Política

A extrema direita e o triunfo da estupidez (2)

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Daniel Vaz de Carvalho

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Falámos da estupidez funcional, Noam Chomsky fala-nos da estupidez institucional:   “A estupidez apresenta-se de diversas formas, em particular a que me parece mais problemática de todas poderia chamar-se a estupidez institucional. É uma espécie de estupidez que permanece completamente racional se se considera no quadro em que opera, porém é o próprio quadro que evolui entre o grotesco e uma virtual loucura”.

Um exemplo da “estupidez institucional” é a democracia liberal”, o neoliberalismo, que o sr Fukuyama disse ser o fim da História. Apesar dos milhões de dólares que ganhou com a presunção que é apanágio dos ignorantes, não passa disto mesmo. A tal “democracia liberal”, trouxe caos, guerras, instabilidade social, gritantes desigualdades, a paz sequestrada sob dramáticas ameaças nucleares.

Mas este padrão não se aplica apenas à extrema-direita, mas também às políticas social-democratas, políticas de direita, que adotam a “democracia” dos oligarcas. No mesmo sentido, o discurso de comentadores pode ser perfeitamente lógico, embora evoluindo sem relação com a realidade causal, em circunlóquios sobre aparências.

A extrema-direita, nas suas versões melíflua, snobe ou arruaceira, afirma-se contra “o sistema”, porém pretende tenazmente aprofundar o status quo neoliberal existente. O seu grande objetivo é abater na Constituição democrática os direitos nela consagrados apesar das revisões feitas para desvirtuar o espírito do 25 de ABRIL. Seguem a mais canónica das tradições reacionárias: querem parecer inconformados, rebeldes, mas acabam defendendo o pior do sistema que tem levando ao limite possível as ditas “reformas estruturais”.

Nos desideratos da extrema-direita, está inscrita a liberdade de facto irrestrita para o grande capital, tudo isto mascarado com o “bem comum”, tradição, espírito cristão e “interesses económicos”, decalques do fascismo salazarista. Efetivamente, como disse Jonh Keneth Galbraith: “o conservadorismo moderno está comprometido com um dos exercícios mais antigos que se conhecem: a procura de uma justificação moral para o egoísmo”.

As elevadas taxas de abstenção não só ao voto, mas à participação cívica e sindical, coadunam-se com a “democracia liberal” que permite à oligarquia conservar o poder e criar divisões entre as forças populares. Representam um triunfo do discurso populista contra os “políticos” para que reais alternativas sejam escamoteadas, não passem para a opinião pública, não se tornem suas.

O neoliberalismo é, com o fascismo, o mais violento meio de promoção das desigualdades. “Cada dia se imporá com mais clareza que o liberalismo económico é uma das formas mais revoltantes de privilégio e despotismo”, disse um dos fundadores da Seara Nova, Raul Proença. O neoliberalismo coloca os países, os povos à mercê dos interesses das “elites” financeiras, “que com os seus sicários chantageiam os povos, subvertem Constituições democráticas e culpabilizam trabalhadores pelos seus direitos. De facto, a truculência da extrema-direita contra o “sistema” esvai-se ao adotar o que mais reacionário ele representa: o conformismo neoliberal.

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Exemplo do populismo obscurantista é afirmar que um país deve ser gerido como uma “boa dona de casa” ou uma empresa privada. Faz por ignorar o que sejam finanças públicas, o papel do OE na economia e a possibilidade de um país criar moeda. Claro que na UE isso foi entregue à banca privada, via BCE, sem qualquer justificação teórica e desastrosas consequências práticas tornando os povos reféns da especulação financeira.

Repetem a falácia do “menos Estado”, o álibi para decisiva parte do poder público passar a ser detido por potentados privados, permitindo que a corrupção, a especulação e a usura se exerçam sem entraves de maior. A encenação de justiceiros contra a corrupção da extrema-direita, desaparece na propalada superioridade da iniciativa privada, uma mistificação desmentida pelas sucessivas fraudes e falências bancárias, e não só, que ocorreram por todo o mundo capitalista, como em Portugal nos casos BES, BPN, BPP, BANIF.

