma profundidade que mantém a água fresca. Esse tipo de cisterna — que foi a principal tecnologia usada em anos anteriores — custa em torno de R$ 4,5 mil. Supondo que a mesma tecnologia seja empregada nos convênios, seria possível construir apenas 6,9 mil unidades com o recurso disponível.
Queda no orçamento e falta de informação
Além da ação de acesso à água, procuramos informações sobre outros seis programas alimentares que faziam parte do escopo de políticas de segurança alimentar e nutricional e que eram complementares. São eles:
- Programa de Aquisição de Alimentos (PAA)
- Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater)
- Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos
- Bolsa Verde
- Apoio a organização econômica e promoção da cidadania de mulheres rurais
- Apoio ao desenvolvimento sustentável de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais
Os três primeiros da lista tiveram reduções de orçamento acima de 50% e os outros três não existem mais. O programa com maior orçamento entre eles é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que compra alimentos da agricultura familiar, gerando renda para esse público, e os distribui para instituições carentes. Assim como o Programa de Cisternas, o PAA existe há quase 20 anos e foi um importante gerador de renda para as famílias rurais no Brasil. Ele surgiu como uma estratégia a partir do programa Fome Zero, criado em 2003. Nos anos seguintes, foram criados o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e a Política e o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional.
Um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o PAA, publicado em 2019, aponta que, na época da criação do programa, foi observado que gerar renda aos agricultores familiares não era suficiente. Eles precisavam de outras condições para poder produzir, como “acesso a conhecimento, recursos financeiros para a compra de insumos, acesso à terra e à água”. Para suprir essas carências é que outras políticas surgiram, como a Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural, o programa de crédito do Pronaf e o próprio Programa de Cisternas (que já era uma demanda antiga no Semiárido).
Em 2019, o PAA teve redução de 77,3% no valor executado se comparado a 2014. Em 2020, o orçamento só não foi pior porque recebeu um incremento de R$ 500 milhões via a Medida Provisória 957 — um recurso ligado à pandemia e que foi conquistado após pressão da Articulação Nacional de Agroecologia. Naquele ano, o Ministério da Cidadania executou 43,7% do recurso disponível (R$ 291,9 milhões). Como os dados que solicitamos via Lei de Acesso à Informação estão incompletos, não foi possível entender o que ocorreu em 2021.
O que podemos afirmar é que, de acordo com a atualização do Painel do Orçamento Federal, o orçamento de 2021 foi na casa dos R$ 135,2 milhões. Destes, apenas R$ 58 milhões foram pagos aos agricultores, o que representa redução de 86,5% se comparado a 2014. Mas é provável que a sobra do recurso de 2020 tenha sido aplicada em 2021. Significa que orçamentos empenhados em anos anteriores, mas que não foram totalmente executados, podem ser pagos nos anos subsequentes. Essa sobra de recursos é chamada pelo governo de “restos a pagar” e não consta no painel.
De acordo comCarlos Eduardo Leite, do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) pelo Nordeste e coordenador geral do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop), os programas eram políticas que chegavam ao agricultor familiar e davam condições mínimas de produção.
Desmonte de políticas alimentares
A extinção do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), em setembro de 2019, é apontada pelas organizações ligadas ao tema como uma das principais atuações de desmonte das políticas alimentares. Instituído em 1993, ainda no governo Itamar Franco e com uma pausa durante o governo Fernando Henrique, o Consea tinha a tarefa de articular as três instâncias de governo (municipal, estadual e federal), os representantes da sociedade civil e as instituições que trabalhavam com a segurança alimentar. Era o Consea que monitorava o andamento e a prestação de contas dos programas alimentares e fazia a conexão direta com o presidente da República.
“Havia uma agenda organizada por trás da segurança alimentar e nutricional que estava ancorada em parte nesses programas, em parte no Consea e em uma aliança com o Ministério Público na defesa dos povos e comunidades tradicionais e no questionamento da agenda fundiária. O jeito de você matar esse espaço e esse questionamento da indústria de alimentos é eliminando o Consea e deixando morrer de inanição essas outras coisas”, avaliou uma especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental e servidora de carreira que atuou nas políticas de segurança alimentar, mas que prefere não se identificar por medo de sofrer perseguição.
