Gabriel Rocha Gaspar – O Ministério do Bom Senso adverte: este texto contém doses perigosas de ironia. Numa sociedade contaminada pelo fascismo, não existem níveis seguros para o uso dessa substância.
O presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luiz Fux, ameaçou suspender as eleições presidenciais durante um fórum sobre as chamadas “fake news” promovido pela insuspeita revista Veja. De acordo com o ministro, “uma propaganda que visa destruir o candidato alheio configura um abuso de poder que pode levar à cassação”. É pra rir ou pra chorar?
Podemos começar rindo de uma cruzada contra fake news promovida pela Veja – a mesma revista que noticiou uma inexistente conta milionária do Romário, publicou fotomontagem do Lula abraçado com a Rosemary Noronha, atestou com convicção (mas sem provas) que Fidel Castro enviou US$ 3 milhões para o PT acondicionados em caixas de bebidas etc., etc., etc. É como se uma Câmara Legislativa presidida pelo Eduardo Cunha derrubasse o Poder Executivo em nome do “combate à corrupção”. Imagina só!
Mas a tragédia é tão profunda que não tem nem por onde rir. A começar pelo fato de que já tem gente falando em coibir “fake news” sem que tenhamos sequer definido o que são “fake news”. Porque, se encararmos a tradução ao pé-da-letra (notícias falsas), pode ter certeza de que estamos atacando o problema errado. A promoção do desconhecimento como arma política não é nenhuma novidade.
Quase 100 anos antes de Cristo, Julio César manipulou o medo generalizado de uma ameaça bárbara para justificar uma invasão da Gália e construir capital político para entrar em Roma como imperador. Hitler vestiu seus soldados em uniformes poloneses e atacou uma estação de rádio na fronteira com a Polônia para justificar a expansão nazista para o Leste. Bush jurou de pé junto que Saddam Hussein tinha armas químicas para justificar uma operação de assalto ao petróleo. No pós-crise de 2008, democracias liberais do mundo todo transformaram o crescimento da dívida interna na maior ameaça à segurança econômica mundial para garantir que os pobres pagassem pela farra financeira de bilionários.
Foi um bom nacionalista alemão chamado Joseph Goebbels quem inventou a metodologia contemporânea de disseminação de fake news (também conhecida como propaganda), que ele definia cinicamente: uma mentira repetida à exaustão vira verdade.
O comandante da Luftwaffe (Força Aérea alemã) e inveterado viciado em morfina Hermann Göring, por exemplo, meteu o louco e soltou a seguinte pérola durante o tribunal de Nuremberg, que julgou os crimes nazistas no pós-Segunda Guerra: “o povo sempre pode ser forçado a se ajoelhar diante de seus líderes. Isso é fácil. Tudo que você tem que fazer é dizer que eles estão sendo atacados e denunciar os pacifistas como antipatriotas que estão colocando o país em perigo. Funciona assim em qualquer país”. Imagino o então deputado Lyndon B. Johnson ouvindo o depoimento no rádio e pensando: “alguém dá logo um tiro nesse filho da puta, antes que ele dê o spoiler completo da guerra que eu vou fazer no Vietnã!” Quer dizer, a diferença entre os bons capitalistas liberais e os maus capitalistas fascistas é uma questão de etiqueta, não de respeito aos direitos humanos. Os liberais mastigam o povo de boca fechada e dispensam os restos no banheiro, enquanto os fascistas sujam a mesa com cadáveres. Fascistas matam fedido, liberais matam limpinho.
