Sociedade

‘Ferida colonial do trabalho doméstico vem se atualizando por cinco séculos’

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Amauri Arrais – Doutora em antropologia, Rosaly de Seixas Brito fala sobre como a pandemia expôs ainda mais desigualdades de gênero, raça e classe na rotina de empregadas no Brasil

Enquanto a apresentadora finaliza a receita, uma outra mulher, quase sempre negra, de uniforme e em silêncio, recolhe utensílios sujos e traz o prato já pronto. Foi assim durante décadas e ainda é. Ao mesmo tempo em que nos orgulhamos de demonstrar habilidades na cozinha ou em outras tarefas de casa, há geralmente alguém, a quem nos referimos como “quase da família”, que arca com parte do trabalho — em geral a mais pesada. Uma relação de subalternidade que se atualiza ao longo do tempo e da qual a televisão é só um reflexo.

“Graças ao passado colonial, o Brasil se constitui como uma sociedade profundamente racista, fundada no patriarcalismo, na desigualdade de gênero e de classes e também numa visão patrimonialista”, diz a professora Rosaly de Seixas Brito, doutora em antropologia pela Universidade Federal do Pará. O trabalho doméstico, afirma, é um sintoma e uma consequência dessa matriz cultural, “por isso ao longo do tempo nem foi visto como uma relação trabalhista, mas quase como uma obrigação”.

Junto com a também professora Danila Cal, ela organizou o volume “Comunicação, Gênero e Trabalho Doméstico — Das reiterações coloniais às invenções de outros possíveis” (Ed. CRV, 2021), que investiga o trabalho de empregadas, babás, cuidadoras e outros serviços domésticos no país, historicamente marcados por essas desigualdades de gênero, classe e raça.

Entre os 14 capítulos, assinados pelas organizadoras e pesquisadores do tema nas áreas de comunicação e antropologia, há quatro escritos por empregadas domésticas da região amazônica, em que relatam uma rotina de trabalhos exaustivos, abusos e pouca ou nenhuma remuneração.

Lançado em meio à pandemia, o livro é dedicado a Miguel Otávio de Santana, o menino de 5 anos que morreu ao cair do nono andar de um prédio em Recife, e a sua mãe e avó, que trabalhavam para a dona do apartamento durante o isolamento. A chegada do vírus ao Brasil –cuja primeira morte registrada, não por acaso, foi de uma empregada que cuidou da patroa contaminada após uma viagem à Europa– expôs ainda mais as relações de poder que atravessam o trabalho doméstico no Brasil, afirma a pesquisadora.

Entre famosos que tentaram justificar a presença de cozinheiras e babás em suas casas durante o isolamento e denúncias de cárcere privado, houve a tentativa, no Pará, de incluir o trabalho doméstico entre os serviços essenciais no decreto de lockdown do estado — revogada após protestos.

“Por que a saúde dessas trabalhadoras e trabalhadores deveria ficar em segundo plano, expostas à contaminação do vírus?”, questiona Brito. “Isso mostra como os corpos e a saúde deles são vistos como inferiores.” Na conversa com Gama, a pesquisadora fala ainda sobre a luta política das empregadas e se um dia vamos superar o modelo de país que se acostumou a terceirizar as tarefas domésticas pagando muito pouco por isso.

Está naturalizada a ideia de que o trabalho doméstico precisa ser delegado a mulheres e negras socialmente vulnerabilizadas

G |Por que é tão difícil para nós brasileiros assumir as tarefas de casa e superar o hábito da terceirização?

Rosaly de Seixas Brito |

No livro “Comunicação, Gênero e Trabalho Doméstico”, nós nos valemos da metáfora da “ferida colonial” para assinalar um traço fundamental da nossa história, que é nosso passado escravagista. Trata-se de uma condição que nos constitui como sociedade e, portanto, está profundamente arraigada e vem se atualizando ao longo de mais de cinco séculos. Graças a esse passado, o Brasil se constitui como uma sociedade profundamente racista, fundada no patriarcalismo, na profunda desigualdade de gênero e de classes e também numa visão patrimonialista, em que o Estado e a coisa pública são tomados como propriedade privada das elites. Nesse contexto, o trabalho doméstico, tal como ele foi exercido desde a colonização, explorando especialmente a mão de obra de mulheres negras escravizadas, é indissociável dessa matriz cultural. Na verdade, ele é um sintoma e uma consequência direta dela, por isso ao longo do tempo nem foi visto como uma relação trabalhista, mas como algo que, por estar invisibilizado no espaço doméstico, acabou sendo considerado quase como uma “obrigação”. A reprodução dessa matriz cultural naturalizou, tanto para as elites quanto para as classes médias brasileiras, a ideia de que o trabalho doméstico precisa ser delegado a pessoas, especialmente mulheres e negras, que já vêm de uma condição social vulnerabilizada.

G |No Pará, onde você vive, governantes de dez cidades chegaram a incluir o trabalho doméstico entre os serviços essenciais durante o lockdown, mas recuaram depois de protestos. O que a pandemia evidenciou sobre a vulnerabilidade desses trabalhadores?