A especialista ouvida pela reportagem lembra que os programas já começaram a perder orçamento no governo Dilma (2011-2016) por conta da crise fiscal, mas enfraqueceram ainda mais nas gestões seguintes (Temer e Bolsonaro) com a desestruturação de ministérios e secretarias que pensavam estratégias de combate à fome.
Balde na cabeça, carrinho na mão
Embora o Programa de Cisternas, ao longo de quase 20 anos, tenha alcançado mais de um milhão de famílias que vivem no Semiárido, em nove estados do Nordeste e em Minas Gerais muitas famílias como a de Aricélia, a jovem do início da nossa história, ainda não têm acesso a uma fonte de água.
“O acesso à água no Semiárido foi, desde o princípio, alocado dentro da ação de segurança alimentar do governo federal ligado ao [extinto] Ministério do Desenvolvimento Social, no combate à fome, ou seja, numa associação direta entre ter acesso à água e ter acesso a alimentos”, disse Alexandre Pires, da ASA.
Quem tem acesso à rede de água e esgoto não faz ideia de como é carregar baldes e bacias para realizar os afazeres básicos do dia a dia. Mais distante ainda está a realidade de quem não tem uma fonte de água no quintal de casa para fazer esse manuseio e depende da solidariedade de vizinhos para alimentar os próprios filhos.
Tímida com a nossa presença, Aricélia conta em poucas palavras como é a rotina de quem ainda não tem a tecnologia. Quando o marido consegue algum contrato para trabalhar de pedreiro na cidade, ela se encarrega de caminhar quilômetros todos os dias para buscar água. Mas quem tem a cisterna também precisa racionar o líquido para que ele dure o ano inteiro. Dividir o pouco que se tem é um desafio.
“Quando o meu marido não está em casa, eu preciso levar os meninos junto comigo, no sol quente. A dor no braço [de carregar os baldes] é ruim. Tem vezes que eu deixo as crianças lá [na casa dos vizinhos] e venho botar água aqui e tem vezes que eu deixo só a menina e ele [filho de 3 anos] vem atrás de mim.”
A mesma dificuldade é vivida pelo casal Narla dos Santos Lourenço, 20 anos, e Francisco dos Santos Silva, 26, que moram na comunidade Pimenteira, no município de Remanso, na microrregião de Juazeiro. Ela equilibra um balde na cabeça e ele carrega um compartimento maior dentro de um carrinho para buscar água na casa dos pais de Francisco. Como a água potável da cisterna é dividida entre duas famílias, o casal faz uso dela apenas para beber e cozinhar. As outras tarefas do dia a dia são feitas com água salgada coletada de um poço.
“Por conta da água salgada, tem que usar mais detergente para lavar a louça, senão fica tudo manchado. Para lavar a roupa também gasta mais sabão, porque não ensaboa. E para lavar o cabelo é a mesma coisa”, contou Narla.
Um dos técnicos do Serviço de Assessoria a Organizações Populares Rurais (Sasop) que nos acompanhou no percurso, Neilton Dias da Silva, explica que a maioria das famílias possui apenas a cisterna da primeira água, ou seja, de consumo, com capacidade de 16 mil litros de armazenamento. A captação da água da chuva é feita aproveitando o telhado das casas, que escoa a água através das calhas. O reservatório, porém, acaba não sendo suficiente para abastecer a família o ano inteiro. Por isso, elas dependem dos caminhões pipa, bancados pelo Exército, que distribuem água coletada no rio São Francisco (que não é tratada). “Se o pipa não vem logo, a cisterna fica seca e a família é obrigada a comprar água”, disse o técnico.
Quando precisam comprar água de fornecedores privados, os moradores gastam em média R$ 200 para abastecer o reservatório, o que corresponde a metade ou quase toda a renda da família. Já os que possuem a cisterna de segunda água, que comporta 52 mil litros e serve para produzir alimentos, conseguem garantir água para consumo por mais tempo. Essa é uma tecnologia que capta a água da chuva por meio de um calçadão de cimento de 200 metros quadrados construído sobre o solo. A água é direcionada para a cisterna através de um cano. A construção custa em média R$ 19 mil. Só recebe a cisterna de segunda água quem já tem a primeira. A ASA estima que há 800 mil famílias aguardando a construção dessa tecnologia.
