Gustavo Assano – Segundo o fascinante livro do historiador da vida cultural inglesa David Vincent, A History of Solitude (London/UK; Polity Press, 2020), “solitude” não é o mesmo que “solidão” (loneliness). Na percepção do resenhista Terry Eagleton, ao resumir a oposição entre os dois conceitos na obra de Vincent, pessoas solitárias sentem carência de companhia de outras pessoas. Já as pessoas em solitude buscam formas de escapar da companhia de outras pessoas.[1] Historicamente, no discurso sobre solidão, solitude aparece como uma dupla negação: é a condição daqueles que não estão acompanhados e não se sentem sozinhos. Seria uma desejada situação de privacidade satisfatória.
O debate público sobre solidão na sociedade inglesa teve o efeito de obscurecer a função positiva da ausência de companhia. No entanto, Vincent argumenta que o impacto da modernidade tardia sobre as relações sociais está na fronteira entre solidão e solitude. O primeiro estudo sobre o tema foi publicado em 1785 por Johan Georg Zimmermann, médico do rei da Prússia, Frederico o Grande, sob o título Über die Einsamkeit. Foi um sucesso editorial imediato, apesar da recepção ambivalente da crítica especializada glosada por Vincent. Tornou-se rapidamente um livro obrigatório de se ter na estante de casas de pessoas que queriam mostrar-se conscientes do processo de modernização em andamento. Ainda que a miséria ideológica alemã freasse tendências de aburguesamento cultural, a reflexão de um estudo de nação europeia periférica serviu de referência para o centro do sistema.
Era um tema controverso. O objetivo do autor era encontrar a harmonia, o índice de razoabilidade entre as vantagens e desvantagens da reclusão em sociedade. Nem a vida em agrupamentos sociais ou em reclusão completa seriam suficientes isoladamente, pois, nas palavras de Zimmermann, “devemos nos reconhecer plenamente persuadidos de que, se a condição apropriada do homem não consiste numa relação de comércio promíscuo e difuso com o mundo, tanto menos consegue realizar os deveres de sua posição por uma renúncia selvagem e teimosa à vida em sociedade”. Zimmermann sublinha a importância da relação semovente entre estar recluso e estar acompanhado. Isolamento produtivo e seguro para o iluminismo alemão recém-amadurecido era uma questão de escolha. Um indivíduo que preserva sua sanidade, defende o médico prussiano setecentista, deveria poder mover-se sadiamente “para dentro” e “para fora” da solitude.
A tradução para a língua inglesa não usou o termo “solidão” [“loneliness”] para o livro de Zimmerman. No entanto, uma “solitude destrutiva”, que ele debatia amplamente, correspondia ao uso moderno da palavra solidão e o sofrimento que ela descreve. O fármaco passava a causar dano quando o indivíduo era forçado à ausência de companhia contra sua vontade, quando, por exemplo, abraçava algum voto monástico ou intensa melancolia contra os quais não havia escapatória senão o confinamento do isolamento involuntário. Torna-se então impossível uma navegação segura entre solitude destrutiva e criativa. Neste sentido, a formulação de Vincent é perfeita: solidão é a solitude que fracassa (“The most succint definition of loneliness is failed solitude”).
O livro de Vincent percorre a aparição da apreciação da solitude em todos os estágios da formação da vida moderna da sociedade inglesa. Da aquisição dos hábitos de caminhada na oposição entre campo e cidade às tensões entre espiritualização romântica e processo de secularização capitalista; da consolidação da vida privada na conformação da esfera pública burguesa à sedimentação dos núcleos urbanos industriais; do surgimento e processo de valorização da literatura popular ao reconhecimento da integração da mulher na esfera pública; do surgimento de espaços concentracionários modernos como prisões, conventos reformados e escolas aos estertores da era digital; o fôlego investigativo de Vincent parece não ter limites quando se trata de confrontar a formação da Inglaterra moderna como pré-história da solidão contemporânea.
Durante a Segunda Guerra Mundial e principalmente no pós-Guerra, a reclusão intensa e o isolamento social eram fortemente associados à ideia de vida independente, uma hipervalorização da vida solitária como signo de aquisição de autorrealização, uma conquista de identidade e cultivo de uma autoimagem que se traduzia em autonomia e liberdade no alvorecer da nova classe média da economia de Welfare State. Numa pesquisa sobre o tema realizada pelo relatório Mass Observation na Inglaterra de 1943, um jovem diz, em citação muito bem aproveitada por Vincent, que “o lar (home), para mim, é um lugar onde eu possa me sentir um indivíduo completo. Neste momento consiste num apartamento onde eu possa comandar sozinho minha vida, e que eu preencho com minha personalidade, onde eu posso receber meus amigos, onde posso me retirar em completa solidão fazendo o que eu quiser, comendo quando eu quiser. Em suma, um lugar em que tenha aperfeiçoado a arte de estar sozinho”.