À sombra do álibi salazarista da economia de um capitalismo de “famílias e empresas”, entregaram-se monopólios naturais e fizeram-se privatizações ruinosas à custa do Estado – que alguns relatórios do Tribunal de Contas denunciaram – nas PPP, GALP, REN, EDP, ANA, CTT. A despesa com PPP atingiu 1,8 mil milhões de euros em 2015; quase 1,5 mil milhões em 2019.

Perante isto, as criticas recaem sobre o Estado e os “políticos”, defendendo o “menos Estado” e a “economia de mercado” – monopolista – como a única viável e eficiente, pois o Estado é mau gestor. Claro que é mau gestor ao colocar-se ao serviço dos interesses privados e não dos interesses coletivos e sociais.

Quando fraudes e má gestão se tornam evidentes e mesmo escândalo público, as acusações são dirigidas a pessoas, ao Estado, ao sistema democrático que promoveria a corrupção, nunca contra a natureza predatória do sistema capitalista, que esmaga os povos em benefício de uma minoria que vive da usura, da especulação, da exploração e da austeridade.

Grandes economistas como Michael Hudson, Prabhat Patnaik, Remy Herrera (do qual existe aqui uma resenha do seu livro A doença degenerativa da economia: o neoclassicismo) têm sido divulgados neste sítio, mostrando o absurdo teórico e o fracasso na prática do designado neoliberalismo.

Os enormes lucros e a extrema desigualdade resultante da exploração capitalista não foram nem são capazes de tirar o sistema da sua crise estrutural. As políticas de “ajustamento estrutural” não só se revelaram totalmente ineficazes para resolver desequilíbrios internos e externos como contribuíram mesmo para propagar as causas da crise. A progressiva desregulamentação, privatizações e livre circulação de capitais provou o seu fracasso. Mas é isso que as políticas de direita continuam a propor. Obedientemente, a extrema-direita não tem outras, além de querer impor mais “disciplina” sobre os trabalhadores restringindo a ação dos sindicatos, apresentados como “grupos de pressão”.

A intenção de retirar o Estado das prestações sociais e dar “cheques saúde”, “cheques ensino” para entregar aos privados, revela o uso que pretendem dar ao “dinheiro de todos nós”. Porém são incapazes de dar um número do montante destes cheques, quem os receberia e onde o Estado iria buscar esse dinheiro. Consequências destes critérios são a dívida estudantil nos EUA atingir 1,7 milhões de milhões de dólares; os gastos com a saúde atingirem em média 11 000 dólares por pessoa e por ano, embora 30 milhões de cidadãos não tenham seguro de saúde e a idade média de vida esteja ao nível de alguns países ditos “em desenvolvimento”.

Quando se afirma que o “Estado Social tem de ser associado às disponibilidades que o Estado tem”, está-se a dizer que as prioridades são as da especulação e da agiotagem fomentada e protegida na UE pelo BCE. Porém, que “disponibilidades” existem ou se criam quando o Estado deixa fugir a riqueza criada no país para paraísos fiscais e entrega ao desbarato a grupos privados empresas públicas lucrativas?

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O ataque às prestações sociais, dizendo que meio país anda a trabalhar para a outra metade mostra a que ponto a estupidez se propaga através da mentira. Os trabalhadores com contratos de trabalho são diabolizados. Para a extrema-direita as empresas públicas são para quem trabalha lá, porque são os que podem fazer greve. No Estado, dizem, não há incentivo a que se trabalhe bem, o que é um insulto para a esmagadora maioria destes trabalhadores, que apesar das políticas de direita os terem deixado sem aumentos reais há dez anos, são quem em última análise mantém o país a funcionar, embora tratados pelos adeptos da extrema-direita, e não só, como uns privilegiados, parasitas dos contribuintes.  O ódio aos trabalhadores e seus direitos revela-se na boçalidade destas calúnias e falsidades, que encontram eco numa pequena burguesia recalcada.

As lutas dos trabalhadores do sector privado são escamoteadas da opinião pública tal como antes do 25 de ABRIL. Esconderam-se lutas travadas nas indústrias do papel, na alimentar, metalurgia, material elétrico e eletrónico, na têxtil etc. Nas cantinas, nos hotéis, nos correios, nas empresas privadas de transporte de passageiros, na comunicação social, etc. Tal como as lutas pelos baldios, dos produtores de leite, dos pequenos agricultores, dos estudantes, etc.