Fake news, um slogan
Tá certo, mas o que isso tem a ver com o fato do Fux ameaçar cancelar as eleições em nome do combate às “fake news”? Tudo. “Fake news” são em si um conceito publicitário e como tal, não podem ser encaradas sem uma menção honrosa ao nazismo, que nos presenteou com a forma contemporânea de forjar e manipular vontades políticas. Com o ar de novidade com que são apresentadas, “fake news” não passam de um slogan de pseudo-combate às estratégias de manipulação da vontade popular. Só que slogan funciona que nem o mito da caverna. Liga o Mito da Caverna? Aquela historinha do Platão: tinha uma galera presa numa caverna, que só via o mundo através das sombras projetadas por uma fogueira numa parede. O que acontecia do lado de fora da caverna aparecia como imagens chapadas na parede pra quem estava dentro. E a turma da caverna achava que as sombras tremulantes eram o mundo de fato e não uma imitação da realidade. Slogans são sombras de conceitos.
Ou seja, a maior “fake news” que a gente tem é o próprio conceito de “fake news”. Obviamente, não estou negando a existência de notícias falsas. Pelo contrário. Elas são tão profundamente arraigadas na nossa cultura, que simplesmente proibi-las é tapar o sol com a peneira. É como proibir a corrupção. Ok, a corrupção é proibida, mas e daí? É preciso um rearranjo cultural e cognitivo para enfrentar este tipo de coisa. Rearranjo cultural dá trampo, altera estruturas que estão consolidadas pra quem tem muito poder, estimula a sociedade a se refletir e se reinventar, dissemina criatividade política.
Quem tem poder e um mínimo de inteligência sabe disso. E sabe também que 92% dos brasileiros estão preocupados com isso. Pior, estão em pânico, que é o estado ideal para engolir medidas autoritárias que só beneficiam quem já tem dinheiro e poder. Como explica o psicólogo Roy Eidelson, no livro recém-lançado Political Mind Games: how the 1% manipulates our understanding of what’s happening, what’s right and what’s possible (trad. livre: Jogos Mentais Políticos: como o 1% manipula nossa compreensão do que está acontecendo, do que é correto e do que é possível), “nossa preocupação com a vulnerabilidade é central para a maneira como vemos o mundo ao nosso redor. Quando nossa segurança está ameaçada, nada mais importa. A simples expectativa do perigo pode consumir todo nosso foco e energia. Portanto, não é à toa que o desejo de assegurar nossa segurança – e de nossos entes queridos – é uma força poderosa para determinar as políticas que apoiamos e as ações que tomamos. Por isso, os plutocratas de hoje trabalham duro para moldar nossa percepção da vulnerabilidade para seus próprios objetivos”.
Se a pesquisa da BBC mostrou que temos pânico de “fake news”, hora de mistificar mais ainda as “fake news”, transformá-las no bicho-papão das eleições, capaz de ameaçar a própria legitimidade da vontade popular. Para que este esforço dê frutos, é necessária uma construção anti-intelectual, anti-racional das “fake news”. Ou seja, é necessário maximizar a sombra publicitária do fenômeno como meio de obscurecer o fenômeno em si. Em outras palavras, evitar fornecer às “fake news” um corpo teórico. “Fake news” só podem gerar medo, que é uma moeda política facilmente modelável; nunca pensamento.
O que Fux começou a fazer ontem foi essa mistificação. Exatamente o contrário do que fez o Conselho Europeu. Ao invés de soltar ameaças vagas sobre a judicialização do processo eleitoral, este órgão – que não dá para chamar exatamente de antro de comunistas – encomendou à doutora em Comunicação e diretora de Redes Sociais da Agência da ONU para os Refugiados (ACNUR) Claire Wardle e ao escritor e ativista iraniano Hossein Derakhshan uma pesquisa acadêmica séria que permitisse entender a complexidade do fenômeno e balizar a tomada de decisões políticas. O resultado foi a monografia Distúrbio informativo: em direção a uma moldura interdisciplinar para pesquisa e formulação de políticas públicas, divulgada em 2017 pelo First Draft, centro de pesquisa de mídia de Harvard. Pra gente aqui no Brasil, pode parecer atrasado mas, em alguns lugares do mundo, políticas públicas ainda são baseadas em pesquisas e não em memes.