Para as mulheres em particular havia uma atração em escapar das demandas sufocantes dos cuidados maternais e do trabalho doméstico para então dar alguma atenção para si mesmas e refletir sobre quem são e quem gostariam de tornar-se. Neste sentido, há argumentos fortes para a defesa do isolamento em “solitude” ser encarada não como uma patologia do tempo social, mas uma consequência do que pode ser valorizado no período particular e nas pessoas. No entanto, um pessimismo estatístico induziu o establishment cultural e político inglês à percepção contrária. Enquanto o livro de Vincent era editado, o governo de Teresa May nomeou Tracey Crouch como a primeira “Ministra da Solidão” da história dos estados nacionais do ocidente.
Enquanto enfrentava a contínua crise suscitada pelo Brexit, assim a descrição oficial do governo britânico descrevia a solidão do povo inglês na inauguração do novo ministério: “Mais de um quinto da população adulta do Reino Unido sente-se solitária em quase ou todo o tempo”. As cifras foram obtidas de estudos comissionados pela Cruz Vermelha Britânica em 2016, baseados em questionários com perguntas como “com que frequência você se sente solitário?”. A solidão, neste sentido, se tornava um caso de emergência para preservação da ordem pública, um caso de gerenciamento do sofrimento social, uma combinação de fatores demográficos, políticos, culturais, ideológicos e médicos que criaram uma “categoria de experiência” passível de governamentalização, um índice para gerir sofrimento psíquico em massa: mais de 9 milhões de cidadãos britânicos (ou seja, número maior que toda a população de Londres) poderiam ser chamados de “solitários”, segundo cifras do próprio governo. Surge o alarmismo de argumentos protetivos e garantistas para um estado de urgência de uma “epidemia de solidão”. Como, do ponto de vista liberal defensor de razão governativa, a solidão surge como problema?
A questão central é entender quando e como “solitude” se torna “solidão”. Segundo Vincent, justamente a partir de 1945, o mesmo momento da descoberta da valorização do isolamento como fator de construção de autonomia individual para uma nova geração, na mesma Inglaterra há uma repentina mudança demográfica na quantidade de idosos vivendo sozinhos, condição que leva a formas de sofrimentos psíquicos associados à ausência de companhia. No entanto, é preciso enfatizar o fato de que muito do sofrimento social associado à solidão está relacionado às escolhas aparentemente livres das pessoas, pois o grosso desse sofrimento decorre de supostas liberdades valorizadas.
Vincent esclarece que o sofrimento social decorrido por solidão voluntária se dá por períodos de transição que acabam durando muito mais do que o esperado, o que pode ocorrer em qualquer período na vida de uma pessoa de qualquer idade. Uma mudança de colégio durante a infância, sair de casa para trabalhar ou estudar numa universidade distante, mudar de região por troca de trabalho em carreiras em transição, uma maior propensão em começar e terminar relacionamentos íntimos e o prolongamento do período após a criação dos filhos, o que pode acarretar novas mudanças de casa e de atividade na rotina, todos estas são formas de transição que podem acarretar solidão involuntária como consequência de aparentes escolhas individuais.
Em cada um destes momentos da vida de qualquer cidadão médio existe a possibilidade de períodos de isolamento individual. O sentido destes períodos depende do cálculo de custo-benefício que fundamenta a iniciativa da mudança, os ganhos contrapostos aos inevitáveis períodos de perda e incerteza e o desajuste entre quantidade e qualidade de relacionamentos consolidados em processos individuais de socialização. O resultado é solitude se as consequências da transformação que motiva o período de transição são vividas como desfrute. A solidão se perpetua quando os períodos de ajuste se prolongam por muito tempo e indefinidamente. Numa sociedade em que cada vez menos os períodos de transição podem ser planejados e controlados, cada vez mais os períodos de isolamento levam ao sofrimento da solidão.
Em outro achado extraordinário pontuado por Vincent, a solidão foi identificada pela primeira vez como um problema moderno na Inglaterra durante o conflito com a política expansionista de Hitler. Durante o longo e duro período entre a evacuação de Dunkirk e os desembarques na Normandia, a manutenção e controle da vida de populações era crucial para a defesa nacional. Pela primeira vez numa democracia liberal a estrutura governamental passou a demonstrar um interesse sistemático por como pessoas comuns se sentiam em relação às próprias vidas. Antes, já era o bastante se basicamente obedecessem a lei, mantivessem observância sobre os princípios do cristianismo e reproduzissem sucessivas gerações de trabalhadores disciplinados, mas agora era de igual importância a manutenção do ânimo, manter um “high morale”.