Para a direita, vale o postulado do liberalismo que “a melhoria das condições de vida da classe trabalhadora é sobretudo um problema de aumento da produção e de organização dos mercados e não um problema de redistribuição de riqueza”. Uma hipocrisia revelada com as obscenas desigualdades e riqueza acumulada nos “paraísos fiscais”. Com o movimento sindical marginalizado, o argumento dos “custos no trabalho” serve para os trabalhadores serem levados a aceitar o que quer que seja para manterem o emprego ou emigrarem.

As consequências das políticas de direita e extrema-direita, propaladas como símbolo de eficiência, são evidentes no país considerado o mais rico (se ignorarmos o capital fictício), os EUA, paradigma do neoliberalismo e exemplo da “estupidez institucional”:   estagnação do rendimento das camadas médias, insegurança económica crónica e aumento da desigualdade. O trabalho a tempo parcial mais o desemprego real representa 24% da força de trabalho disponível, que se mantém abaixo do limite de pobreza, embora os 400 mais ricos detenham mais que 64% da população, 213 milhões de pessoas.

Um sistema tão desconforme, tem como característica gerar crises, económicas, financeiras, sociais. Contudo, sem temerem a contradição para com os dogmas liberais, para manter o sistema e os seus esquemas, ditos de eficiência máxima, apelam ao Estado. Este que se endivide para salvar oligarcas: o agravamento da austeridade que se seguirá é mesmo necessário para manter o sistema ao abrigo das reivindicações e “ilusões progressistas”.

A questão é que o “menos Estado”, não pode resolver qualquer crise, originada pelos seus processos. Com o Estado “pequeno, mas forte”? Com os recursos do Estado “boa dona de casa” sendo dada prioridade à agiotagem financeira acima das necessidades sociais? Já Einstein dizia que “querer resolver qualquer problema com os processos que lhe deram origem releva insanidade”. Ora não se tratando de loucura, trata-se da “estupidez institucional”.

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Liberal ou “iliberal” o capitalismo encaminha-se para formas fascizantes se a isso não se opuser a luta dos trabalhadores. A social-democracia bem pode tentar convencer que outro capitalismo é possível. O facto é que não é possível a democracia manter-se sob o sistema monopolista, tal como sob o imperialismo apenas existe uma liberdade condicional.

Como disse Brecht:

“O fascismo não é o contrário da democracia burguesa, é a sua evolução em tempos de crise”. “O fascismo é uma fase histórica do capitalismo; neste sentido, é algo novo e ao mesmo tempo antigo. Nos países fascistas, o capitalismo continua a existir, mas apenas na forma de fascismo; e o fascismo apenas pode ser combatido como capitalismo, como a forma de capitalismo mais nua, sem vergonha, mais opressiva e mais traiçoeira. (…) Como pode alguém dizer a verdade sobre o fascismo, a menos que esteja disposto a falar contra o capitalismo, que o traz à tona? Ao descrever o fascismo e a guerra devemos mostrar que esses desastres são lançados pelas classes possuidoras para controlar o grande número de trabalhadores que não possuem os meios de produção. Se as causas evitáveis puderem ser identificadas, as más condições poderão ser combatidas”.

É facto que a social-democracia de várias tonalidades, com as suas políticas de conciliação com o grande capital e ataque ao marxismo, abre as portas à extrema-direita. Não o entende porque supõe ser capaz de submeter a lei fundamental do capitalismo às instituições da democracia burguesa. A social-democracia contém já todos os germes da sua degradação reacionária.

Melíflua, snobe ou arruaceira, conforme os estratos sociais, a extrema-direita age através do populismo, forma de encobrir reais objetivos e métodos. A sua verdadeira natureza revela-se na omissão ou na rejeição de tudo o que de perto ou de longe possa melindrar o grande capital e a finança. Nestas alturas, aparece o seu rosto de intolerância e arrogância classista. O populista é o mixordeiro da política, a mesma mistela das milagrosas soluções neoliberais é servida: o falso mercado perfeito, a austeridade sobre os que menos têm e sobre as camadas médias.

