Romaric Godin – Anselm Jappe é representante, na França, da teoria crítica do valor, uma teoria crítica que relê Marx através da abstração induzida pela mercadorização do mundo. Esta crítica radical (no sentido de ir “à raiz”) do capitalismo, realizada no âmbito da revista alemã Krisis nos anos 1990 e 2000, se distingue profundamente, entretanto, de outras escolas marxistas por sua rejeição de alguns elementos-chave como a luta de classes. O autor havia apresentado essa teoria ao público francês por ocasião do lançamento de A sociedade autofágica: capitalismo, desmesura e autodestruição.
Nela, Jappe descreve o lento desenvolvimento do capitalismo por meio do narcisismo crescente do sujeito. A indiferença e a crueldade do capitalismo, obcecado pelo valor quantitativo em relação ao mundo real, encontram-se espelhadas na indiferença e na crueldade do narcísico em relação aos outros. In fine, o indivíduo, submetido a essa pulsão de morte do capitalismo, acaba por entrar em um processo de ressentimento e de autodestruição. A sociedade capitalista parece fadada a se devorar a si mesma e a única saída parece ser a abolição do capitalismo, pois as tentativas reformistas do marxismo tradicional não conseguiram se situar fora do sistema do valor de mercado.Nesta entrevista, o autor volta-se para alguns dos principais temas de sua teoria: para seu diálogo com a psicanálise ou com certos ensaístas críticos da sociedade neoliberal, para sua crítica do marxismo tradicional e para o futuro do capitalismo.
A sociedade autofágica explora em detalhe o tornar-se sujeito na sociedade capitalista. Você o concebe como continuação de As aventuras da mercadoria, que expôs para o público francês a teoria crítica do valor?
É evidentemente uma continuação, mas mais pessoal. A obra As aventuras da mercadoria apoiava-se principalmente em grandes teóricos da crítica do valor, notadamente naqueles que escreviam na revista alemã Krisis. Depois, uma parte destes últimos, notadamente Robert Kurz, fizeram esta teoria evoluir em direção a uma teoria da crítica do sujeito, que inclui uma crítica do Iluminismo. Eu desenvolvi paralelamente minhas próprias ideias, interessando-me igualmente pelo aporte da psicanálise. Neste sentido, eu fui particularmente marcado pela leitura de Christopher Lasch e de suas obras A cultura do narcisismo e O mínimo eu, mas também retomei as obras de Herbert Marcuse e Erich Fromm. A estas foram acrescentadas várias outras leituras importantes para a gênese do livro, como a do sociólogo Luc Boltanski, ou ainda de Dany-Robert Dufour, com quem eu não estou totalmente de acordo, mas cuja leitura me pareceu suficientemente estimulante para me dar vontade de lhe responder. É este percurso, que durou dez anos, que me permitiu construir A sociedade autofágica.
A teoria crítica do valor sublinha a abstração que o capitalismo, por natureza, impõe ao mundo. Este é o ponto de partida da sua exposição?
O que é importante compreender é que a teoria crítica do valor não é uma teoria puramente econômica. Ela se inscreve na continuidade do pensamento de Karl Marx, que empreende uma crítica da economia política e não a elaboração de uma teoria econômica particular. Mercadoria, trabalho abstrato, valor e dinheiro não são, em Marx, categorias puramente econômicas, mas categorias sociais que formam todas as maneiras de agir e de pensar na sociedade. Isto não está sempre explícito em Marx, mas é o que se pode extrair de seus escritos. É por isso que eu considero o valor um “fato social total”, no sentido que o entende Marcel Mauss.
Essas categorias são, como diria Emmanuel Kant, formas a priori, formas vazias que são como moldes onde tudo deve entrar. Assim, na sociedade capitalista, tudo toma a forma de uma pura quantidade de dinheiro e, para além disso, de uma pura quantidade em geral. Isto vai, então, muito além do mero fato econômico. Essas categorias não são, entretanto, fatos antropológicos que existiriam em todos os lugares e sempre. São formas que progressivamente se impõem aos outros domínios da vida, notadamente às relações sociais. Vê-se isto com a emergência do “eu quantificado” no quadro da mensuração, por exemplo, das performances esportivas. A quantificação monetária é uma das formas mais visíveis da sociedade capitalista, mas não é a única.
A primeira parte do seu livro descreve a história do sujeito confrontada à essa abstração imposta pelo capitalismo.
Sim, mas é importante compreender a natureza desta abstração. A abstração, enquanto tal, é um fenômeno mental que é, evidentemente, um auxiliar para apreender o real. Como não se pode sempre falar de uma árvore particular, então se recorreu a um conceito geral de árvore. Mas trata-se, aqui, de outra coisa. Trata-se de uma abstração, o valor, que pode assumir não importa qual forma real pela quantificação. Toda realidade pode ser reduzida a uma quantidade de valor. Ela torna-se, então, uma “abstração real”, conceito que não está explicitamente presente em Marx, mas que foi desenvolvido no século XX. E isso tem impactos muito concretos. Um brinquedo ou uma bomba tornam-se assim apenas quantidades de valor abstrato, e a decisão de interromper ou de continuar sua produção depende da quantidade de mais-valor que esses objetos contêm.
Fonte da matéria: ‘A única opção razoável é a abolição do capitalismo’ – Editora Elefante. Link: https://elefanteeditora.com.br/a-unica-opcao-razoavel-e-a-abolicao-do-capitalismo/?ct=t%28DAREDACAO_breno%2311_Tira%2323_Retratos_20201025_COPY_%29&mc_cid=eacabdc37b&mc_eid=0ac7cd7efd
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