O medo básico consistia em como sucessivas derrotas militares combinadas com numerosos bombardeios de centros populacionais e o racionamento de necessidades básicas fariam minguar a força de vontade em manter a resistência por parte da população não militar. A distância entre os interesses governamentais e a vida em sociedade da classe trabalhadora se faz notar em muitos exemplos nesses primórdios da gestão da solidão em massa. Num primeiro momento, a população feminina foi colocada sob forte observação, pois se imaginava que com a conscrição de maridos e evacuação de crianças, os núcleos familiares dissolvidos e a solidão gerada pela ausência do trabalho doméstico de boas mães e esposas as levariam a trabalhar contra o “esforço nacional”, pois a ansiedade e a solidão as tornaria inaptas para a nova situação de urgência. Mas foi o extremo oposto que se deu: ao invés de provar ser um obstáculo, a solidão empurrou uma massa de mulheres para a vida pública e para a luta coletiva por melhores condições de vida em fábricas e diferentes espaços de trabalho e em serviços voluntários para a guerra – um despertar contraditório e fascinante entre voluntarismo nacionalista e consciência de classe e gênero.
Durante os anos de construção do estado de bem-estar social, novas formas de solidão emergiram com a destruição violenta de comunidades inteiras, centros urbanos bombardeados impondo a necessidade de extensos deslocamentos entre espaços de trabalho e moradia de novos bairros proletários – toda uma gama de novas formas de solidão foi descoberta (Vicent usa como ilustração deste processo o filme de Ken Loach feito para televisão, Cathy Come Home, de 1966). A ansiedade pela solidão que espreita todo um país de sobreviventes de guerra torna-se uma patologia, um novo tipo de sofrimento social clinicamente reconhecido. A solidão tornou-se um índice de fracasso de socialização coletiva, portanto um fracasso social, de gestão de vida nacional. O gerenciamento da solidão em massa é também um produto de economia de guerra, de estados e sociedades colapsadas. A ambição iluminista da solitude sadia, a harmonização entre isolamento e socialização como forma de aprimoramento espiritual foi hoje solapada pela lógica de uma sociedade administrada, pois o tratamento de sofrimentos sociais se realiza em nome de imperativos de reprodução de sistemas de dominação social adequados à manutenção da ordem neoliberal.
Com a revolução digital, capítulo que conclui a exposição do livro de Vincent, as formas de solidão e solitude ganham nova escala e novas formas de composição. É neste estágio que se torna possível criar paralelos mais intensos entre a descrição de Vincent e a vida em sociedade organizada em outros fusos históricos, permitindo à imaginação literária e sociológica extrapolar os exemplos locais da cultura inglesa enumerados pelo autor erudito. Na era da uberização, que Vincent não trata em seu livro, na era do orgulho pelo autogerenciamento subordinado do trabalho, a ideia de vida em transição se perenizou em escala global. Não é incomum o papo de motorista de Uber de que “isso aqui é provisório, só até aparecer coisa melhor”. Neste exemplo específico, são horas e horas de solidão, nutrindo contato com pessoas apenas como clientes, a conversa descontraída é na verdade um instrumento desesperado para conseguir boas avaliações, a boa companhia é mecanismo de avaliação de performances de trabalho. Uma submissão ao trabalho intensificado e ultraprecarizado motivado pela narrativa de liberdade que o isolamento promove: é difícil descrever o alívio de exercer um trabalho sem os assédios e admoestações de um patrão e sem concorrentes imediatos para sabotar o desempenho da autoexploração.
Ora, não estamos vivendo a pandemia como se fosse um enorme período provisório que nunca acaba, e que evitamos aventar a possibilidade desta ser uma mudança permanente para não enlouquecermos de vez? Não é esta uma colossal promotora de solidão como sofrimento social? Não me refiro apenas ao distanciamento de quarentena, mas algo mais grave e de maior alcance no tempo, pois não é preciso apenas do isolamento físico para se padecer de uma vida solitária.