Proclamam bons princípios, equidade, justiça social, bem comum, mas a sua moral centra-se no “nivelar por baixo”. Há trabalhadores com mais regalias que outros? A “justiça social” faz-se então retirando-as a todos. Não ter precariedade laboral é um “privilégio”, e eles são contra os privilégios – mas apenas para quem trabalha: nivele-se então por baixo e que a precariedade seja a condição geral.

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Havia uma anomalia portuguesa. Portugal era de facto anómalo enquanto a extrema-direita proliferava em vários países europeus. Mas isso resolveu-se: pega-se numa figura com perfil para os media ou promovida a tal e anda-se com ela. Não precisam pensar muito, a agenda está de antemão preparada e é servida em qualquer parte do mundo.

Pode perguntar-se como chegamos a isto. Passa-se a ideia que antes do 25 de ABRIL havia “ordem”, “disciplina” nas escolas e nas empresas, o país folclórico da alegria campestre temente a Deus ou, antes, à Igreja. Mas no fascismo salazarista o que havia era emigração em massa que fugia à fome e miséria nos campos. Trabalho infantil, precariedade, férias só para alguns, atraso, analfabetismo e para manter toda esta “ordem”, o medo da prisão e tortura. Era esta a “salvação nacional” e a “ordem nas ruas e nos espíritos” que o regime estabelecia.

Para que o vírus da extrema-direita alastre é preciso que o corpo social perca resistências, que as vítimas da exploração e marginalização percam a consciência de classe, objetivo central da extrema-direita. É necessário que passem a considerar os da sua condição como causa do que lhes ocorre. Trata-se de aceitar que “são os que menos trabalham os que têm mais direitos”. Trata-se de convencer reformados, desempregados no limite da subsistência e camadas sociais intermédias em condições de insegurança, que a culpa das suas dificuldades é dos sindicalistas, dos “comunistas”, da própria democracia.

Com isto procura-se que as pessoas fiquem disponíveis para aceitar como sem alternativa e sem reivindicações, as regras ditadas pelos monopólios e pela finança, deixando funcionar o “mercado” e a “livre empresa”. É fácil odiar o vizinho sindicalista, o “preto”, o cigano, o comunista, difícil é “comentadores” atribuirem o que está mal aos oligarcas com fortunas nos paraísos fiscais, escondidos pela “mão invisível” dos “mercados”.

As armas do reacionarismo são a mentira, o obscurantismo, quando não a estupidez malévola. A extrema-direita tem-se valido da agenda mediática, que se limita ao “consenso” neoliberal”, símbolo da esquizofrenia política que contaminou europeístas e atlantistas. Trata-se apenas de uma anestesia de boas intenções, mascarando as políticas de direita como “moderadas” e “realistas”, para parecerem que estão do lado das inquietações e insatisfação das pessoas.

É um discurso vazio que faz por ignorar as causas dos problemas, tendo o cuidado de nunca admitir a hipótese de um sistema diferente, fazendo o possível por defender ou escamotear o descalabro das políticas de empobrecimento, desemprego, emigração em massa, falências das MPME e famílias. A redução da austeridade impulsionada pela esquerda consequente foi mesmo facciosamente qualificada de “facilitismo”:  “quando tudo parecia nos trilhos certos (!) eis que voltamos ao espírito da facilitação”, era dito.

Tal como no passado, opondo-se a que triunfe a estupidez funcional que leva pessoas a votarem contra os seus interesses como proletariado ou micro e pequenos empresários e a aceitarem passivamente os absurdos neoliberais, a solução reside nas transformações democráticas impulsionadas pelo marxismo, um humanismo herdeiro do que mais avançado e puro vinha da tradição humanista da Renascença e do iluminismo do século. XVIII.

A História vai conduzindo a Humanidade para o progresso, por um processo sinuoso é certo, mas inexorável, pois por grande que pareça ser o império do capital este sistema não consegue anular os antagonismos gerados pelas suas contradições.

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Fonte da matéria: A extrema direita e o triunfo da estupidez (2) – https://www.resistir.info/v_carvalho/extr_direita_2.html

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