Acesso à água permite que famílias produzam o próprio alimento
O quintal de dona Jandira Ribeiro de Souza, 78 anos, na comunidade Caldeirão do Boi, que também fica em Pilão Arcado, é a prova viva de que o acesso a mais de uma tecnologia (cisternas de primeira e segunda água) possibilita a produção de alimentos no Semiárido. Ela foi uma das primeiras moradoras da comunidade a ser contemplada, em 2003. A cisterna menor, que é bastante antiga, já está com problema, então ela usa a do filho, que mora ao lado, para coletar água potável. Já a cisterna de produção, que abastece as duas casas, permite que ela, os filhos e as noras plantem quase tudo o que consomem e ainda mantenham um pequeno laguinho de peixe. No quintal tem hortaliças, legumes, verduras, frutas e ervas medicinais de todo tipo. Jandira também planta leucena, uma leguminosa que serve de ração para algumas cabras que ela e os filhos criam.
“Eu viajei duas léguas [para me inscrever no programa] e ganhar a cisterna. Fui [participar das reuniões] montada num jumento […]. Não foi brincadeira não, meu esposo não queria ir, mas eu disse: ‘eu vou, que eu não vou ficar sem água, todo mundo vai por que eu não posso ganhar uma?’. […] Antes da cisterna não plantava não, minha filha.”
O que não dá para plantar, a família compra com a renda obtida através do antigo Bolsa Família, agora Auxílio Brasil, como o arroz, o açúcar, a tapioca e a carne (essa última com menos frequência).
A construção dos tanques foi feita por profissionais da própria comunidade, que receberam capacitação para fazer o serviço. O material também foi comprado localmente. Todo esse processo ajudou a gerar renda nas comunidades atendidas pelo programa.
Conexão entre programas alimentares gera renda no meio rural
O acesso à água permite que as famílias que vivem em regiões isoladas, onde não há alternativas de renda, forneçam seus alimentos a programas de governo. No ano passado, a família da dona Jandira acessou pela primeira vez o PAA e conseguiu uma renda extra de R$ 3 mil, que foi dividida entre três famílias. Os alimentos produzidos no quintal de casa foram vendidos em três etapas. Se houvesse mais investimento para que a política de segurança alimentar fosse contínua, os produtores teriam uma garantia de renda mais duradoura.
O recurso do PAA chegou ao conhecimento dos moradores de Pilão Arcado de última hora. Embora tenha durado apenas três meses, abriu uma porta para a jovem Angela Souza Santos, 19 anos, da comunidade Jatobá. A possibilidade de vender para o programa foi um incentivo para que ela desse início ao próprio negócio e ajudasse na renda familiar. “A gente fez três entregas de petas e hortaliças. Só de petas nós fornecemos um total de R$ 3 mil, foi biscoito pra danar, só sei que encheram o carro e levaram tudo”, contou.
Angela tem esperança de continuar vendendo para o PAA — programa que já não leva mais o mesmo nome. A Medida Provisória que instituiu o Auxílio Brasil no lugar do Bolsa Família também mudou o PAA para Alimenta Brasil. Quando a MP ainda estava em votação no Congresso, no segundo semestre do ano passado, as entidades que atuam na área de segurança alimentar se manifestaram contra as mudanças sob o argumento de que faltavam critérios bem definidos, o que poderia dar margem para mascarar a ausência de recursos.
O professor da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB) e ex-diretor da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), Silvio Porto, que contribuiu para a elaboração do manifesto das entidades, não acredita que o programa terá chances de crescimento no novo formato. “Embora tenha sido mantida a estrutura do grupo gestor e o nome das modalidades, tudo está por ser regulamentado, é um cheque em branco porque não se sabe de que forma ela se dará. O que provavelmente vai acontecer é que não terá execução e, se tiver, será numa escala muito pequena.”