Rosaly de Seixas Brito |

O que aconteceu no Pará é extremamente revelador do que falamos antes. Em maio do ano passado, o governador Helder Barbalho (MDB) assinou o decreto decreto 729, que dispunha sobre o lockdown, que ocorreu entre 7 e 24 daquele mês. Dentre as 59 atividades essenciais permitidas no período estavam “serviços domésticos”. Além do governador, o decreto foi assinado por dez prefeitos de municípios do Pará, inclusive o de Belém. De tão absurda e descabida, a medida enfrentou uma onda de protestos nas redes sociais da internet, com repercussão inclusive em portais noticiosos nacionais, levando a um recuo, dois dias depois, com uma retificação do decreto, que manteve o serviço doméstico como essencial, mas desde que destinado ao cuidado de criança, idoso, pessoa enferma ou incapaz, ou no caso do empregador ser a pessoa idosa, enferma ou incapaz. Como o trabalho doméstico poderia ser considerado essencial em pleno lockdown, em um momento de pandemia, em que o isolamento social era uma exigência fundamental para deter o avanço do coronavírus? Por que a saúde dessas trabalhadoras e trabalhadores deveria ficar em segundo plano, expostas à contaminação do vírus? Isso mostra, como dissemos antes, que os corpos e a saúde dessas trabalhadoras e trabalhadores são vistos como inferiores e não dignos dos mesmos cuidados e proteção em relação aos demais.

Os corpos e a saúde dessas trabalhadoras e trabalhadores são vistos como inferiores e não dignos dos mesmos cuidados e proteção que os demais

G |Vimos também, durante a pandemia, muitas pessoas descobrindo habilidades na cozinha e outras tarefas de casa — ao mesmo tempo em que aumentaram as denúncias de abuso e até de cárcere privado de empregadas domésticas. Que tipo de trabalho é destinado a essas pessoas? O que isso diz sobre nossas relações de poder?

RSB |

É importante observar, como diz o geógrafo britânico David Harvey, que a pandemia do novo coronavírus é uma pandemia de classe, de gênero e de raça, cujos efeitos perversos não se distribuem de maneira equilibrada pelo conjunto da população. Muito ao contrário, expõem de forma brutal as desigualdades econômicas, de gênero e de classe no Brasil e no mundo. O vírus chegou ao país de avião. A primeira morte ocorrida no Rio de Janeiro foi justamente de uma trabalhadora doméstica, contaminada por sua empregadora, que havia chegado recentemente de uma viagem à Itália. Daí em diante, não só no Rio de Janeiro, como em todo país, o coronavírus se espalhou com uma velocidade incontrolada, especialmente em favelas, bairros de periferia e áreas de habitação precária, em que era impossível praticar o isolamento social. O número de pessoas que vivem na linha da pobreza ou abaixo no Brasil triplicou durante a pandemia. Há um imenso contingente de brasileiros passando fome e milhões desempregados. Perto de 2 milhões de vagas de emprego doméstico foram perdidas nesse período da pandemia. Ao todo, eram 6,4 milhões de pessoas empregadas em serviços domésticos no final de 2019 e esse número caiu para 4,9 milhões no final de 2020. O caso de Miguel Otávio, criança de cinco anos de idade que morreu no Recife após cair 35 metros de altura do prédio de classe média alta da patroa de sua mãe, que havia levado o cachorro da família para passear, é tristemente eloquente para denunciar as relações de poder que atravessam o trabalho doméstico no Brasil. Por isso dedicamos o livro a Miguel, Mirtes e Marta, sua mãe e avó. E também a todas as trabalhadoras domésticas do país.

G |O livro tem três capítulos com relatos de trabalhadoras domésticas. O que elas revelaram para vocês pesquisadoras para além das estatísticas?

RSB |

Essa foi uma escolha epistêmica que fizemos, ter as trabalhadoras domésticas como autoras no livro. Quando digo isso é porque, no âmbito das ciências sociais e humanas, há um longo debate sobre que tipo de relação devemos estabelecer com nossos sujeitos de pesquisa, se falar sobre eles e elas ou falar com eles e elas. Evidentemente comungamos dessa segunda postura. É preciso entender que não dá para falar somente sobre as trabalhadoras domésticas sem amplificar e deixar ecoar a sua própria voz, trazendo-as ao primeiro plano. Ao fazermos essa escolha, pudemos ter contato com a percepção de mundo, de si e de seu trabalho a partir delas mesmas. E disso resultou um quadro muito rico, em que elas compartilham memórias muito dolorosas daquilo que viveram ao longo de décadas como trabalhadoras domésticas, como violência sexual no interior das casas em que trabalhavam. Mas também, e isso é o lado que nos faz ter esperança, histórias de muita luta e de consciência de classe, de insurgência contra a exploração de seu trabalho. Graças a isso é que elas conquistaram, depois de muito esforço, a regulamentação de seu trabalho pela chamada “PEC das Domésticas”, de 2013, e pela lei complementar 150 de 2015.

G |No país que tem mais de 6 milhões de trabalhadoras domésticas, só a partir de 2013, com a PEC das Domésticas, elas tiveram algum tipo de regulamentação –ainda assim, uma parcela menor tem carteira assinada. Não é contraditório que um serviço por vezes considerado “essencial” não o seja na hora de garantir direitos?