A vida que é uma perpétua transição é uma nova forma de governo, o salve-se-quem-puder da pandemia como estrutura disciplinar condiciona uma espera contínua. A vida precária de bico em bico, da eterna transição, é uma vida em solidão. O problema é que este sofrimento não é reconhecido porque aprendeu-se a agir como se fosse solução e não problema. Quem não sente o alívio de conquistar o bico que vai garantir o leite das crianças amanhã e o aluguel no fim do mês? O sofrimento e o alívio estão perfeitamente retroalimentados. A solidão é apreciada, não lamentada, pois é a prova de que se está mobilizado para sobreviver. No próximo bico as coisas mudam, é só segurar as pontas. A esperança de futura prosperidade pessoal é a miragem que prolonga a perpetuação da solidão em nosso tempo. É preciso encontrar alguma maneira de dizer “não precisa ser assim, não precisamos dessa solidão, nada disso precisa ser assim”. Mas o argumento bolsonarista, que não precisa de Bolsonaro no poder para se perpetuar, é mais forte.
Negar a solidão da individualidade forjada pelo mundo do trabalho precário como mero princípio moral nos remete aos dilemas da negação da condição de indivíduo abstrato portador da mercadoria força de trabalho, integrado a formas de socialização por interesses cegos e egoístas que camuflam estruturas sistêmicas. De nada se ganhará ao se vilificar a formação do gosto pela independência individual, tomar como princípio tautológico a oposição indivíduo=ruim/coletivo=bom nada esclarece, nada resolve da questão, em verdade parece apresentar uma falsa contestação. É a lição apresentada por Adorno no aforismo 6 de sua Minima Moralia, o ponto de partida básico que permite entender que a sujeição da vida ao processo produtivo capitalista “impõe de maneira humilhante a cada um algo do isolamento e da solidão que somos tentados a considerar como o objeto de nossa superior escolha”. A abdicação do sujeito isolado como princípio e aparência de vida reta, a recusa da vida individual independente imersa na ordem capitalista carrega o embrião daquilo que nega. A capacidade crítica da vida antiburguesa, da abdicação em tornar-se mônada, surge da capacidade de distanciamento crítico que a própria vida social de sujeitos isolados pôde fermentar. O não engajamento surge como questão a partir da frieza analítica sobre a autonomia individual e as renúncias que esculpiram a individualidade burguesa, frieza esta que se distingue muito pouco da própria frieza burguesa. Daí a importância da compreensão de um isolamento individual que não signifique mutilação subjetiva simplesmente, como Vincent propõe a pensar – e bastante distante das formulações de Adorno, diga-se de passagem.
Mas não é claro o que significa pensar a solitude em solo brasileiro, o país de escalas industriais que nunca consolidou uma sociedade salarial plena e imprime em sua lógica construtiva o gigantismo de colapsos destrutivos, movimentos rotulados de progresso que redundam em massacres sistemáticos e violência social como metodologia de ordenamento social. Pode a subjetividade do trabalhador de bicos, imerso na viração, encontrar solitude, encontrar em seu isolamento a possibilidade de devanear, sonhar livremente, exercer sua liberdade de imaginação sobre a própria vida e o mundo? Se a reinvenção da solitude é bloqueada pela redução do engajamento subjetivo à integração de corações e mentes à lógica de público alvo e empresariamento neoliberal, resta perguntar-se se a vida coletiva pode ser reinventada. Será possível responder ao medo da solidão com uma transformação radical da vida em sociedade? Será possível imaginar uma superação do isolamento não pelo medo da morte que a vida em pandemia impõe com apenas um “retorno à normalidade”, mas com a construção coletiva de outra forma de vida? Será possível a revelação de que a ideia de solidão encontra um conflito fundamental ao se despertar para a realidade de uma massa de solitários em interdependência sistêmica? Uma imaginação libertada talvez nasça da possibilidade de se estar isolado sem se sentir sozinho, de sujeitos formados que não caiam apenas em mutilações subjetivas, pois despertam para a reinvenção da solidariedade entre mutilados, uma descoberta de nova coletividade, que não é apenas aparência de vida reta e tautologia moral, uma subversão das aspirações por harmonia do individualismo burguês refletido pela ideia de solitude. Uma consciência que perceba que mesmo a solitude como descrita por David Vincent em sua obra impressionante é muito pouco, mesmo sendo muito.
[1] EAGLETON, Terry. “A History of Solitude by David Vincent; A Biography of Loneliness by Fay Bound Alberti – review”. In: The Guardian (Site). 19/03/2020. https://www.theguardian.com/books/2020/mar/19/history-solitude-david-vincent-biography-loneliness-fay-bound-alberti-review. (Último acesso: 25/01/2022).
Fonte da matéria: “História da Solitude” e a reinvenção da solidariedade – Outras Palavras – https://outraspalavras.net/poeticas/historia-da-solitude-e-a-reinvencao-da-solidariedade/
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