Michael Roberts – Uma nova onda de reformas na China assombra o Ocidente. No final de 2020, o governo frustrou, de última hora, uma iniciativa da Alibaba, gigante das vendas online (duas vezes maior que a Amazon), para captar 37 bilhões de dólares numa oferta inicial de ações (IPO). Desde então, os fatos sucedem-se com rapidez. Corporações que manejam aplicativos de entrega de comida (como a Meituan) ou de transporte (como a Didi, que controla no Brasil a 99) foram obrigadas a assumir responsabilidade por seus “parceiros” e aumentar seus rendimentos. As que manejam redes sociais não poderão mais transformar em mercadoria os dados dos usuários, nem manter “jardins murados” que os impedem de dialogar com os de outras plataformas (pense no Facebook). Grandes sistemas de pagamento digital agora precisam compartilhar com o Estado, e com empresas menores, os dados sobre seus clientes. A onda de restrições, afirma a revista britânica “Economist”, parece estar apenas começando. No início desta semana, o presidente do país e líder do Partido Comunista, Xi Jinping frisou que a China precisa enfrentar a desigualdade e garantir que o acesso Educação e Saúde seja garantido a todos, independentemente do poder econômico.
O que estará acontecendo em Pequim? Por que a China, vista por tanto tempo como espaço de exploração de trabalho barato, por parte de corporações transnacionais, parece disposta a medidas de enfrentamento aos monopólios – e de defesa dos direitos das maiorias – que o Ocidente hesita em adotar? O texto a seguir, do economista marxista Michael Roberts, oferece algumas pistas. Também ajuda a compreender em mais profundidade um país que parece cada vez mais capaz de influir sobre os rumos do planeta, em meio à crise civilizatória.
A visão de Roberts é de longo prazo. Ele tem em vista as reformas pró-mercado que a China iniciou no início dos anos 1980, quando a morte de Mao Tse Tung abriu espaço para a liderança de Deng Xiapoing. A abertura à empresa privada e ao capital externo, estimulada por este, evitou que o país se enrascasse na armadilha do planejamento centralizado burocrático, que tragou o bloco soviético. Mas deixou feridas.
Roberts refere-se, com profusão de dados, às “três montanhas” que os chineses precisam superar. Educação, Saúde e Habitação, entregues ao mercado há quarenta anos, tornaram-se motores da desigualdade. São escassas, caras, segregadoras. O texto mostra que há caminhos para superar os impasses, mas trilhá-los exigirá coragem e inteligência – pois os interesses estabelecidos são poderosos.
Mas a provocação principal do texto está no fim – no “Everest” que, segundo Roberts, os chineses terão de vencer. Trata-se do fato de parte importante de sua economia reger-se, desde as reformas de Deng, pelas lógicas do capital – ou seja, da necessidade de extrair o lucro máximo. Nesta dinâmica, a produção só cresce e se sofistica (e esta é a maldição vivida pelo Ocidente) produzindo cada vez mais desigualdade.
Persiste na China, em paralelo a esta, uma lógica do Comum, diz também Roberts. Seu norte é outro, a satisfação das necessidades sociais. É provavelmente para fortalecê-la que se voltam as reformas recentes – de sentido distinto, e em certo aspecto oposto, às de Deng. Poderá esta dinâmica não-capitalista prevalecer, num mundo em que o capital mostra-se cada vez mais voraz (e criou raízes na China)? Neste embate, que vale a pena seguir de perto, pode estar uma das chaves que levarão a superar a crise civilizatória em que estamos mergulhados – ou a afundar ainda mais desesperançadamente nela. (A.M).
Uma reunião de dezembro de 2020 do Politburo Partido Comunista Chinês prometeu acabar com o que chamou de “expansão desordenada do capital”. Os líderes chineses temiam que o setor capitalista na China tivesse ficado grande demais. Empresas como o Jack Ma’s Ant Group expandiram-se para o financiamento ao consumidor e procuraram levantar fundos estrangeiros para isso. Com efeito, o Ant Group pretendia assumir o crédito às famílias dos bancos estatais. O Ant iria fazer o que queria e disse isso com muito alarde na imprensa. Ele e outras empresas de tecnologia e mídia capitalistas chinesas estavam cada vez mais envolvidas em fusões tipicamente “ocidentais”, contratos secretos e outras irregularidades financeiras.
Os reguladores da China vinham fechando os olhos para tudo isso havia anos. Além disso, a facção financeira na liderança da China havia conseguido um acordo para permitir que bancos de investimento estrangeiros criassem empresas de propriedade majoritária na China pela primeira vez, com o objetivo final de “libertar” o setor financeiro do controle estatal e permitir o cruzamento não regulamentado de fluxos de capital entre fronteiras. Em outras palavras, a China deveria se tornar um membro pleno do capital financeiro internacional. As autoridades também estavam permitindo operações não controladas de criptomoedas no país.