A primeira conclusão da pesquisa é justamente que o termo “fake news”, embora seja um slogan chiclete, não dá conta do fenômeno. Primeiro, porque a maior parte das narrativas que promovem e se alimentam do desconhecimento não é nem notícia nem necessariamente falsa. Muito mais frequentes do que mentiras deslavadas à la MBL e 4Chan são as imagens colocadas fora de contexto ou em arranjos semióticos que conduzem o leitor a interpretar aquilo que o autor da narrativa quiser.
Distúrbio informativo
De forma muito resumida, o estudo da Comissão mapeia este ecossistema a partir de algumas definições gerais de suportes de notícias, meios de propagação, tipos de autores e receptores, que se influenciam e se modificam mutuamente, de formas distintas. Para analisar uma “fake news”, é preciso primeiro saber se a informação é simplesmente falsa, simplesmente prejudicial a alguém ou se é os dois ao mesmo tempo. Ela pode ser o vazamento de uma escuta ilegal, por exemplo, que não traz nenhuma mentira intrínseca, mas tem o único objetivo de prejudicar alguém. Uma presidenta da República, para usar um exemplo aleatório, sem qualquer relação com o Brasil.
Em segundo lugar, temos que analisar quem propaga a narrativa, como propaga e qual seu grau de credibilidade diante do receptor, que pode ser passivo (não fazer mais do que receber o conteúdo) ou ativo, compartilhando o que recebe. E mesmo no caso do compartilhador ativo, há variáveis que têm de ser consideradas, uma vez que, no ecossistema da propagação de mensagens nocivas, a intencionalidade é fundamental. A pessoa compartilhou como apoiadora ou opositora da mensagem? Isso vai mudar a maneira como ela é redistribuída – sim, porque o conteúdo na comunicação em rede sofre diversas distribuições ao mesmo tempo, por razões e com objetivos inumeráveis.
Isso significa que é essencial analisar também o processo de propagação: como a mensagem é criada, como é distribuída, como é recebida, eventualmente remixada e redistribuída. Como se tudo isso não bastasse, quem se aventurar a estudar esse problema tem que levar em conta o suporte de distribuição, já que ele influencia em todos os agentes anteriores. Embora a gente fale em “fake news”, as notícias falsas são a minoria absoluta do conteúdo nocivo. Em quantos dos seus grupos de WhatsApp, os “textões” são proibidos enquanto os memes circulam livremente? Dá para dizer que memes são necessariamente notícias falsas? Por outro lado, considerando que os grupos de família são os principais vetores de difusão do caos informativo, dá para ignorar o papel dos memes na construção de narrativas ou destruição de reputações?
Essa comunicação descentralizada, de intencionalidades múltiplas, altera o mapa da comunicação de uma maneira inédita na história. O emissor não é necessariamente conhecido ou respeitado, a credibilidade passa por critérios subjetivos obscuros e o receptor não é necessariamente passivo. Ou seja, estamos falando de um ambiente de poluição comunicativa que frequentemente escapa ao controle dos centros de poder e exige novos paradigmas conceituais.
Neste sentido, o olhar reducionista sobre o slogan “fake news” restringiu o debate ao plano textual. E pior: fez com que as empresas de tecnologia e pesquisadores do tema gastassem tempo demais desenvolvendo técnicas de localização textual de mentiras. Bom, deveríamos buscar as más intenções em vídeos, memes, gifs… Deveríamos, como sugere o estudo, neutralizar as incontáveis variáveis que resultam neste “distúrbio informativo” de proporções internéticas.