Mulheres, as mais afetadas
Diferente de Jandira e Angela, a agricultora e uma das diretoras do Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil Lucivanda Silva, 46 anos, conhece o PAA há muito tempo e está sentindo na pele o impacto da redução de recursos. Ela, que vive em Governador Valadares, mesorregião do Rio Doce, em Minas Gerais, conta que vários agricultores de sua região perderam acesso ao PAA e ao programa de Assistência Técnica e Extensão Rural durante a pandemia. As mais afetadas, na avaliação de Lucivanda, foram as mulheres. As agricultoras não tinham como escoar a produção porque as feiras também pararam. Elas acabaram doando os alimentos para as mulheres da área urbana que perderam seus empregos.
“A gente tira o sustento do rural, mas também precisa vender uma parte para comprar o básico como remédios e pagar a conta de luz”, disse Lucivanda. “A gente sabe que o recurso reduziu, mas o pouco que tinha foi limitado. Se compraram aqui na região, foi de quem não precisava, compraram de grandes associações que não são da agricultura familiar”, advertiu.
A sobrevivência das mulheres do campo na região do Rio Doce tem dependido do apoio de entidades e organizações que atuam com projetos sociais. Nem o Auxílio Emergencial elas conseguiram acessar no período mais crítico da pandemia. Governador Valadares foi uma das cidades mais afetadas pelo rompimento da barragem de rejeitos em Mariana, em 2015, o que também gerou preconceito sobre o trabalho das camponesas. “Muita gente não compra os nossos produtos porque acha que a gente usa água do Rio Doce”, contou. Lucivanda garante que as produtoras não usam a água contaminada do rio, pois contam com cisternas e poços artesianos para irrigar a produção.
No orçamento do Executivo aprovado para 2022, há um total de R$ 200 milhões previstos para o PAA. Porém, metade desse recurso, ou seja, R$ 100 milhões, está sob o guarda-chuva da emenda parlamentar do relator da Lei Orçamentária Anual, que este ano é o deputado Hugo Leal (PSD-RJ). Não há garantias de que a emenda do relator, que ficou conhecida como “orçamento secreto”, será executada. Se for, o relator terá autonomia para decidir quais são os municípios que vão receber esse recurso do PAA.
Os R$ 100 milhões que restaram estão divididos da seguinte forma: uma fatia de R$ 18,3 milhões corresponde a emendas individuais impositivas, que normalmente são direcionadas pelos deputados e senadores aos seus estados, e outra parcela de R$ 29,2 milhões é de emenda de bancada estadual de execução obrigatória. Nos dois casos, o Ministério da Cidadania tem obrigação de executar o recurso com o PAA. A última fatia de R$ 53 milhões tem gestão discricionária do Ministério da Cidadania, ou seja, a pasta tem autorização para usar o recurso, mas não tem obrigação de executá-lo.
Silvio Porto faz um alerta sobre a operação de programas como o PAA e o de Cisternas por emendas parlamentares, uma vez que elas deixam de estar sujeitas aos critérios de seleção dos editais. “É importante que o parlamentar queira operar, mas a operação não poderia ser da forma como é”, avalia. “Essa coisa direcionada serve exatamente para um processo de subordinação, é uma relação política que amarra a organização ao parlamentar, que está fazendo isso mediante uma expectativa de retorno eleitoral.”
Redução de recurso faz cooperativas desistirem de Assistência Técnica
O orçamento de Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater) caiu 89,6% em seis anos (de 2014 para 2020). Esse programa foi criado em 2010 para ajudar os agricultores familiares a aperfeiçoar o sistema de produção e acessar diferentes formas de renda. Cooperativas ou associações são contratadas para oferecer esse serviço aos agricultores por meio de uma equipe multidisciplinar, que normalmente é formada por técnico agrícola, engenheiro agrônomo, veterinário, biólogo e assistente social.
Escolhemos avaliar o orçamento, e não o valor pago desse programa, porque os contratos firmados com as cooperativas que prestam o serviço são longos e podem durar até 36 meses, sendo pagos à medida que são finalizadas as etapas de execução das atividades. Segundo o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), outro fator que influencia nessa análise é o fato de que os valores empenhados no final do ano podem ser classificados como restos a pagar para o ano seguinte.