Mas a pandemia de covid mudou tudo isso. Houve uma crescente raiva pública sobre como os ricos na China, como no resto das grandes economias, ganharam enormemente com o boom financeiro e de preços de propriedades durante a quarentena, enquanto a maioria lutou contra os bloqueios e enfrentou custos crescentes em educação, saúde e habitação e um sério risco para empregos decentes para graduados e outros. Educação, saúde e habitação são as “três montanhas” que todas as famílias chinesas almejam escalar para ter uma vida melhor — e ainda assim, os custos para a maioria estão aumentando enquanto os ricos ganham bilhões.
Agora, a liderança chinesa foi forçada a ziguezaguear para trás da “expansão desordenada” e responder à reação pública por meio de uma repressão aos gigantes da tecnologia e da mídia de consumo e introduzindo restrições à educação privada e ao desenvolvimento de propriedade especulativa. Também proibiu as operações de criptomoeda.
Tome a Educação. A grande maioria dos pais chineses paga aulas particulares extracurriculares — as estimativas da pesquisa variam de 65% das famílias com filhos em idade escolar em 2016, até 92% este ano. Uma pesquisa de 2019 da empresa de recrutamento 51job Inc mostrou que quase 40% dos pais gastam 20-30% de sua renda na educação dos filhos. As aulas particulares têm custos espantosos que contribuem para um setor de mais de US$ 150 bilhões. A qualidade e os recursos da educação variam muito entre as áreas urbanas e rurais, de província para província e entre as cidades de nível superior e inferior. Há poucas vagas universitárias em relação ao número de alunos e ainda menos em universidades de prestígio, que se concentram na costa leste e nas grandes cidades. É nessas áreas que o ensino particular explodiu na última década. Agora, o Conselho de Estado da China está impedindo as empresas com fins lucrativos de oferecer aulas em disciplinas básicas do currículo e de receber investimento estrangeiro.
Tome a Saúde. Aproximadamente 95% da população da China é coberta por um programa de seguro público financiado principalmente por impostos sobre a folha de pagamento de funcionários e empregadores, com financiamento governamental mínimo. Isso supostamente financia a saúde universal, mas é muito básico. Portanto, a maioria dos chineses é forçada a pagar empresas privadas para obter melhores cuidados, assim como em muitas economias capitalistas avançadas. E durante a covid, as famílias chinesas enfrentaram custos exorbitantes com saúde.
E tome a habitação. Os preços dos imóveis nas cidades costeiras, onde se trabalha e recebe melhor, dobraram nos últimos dez anos. Em Shenzhen, o preço médio dos apartamentos subiu tanto que alguns estão achando mais barato morar na vizinha Hong Kong, um dos mercados imobiliários mais caros do mundo. Desde 2015, os preços dos imóveis residenciais subiram mais de 50% nas maiores cidades da China. Na última década, a oferta média de terrenos residenciais por novo residente nas 10 principais cidades é de apenas 23 metros quadrados — pouco mais do que o tamanho de um quarto de hotel típico — ou menos de 60% do espaço residencial médio per capita na China.
A especulação tem crescido à medida que os governos locais tentam levantar fundos com a venda de terrenos para incorporadores, que então constroem propriedades por meio de empréstimos a juros baixos, muitas vezes do setor não-bancário não regulamentado. “A propriedade é a fonte mais importante de risco financeiro e desigualdade de riqueza na China”, disse Larry Hu, chefe de economia da China na Macquarie Securities Ltd. E ele está certo.
Portanto, o governo teve de responder ao desencanto público, ecoando as famosas palavras de Xi Jinping de que “Habitação é para viver e não para especular”. O vice-premiê Han Zheng acrescentou que o setor não deve ser usado como uma ferramenta de curto prazo para estimular a economia. Os bancos foram instruídos a aumentar as taxas de hipotecas. Os governos locais estão sendo orientados a acelerar o desenvolvimento de moradias para aluguel subsidiadas pelo governo e foram instruídos a aumentar o escrutínio sobre tudo, desde o financiamento de incorporadores e os preços das casas recém-oferecidas até as transferências de títulos.
Mas as três montanhas não serão escaladas facilmente pelos líderes chineses, se é que serão. Isso porque as autoridades têm se inclinado cada vez mais para a expansão por meio do setor capitalista e, particularmente, em setores improdutivos como propriedade e finanças — às custas de setores produtivos como tecnologia de manufatura, habitação residencial, educação pública e saúde.