RSB |

Não só é contraditório, como é inadmissível. Se a gente considerar que a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas) é de 1943, é inevitável a pergunta: por que só em 2015, mais de 70 anos depois, é que o trabalho doméstico foi regulamentado? Esse abismo de tempo é por si só revelador do quanto essa forma de trabalho foi vilipendiada ao longo do tempo no país.

O vírus chegou ao país de avião. A primeira morte foi justamente de uma trabalhadora doméstica, contaminada por sua empregadora, que havia chegado de uma viagem à Itália

G |É possível tentar melhorar as perspectivas do trabalho doméstico remunerado no Brasil sem discutir desigualdades de gênero, classe e raça?

RSB |

Creio que por tudo o que foi dito antes, evidentemente que não. Se tomarmos por exemplo a figura recorrente das “crias de família” na Amazônia, percebemos claramente como esse tipo de trabalho foi invisibilizado e desconsiderado como tal aqui na região. Essas “crias”, que aparecem inclusive na literatura amazônica, eram – e ainda são – meninas pobres e quase sempre negras, que vêm dos municípios do interior, em grande número da região do Marajó, mas não exclusivamente, para viverem sob a guarda das famílias da capital que as recebem para “ajudar” nas tarefas domésticas, com a promessa, que quase nunca se concretiza, de estudarem. Vê-se claramente que, sob a falsa ideia da ajuda, se esconde um trabalho exaustivo assumido por elas, em que não há jornada estabelecida, já que moram nas casas e, em inúmeros casos, não há qualquer forma de remuneração. É o mesmo que dizer que é uma forma atualizada de escravidão. Falo disso para evidenciar como é impossível avançar na discussão sobre condições dignas de exercício desse trabalho sem olhar de frente para essas questões estruturais.

G |O livro também analisa as representações midiáticas das trabalhadoras domésticas em novelas e no noticiário no contexto da aprovação da PEC das Domésticas. O quanto essas representações reiteram ainda esse passado colonial?

RSB |

Todos os dias, ao ligarmos a TV, temos a reprodução dos estigmas sociais que cercam o trabalho doméstico. Como somos pesquisadoras da área de Comunicação, não poderíamos deixar de abordar esse aspecto. Como essas trabalhadoras são representadas nessa esfera simbólico-discursiva alargada dos meios de comunicação, que faz circular massivamente imagens e preconceitos sobre diferentes segmentos sociais? No gênero de maior êxito da TV brasileira que são as telenovelas, por exemplo, as trabalhadoras domésticas são vistas como absolutamente coadjuvantes na cena, como objeto de desejo erótico dos patrões, como seres servis, geralmente usando uniformes para serem diferenciadas do restante dos personagens da trama. Desse modo, as novelas criam, reiteradamente, um repertório comum de imagens que, mais uma vez, naturaliza a condição inferiorizada dessas trabalhadoras.

G |Acredita que algum dia o Brasil possa ser um país do “faça você mesmo” ou as trabalhadoras domésticas sempre existirão dessa maneira massificada?

RSB |

A terceirização do trabalho doméstico, em que essas trabalhadoras assumem os cuidados com a casa e os filhos das famílias mais abastadas ou mesmo da classe média, é uma das marcas do patriarcalismo, um dos traços fundamentais da sociedade brasileira. Essa terceirização permite que as mulheres empregadoras possam sair de casa para trabalhar, enquanto os homens seguem sendo liberados do trabalho doméstico, como ocorreu desde nosso passado remoto. Trata-se de uma solução privada para um problema público, como por exemplo a ausência de creches mantidas pelo Estado que pudesses acolher as crianças. Por ser um traço estrutural da nossa sociedade, eu arriscaria dizer que ainda estamos muito longe de chegar a esse cenário, pois isso exigiria mudanças também estruturais no Brasil.

A terceirização permite que as mulheres empregadoras possam sair de casa para trabalhar, enquanto os homens seguem sendo liberados do trabalho doméstico

G |Como poderia ser uma relação mais saudável entre empregadores e as trabalhadoras domésticas?

RSB |

Difícil responder essa pergunta, já que sabemos que há um grande abismo entre um cenário idealizado e aquele que acontece na prática. Poderíamos dizer que o mínimo seria o cumprimento das leis trabalhistas que passaram a reger o trabalho doméstico há menos de uma década. O mínimo seria assegurar os direitos trabalhistas a essas trabalhadoras e trabalhadores, tratando-os com respeito e zelo pela sua dignidade, o que deveria ser a tônica das relações trabalhistas em geral. Mas se pensarmos no nível mais macro, infelizmente, ainda estamos bem longe de alcançar esse patamar.

Fonte da matéria: O trabalho doméstico na pandemia escancara desigualdades — Gama Revista. Link: https://gamarevista.uol.com.br/semana/voce-mesmo-que-fez/trabalho-domestico-na-pandemia-e-desigualdades/?utm_source=NexoNL&utm_medium=Email&utm_campaign=OQEL

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