Mas será que isso é possível? É possível proibir as más intenções e a influência delas em processos sociológicos, políticos, econômicos e culturais? É possível criar uma boa técnica que freie a subversão da democracia pelo mau uso da técnica? Ainda que não possamos nos dar ao luxo de buscar paliativos, é preciso ter a honestidade de encarar paliativos pelo que são e reconhecer que a resposta para as três perguntas anteriores é provavelmente não. Não tem jeito de conter tecnicamente o distúrbio informativo, como não tem jeito de avaliar objetivamente se alguém chegou ao poder por “fake news” ou não. Afinal, todo mundo que chegou ao poder teve sua dose de notícias falsas, manipulações, propaganda. Isso deve ter começado no primeiro pilantra que resolveu marcar os dias com risquinhos num cajado, reparou que as estações do ano são cíclicas, previu um inverno e convenceu todo mundo de que era profeta. Quer dizer, a manipulação é um vício de origem, mas não é na origem da mensagem que devemos buscar a cura do vício. É no preparo do receptor.
Se o ministro Fux, se a Veja, se quem quer que seja estiver interessado em de fato combater “fake news”, não como uma estratégia publicitária de disseminação do pânico, não como um estigma a ser colado ao inimigo da vez, como “corrupção” ou “terrorismo”, mas como uma doença social que subverte a democracia, um bom começo pode ser estudar a literatura que está sendo produzida sobre isso no mundo. Traduzir a pesquisa encomendada pelo Conselho Europeu e distribuí-la amplamente pelos agentes envolvidos na execução e fiscalização do processo eleitoral pode ser uma boa.
Mas mesmo isso é um paliativo. Porque no fundo, só existem três ferramentas capazes de atacar o problema de fato. E, como as três são medidas de longo prazo, nenhuma delas vai render fatias de poder pra ninguém. A mais importante de todas é a alfabetização crítica da população: preparar o nosso povo, desde cedo, para compreender as mensagens subliminares de qualquer discurso autoritário. E toda propaganda é autoritária, uma vez que o emissor se vale de um repertório psico-semântico que não está disponível ao receptor.
Segundo, é preciso politizar honestamente a sociedade inteira. As pessoas têm de saber se colocar num campo político, saber que querem o poder e porquê querem o poder. É preciso que a política não seja um clube VIP de engravatados, mas uma atividade cotidiana de promoção do bem-estar humano. Assim, as pessoas serão capazes de diferenciar as propostas políticas que de fato visam o bem coletivo daquelas que ideologicamente sequestram o poder da maioria para o benefício de poucos.
Por fim, é preciso que a mídia seja amplamente democratizada. E essa democratização não é simplesmente uma redistribuição de verba entre veículos midiáticos já existentes. Ainda que obviamente, uma mídia monopolista e oligárquica como a nossa seja um canhão na têmpora da democracia, a democratização é mais do que uma canetada. Ela é dependente da alfabetização crítica. Ela tem de ser um processo que quebre monopólios ao mesmo tempo em que eduque as pessoas para distinguir conteúdo informativo de melodrama sensacionalista. É preciso ensinar à sociedade os truques da construção ideológica da imagem, rompendo as diversas esferas de distinção entre emissor e receptor. Em outras palavras, a democratização da mídia implica ampla redistribuição do poder. Não apenas do poder de difundir, mas do poder de interpretar o que se recebe.
Sem essas três medidas educativas que busquem desconstruir o caráter autoritário da comunicação universalizando a democracia informativa, não há como efetivamente enfrentar “fake news”, independentemente do quão sofisticado seja seu algoritmo de detecção e verificação. Nosso maior problema não é a criação de narrativas mal-intencionadas ou seus novos meios técnicos de propagação. O problema é que a gente está moldado pra acreditar em propaganda como se fosse informação. Ainda que estas soluções estejam no longo prazo, a simples tentativa de desmascarar a instrumentalização publicitária das “fake news” e o compromisso com a racionalização do conceito frente à tentação reducionista já são vias de enfrentar o problema.
E, ao longo desta luta, temos que ter sempre na mente: ou aprendemos a nos comunicar fora da lógica da propaganda goebbeliana, que legitima a mentira e a manipulação, ou o distúrbio informativo terá vindo para ficar.
Fonte da matéria: A maior fake news do Brasil é a ideia de fake news ~ Afroências – http://www.afroencias.com.br/2018/04/a-maior-fake-news-do-brasil-e-ideia-de.html
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