Grande parte da especulação imobiliária consiste em construir cada vez mais empreendimentos comerciais em vez de habitações. Isso porque a principal prerrogativa dos governos locais é acumular receita. Se conseguirem atrair mais empresas para suas jurisdições e se essas empresas se tornarem lucrativas, o governo local poderá coletar mais impostos corporativos. Ao mesmo tempo, a oferta de terrenos residenciais é deliberadamente mantida escassa para que os governos possam ganhar dinheiro com a venda de terrenos residenciais. Com efeito, as vendas de terrenos residenciais servem como um subsídio cruzado na política de terrenos pró-negócios dos governos locais, que vendem terrenos comerciais baratos.
Pequim está se esforçando para implementar um imposto sobre a propriedade, há muito adiado, que poderia ser uma fonte alternativa de receita para os governos municipais e reduzir sua dependência da venda de terras. Mas é improvável que um imposto sobre a propriedade chegue perto de compensar a perda de receita que resultaria da venda de menos terras. Dado que as famílias médias estarão isentas do imposto sobre a propriedade, parece improvável que gere mais receita do que imposto de renda (1% do PIB), enquanto as vendas anuais de terras estão atualmente na ordem de mais de 7% do PIB.
O setor imobiliário, que equivalia a apenas 5% do PIB em 1995, passou a 13% da economia – e a cerca de 28% do total de empréstimos do país. Dado que os governos locais têm dívidas de US $ 10 trilhões, a venda de terras é a fonte de receita mais crucial e confiável para o pagamento da dívida. Portanto, qualquer mudança drástica aumentaria seriamente o risco de inadimplência do governo local. Logo, a repressão do novo governo aos setores capitalistas da China não será suficiente para alterar as enormes desigualdades de renda, riqueza e acesso a empregos, habitação e educação na China.
Vamos ser claros, a China tem um alto nível de desigualdade de renda pelos padrões internacionais, embora ainda seja menor do que muitas outras economias “emergentes” como Brasil, México ou África do Sul. A taxa de desigualdade de Gini atingiu o pico pouco antes da Grande Recessão e já vem caindo desde então.
A principal razão para o alto índice de desigualdade é a disparidade de renda entre trabalhadores urbanos e rurais e entre os salários nas cidades costeiras e do interior, bem como as qualificações educacionais.
Quando se trata de desigualdade de riqueza pessoal, a China não é tão desigual quanto muitos de seus pares econômicos. A desigualdade de Gini da razão de riqueza é muito maior no Brasil, Rússia e Índia e maior nos Estados Unidos e Alemanha. De acordo com as últimas estimativas, o 1% dos maiores detentores de riqueza na China leva 31% de toda a riqueza pessoal em comparação com 58% na Rússia, 50% no Brasil, 41% na Índia e 35% nos Estados Unidos. Essa é uma boa medida do poder econômico da elite e dos oligarcas desses países.
Muito se fala sobre o número de bilionários na China, mas dado o tamanho da população e do PIB, a proporção per capita em comparação com os EUA e outras economias importantes é relativamente baixa. Apesar da grande expansão do número de milionários, os milionários na China continuam relativamente raros: cerca de um para cada 200 adultos. Os milionários representam 3% dos adultos na Itália e na Espanha; França, Áustria ou Alemanha (cerca de 4%), e cerca de 6% na Escandinávia social-democrata; acima de 8% nos EUA e Austrália e o maior de todos na Suíça (15%).
E a desigualdade de riqueza na China está centrada na propriedade, não nos ativos financeiros (até agora), ao contrário das principais economias capitalistas do G7. E isso porque as finanças não foram totalmente abertas ao setor capitalista.
Mas as contradições da economia controlada pelo Estado da China ao lado de um grande e crescente setor capitalista se intensificaram durante a pandemia de covid. E isso foi expresso pelas facções na liderança chinesa. Autoridades do setor financeiro e bancário querem abrir a economia ao capital estrangeiro e permitir que o renminbi (yuan) se torne uma moeda internacional. Eles argumentam que a economia tende muito ao investimento e às exportações, em relação ao consumo. Economistas chineses formados nos EUA e na Europa, apoiados por economistas estrangeiros residentes em universidades chinesas e pelo Banco Mundial, pressionam continuamente por uma “mudança do investimento para o consumo”. Mas isso funcionou nas economias capitalistas do G7? Nelas, o consumo não conseguiu impulsionar o crescimento econômico e os salários estagnaram em termos reais nos últimos dez anos, enquanto os rendimentos reais dos trabalhadores na China dispararam.