Dois integrantes de cooperativas contratadas pelo programa, que pediram para não serem identificados, disseram que o pagamento sempre foi um problema. Eles afirmam que a situação piorou a partir de 2017, quando o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) virou uma secretaria dentro do Mapa. A burocracia, afirmam os trabalhadores, engessou a atuação dos técnicos na atividade em campo. O orçamento também minguou, forçando as cooperativas a diminuírem as equipes multidisciplinares, o que, segundo eles, afetou a qualidade do trabalho.
“Nós havíamos contratado técnicos para trabalhar em 100% das metas e, no meio do caminho, tivemos que chamar todo mundo e dizer que não daria pra fazer tudo porque, segundo eles, não havia orçamento”, contou um dos prestadores de serviço.
Três ações ligadas à segurança alimentar desapareceram
O Ministério do Meio Ambiente confirmou ao Joio que o Programa Bolsa Verde foi descontinuado. No período em que foi operado, entre 2013 e 2017, contou com recursos que variaram entre R$ 50 milhões e R$ 90 milhões. Segundo o economista e ex-secretário Nacional de Segurança Alimentar Arnoldo de Campos, o Bolsa Verde teve um papel importante na redução do desmatamento, especialmente na Amazônia. As famílias que tinham direito ao benefício moravam nas florestas. Embora não fosse um valor muito expressivo, ele se somava ao Bolsa Família e complementava a renda.
“A renda era para a família ajudar a cuidar daquele ambiente e não precisar desmatar para ganhar dinheiro. A política era da área ambiental, mas tinha impacto na segurança alimentar, porque essas comunidades são extremamente pobres. Então, pra poder viabilizar gente para o garimpo e a mineração, aceitando qualquer coisa, você tira o Bolsa Verde, porque tira a dignidade das pessoas”, disse o ex-secretário.
As outras duas ações que foram encerradas são a de Apoio a Organização Econômica e Promoção da Cidadania de Mulheres Rurais e a de Apoio ao Desenvolvimento Sustentável de Comunidades Quilombolas, Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais. Elas eram vinculadas a programas do extinto Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e contavam com orçamentos muito pequenos, pois eram políticas que ainda estavam em desenvolvimento.
Michela Calaça, do Movimento de Mulheres Camponesas, chegou a coordenar a ação referente às mulheres rurais no segundo mandato do governo Dilma. Nos anos em que o programa prosperou, segundo Michela, várias atividades foram construídas com o intuito de protagonizar as mulheres do campo. Ocorreram chamadas públicas só para mulheres no Programa de Assistência Técnica e Extensão Rural, foram criados grupos de formação e houve encaminhamentos das agricultoras para programas de geração de renda.
“Era um programa que estava testando ações de políticas para mulheres e construindo isso junto com elas. Isso teve um impacto interessante e resultados muito bons porque era feito em diálogo. Mas eram experiências pontuais quando você pensa no Brasil inteiro com o orçamento que tinha”, explicou Michela.
Como eram ações com pouco investimento, as famílias que visitamos no sertão da Bahia nunca ouviram falar delas. Na região da agricultora Lucivanda, em Minas Gerais, também não ocorreu nenhuma atividade. Conversamos com Luzia Antônia Apodonepa, liderança indígena no Mato Grosso, que também não ouviu falar desses programas. Ela teve conhecimento apenas do PAA e do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae). Embora tenha feito movimentos para que os indígenas da Aldeia Umutina/Balatiponé, em Barra do Bugres, pudessem produzir alimentos para esses programas, não obteve sucesso.
“Os indígenas moram em cima do território rico de água, minerais, terra fértil, mas muitas comunidades não conseguem produzir nem para consumo próprio, pois quando vão atrás do recurso, não têm direito, porque não têm o documento da terra. Como você vai pegar recurso se você não comprova que é dono da terra? Nós somos considerados agricultores familiares, mas quando vamos acessar o programa, não temos direito. O índio é um povo sem terra”, disse Luzia.
No Painel do Orçamento Federal, a ação das mulheres rurais aparece entre os anos 2014 e 2019. Só que no último ano, já no governo Bolsonaro, o orçamento diminuiu 98,8% (de R$ 32,5 milhões, em 2014, para R$ 400 mil, em 2019) e nem sequer chegou a ser executado. Os valores pagos nos anos anteriores também foram bem inferiores ao orçamento.
O orçamento da ação envolvendo as comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais foi ainda mais inexpressivo. Os valores executados entre 2013 e 2015 não chegam a R$ 2 milhões. Os orçamentos de 2016 e 2017 não foram executados e não há informações sobre os anos seguintes.
O Mapa confirmou que as duas ações foram descontinuadas e justificou que os mesmos públicos, tanto das mulheres rurais quanto dos quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais, continuam sendo atendidos pelas ações da Secretaria de Agricultura Familiar e Cooperativismo.A nova ação que inclui esses grupos chama Desenvolvimento Sustentável da Bioeconomia.. Embora tenha tido um orçamento de R$ 8 milhões no primeiro ano de operação, o valor executado foi de apenas R$ 501. Dos R$ 7 milhões previstos para 2021, apenas R$ 254,9 mil foram executados.
Já pelo Programa de Distribuição de Alimentos a Grupos Populacionais Tradicionais e Específicos, que distribui cestas básicas, embora tenha tido um orçamento três vezes maior em 2021 se comparado a 2014, o valor executado caiu pela metade (de R$ 40,9 milhões para R$ 18,6). Esse programa continua existindo e tem orçamento para 2022.
Contrapontos
O Ministério da Cidadania justificou que a retração econômica causada pela pandemia impactou o setor da construção civil e, consequentemente, o Programa de Cisternas. Além da escassez de material no mercado, as entidades executoras “registraram preços até 100% superiores” aos praticados antes da pandemia. Para acompanhar o novo cenário, o Ministério afirma que está atualizando o custo unitário de referência das tecnologias para buscar recursos que possam financiar a contratação de mais reservatórios.
Sobre o PAA, o Joio recebeu duas informações diferentes. A primeira foi enviada via Lei de Acesso à Informação em 16 de novembro de 2021. Na ocasião, a ouvidoria do Ministério da Cidadania não informou o valor pago aos agricultores no ano corrente. No Painel de Orçamento Federal, porém, foi publicado o valor de R$ 58 milhões como pagos em 2021. Quando questionamos o Ministério da Cidadania por e-mail sobre a redução do orçamento, eles nos responderam que fizeram um pagamento de R$ 260,9 milhões aos agricultores — valor 4,5 vezes maior do que o publicado no Painel do Orçamento Federal. Nós questionamos a discrepância de valores, mas não recebemos retorno até a publicação desta reportagem. Até então, o painel do orçamento não havia sido atualizado com o novo valor informado pelo Ministério. Fontes ouvidas pela reportagem disseram que esse valor 4,5 vezes maior pode ser a sobreposição de valores classificados como “restos a pagar”, ou seja, recursos empenhados em anos anteriores e que só foram pagos em 2021.
Sobre o programa de distribuição de cestas básicas, a ouvidoria do Ministério da Cidadania informou via LAI, em novembro de 2021, que foram pagos 18,6 milhões e esse valor serviu para atender 164,2 mil famílias até aquele momento. Porém, quando questionamos a redução de orçamento por e-mail, em 11 de março deste ano, o Ministério afirmou que mais de 1 milhão de cestas de alimentos foram distribuídas, beneficiando cerca de 600 mil famílias, mas não falou sobre o valor aplicado.
O Mapa justificou que o programa de Assistência Técnica e Extensão Rural foi reduzido em função “da crise econômica no país” e pela “consequente redução orçamentária”. “O processo de repactuação de todos os contratos em execução levou em consideração o estágio em que cada contrato se encontrava e as particularidades de cada projeto, com a garantia de pagamento de todos os serviços já executados”.
O desmonte da segurança alimentar, em números – Outras Palavras
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