De fato, o consumo está crescendo muito mais rápido na China do que no G7 porque o investimento é maior. Um segue o outro; não é um jogo de soma zero. E nem todo consumo tem que ser “pessoal”; mais importante é o “consumo social”, ou seja, serviços públicos como saúde, educação, transporte, comunicações, habitação; não apenas automóveis e gadgets. O aumento do consumo pessoal de serviços sociais básicos é o que é necessário. E é aqui que a China precisa agir.
Muito também se fala dos crescentes níveis de dívida da China. Economistas tradicionais vêm prevendo há décadas que a China está caminhando para uma quebra da dívida de mega proporções. É verdade que, de acordo com o Instituto de Finanças Internacionais (IFF), a dívida total da China atingiu 317% do produto interno bruto (PIB) no primeiro trimestre de 2020. Mas a maior parte da dívida interna é devida por uma entidade estatal a outra; do governo local aos bancos estaduais, dos bancos estaduais ao governo central. Quando tudo isso é compensado, a dívida das famílias (54% do PIB) e das empresas não é tão alta, enquanto a dívida do governo central é baixa para os padrões globais. Além disso, a dívida externa em dólares em relação ao PIB é muito baixa (15%) e, de fato, o resto do mundo deve à China muito mais: 6% da dívida global. A China é um grande credor do mundo e possui enormes reservas em dólares e euros, 50% maiores do que sua dívida em dólares.
Uma crise financeira está descartada enquanto o estado controlar o sistema bancário, mas há perigos devido às recentes tentativas de afrouxá-lo para instituições privadas e estrangeiras entrarem na arena (por exemplo, há um número crescente de falências no setor financeiro especulativo).
Os líderes chineses querem reduzir o nível de endividamento. O controle do nível de endividamento pode ocorrer de duas maneiras; por meio do alto crescimento do investimento no setor produtivo para manter o índice da dívida sob controle e/ou pela redução da farra de crédito em áreas improdutivas, como a propriedade especulativa. A estagnação secular do Japão foi o resultado da falta de aplicação desses dois fatores em sua economia capitalista. Mas, dado o poder do controle estatal sobre as alavancas de investimento, a China pode evitar o resultado japonês.
A contradição básica da economia chinesa não é entre investimento e consumo, ou entre crescimento e dívida; está entre lucratividade e produtividade. O tamanho e a influência crescentes do setor capitalista na China estão enfraquecendo o desempenho da economia e ampliando as desigualdades expostas durante a pandemia. Na verdade, foi o setor estatal que ajudou a economia chinesa a sair da crise pandêmica, não seu setor capitalista.
Fiz um pequeno teste empírico da relação entre a lucratividade do capital chinês e o crescimento real do PIB (com base nos dados do Penn World Tables 10.0 — detalhes fornecidos mediante solicitação). O que descobri foi que o investimento dominado pelo Estado e o estoque de capital na China significava que não havia nenhuma correlação entre a lucratividade do capital chinês e o crescimento real do PIB desde a formação da República Popular — na verdade, a relação era negativa. A lucratividade do capital não determinava o nível de investimento em ativos produtivos e o crescimento econômico.
No entanto, após as reformas de Deng na década de 1980, a correlação tornou-se positiva, embora menos positivamente correlacionada do que no resto das economias do G20 ou do G7. E desde que a China entrou na Organização Mundial do Comércio e privatizou seções de seu setor estatal, no final dos anos 1990 e no início dos anos 2000, tem havido uma correlação significativa entre a lucratividade do capital chinês e o crescimento real do PIB. Portanto, a economia chinesa tornou-se cada vez mais vulnerável ao seu setor capitalista e ao capital internacional e sua lucratividade.
Este é o Everest que a China enfrenta: como aumentar a produtividade para atender às necessidades sociais de seus 1,4 bilhão de habitantes, em face dos caprichos da lucratividade de seu setor capitalista. A força de trabalho da China está caindo. O crescimento da produtividade está desacelerando e a China enfrenta uma guerra tecnológica e comercial com os EUA e seus aliados imperialistas. As três montanhas não serão escaladas a menos que o Everest também seja conquistado.
Como parte do seu plano nacional 2021-25 para reduzir as desigualdades, várias províncias estão empenhadas na construção de “uma zona comum de demonstração de prosperidade”. De acordo com o plano, na província de Zhejiang, a remuneração do trabalho será elevada para mais de 50% do PIB até 2025; a taxa de matrícula no ensino superior para mais de 70%; e a proporção dos gastos pessoais com saúde em relação ao total dos gastos com saúde será administrada para ficar abaixo de 26 por cento. Isso funcionará e será aplicado a outras províncias? Veremos.
Fonte da matéria: China: o porquê das novas reformas – Outras Palavras. Link: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/china-porque-das-novas-reformas/
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