Sociedade

Morre o último homem de um povo, e com ele todos morremos um pouco

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Julian Fuks – Há em cada morto uma constelação de mortos. Em cada corpo que se apaga, apaga-se muito mais do que o indivíduo que o ocupava, muito mais do que sua interioridade. Com ele se esvai uma memória, uma história, uma linguagem, com ele se enterra uma cultura a um só tempo íntima e comunitária. Talvez por isso choremos a morte, mesmo quando ela não chega a nos privar de nada: choramos porque, em cada morte, morre uma parte da humanidade.

Eu poderia estar escrevendo sobre o drama de alcançarmos, nesta tragédia interminável, os 250 mil mortos. Mas não, o que agora toma os meus pensamentos é a morte de um homem só. Penso em Amoim Aruká, o último homem do povo Juma que ocupava desde tempos imemoriais as margens do rio Assuã, no sul do Amazonas. Penso em Aruká Juma, morto há poucos dias por covid-19. Beirava já os noventa anos, poderíamos julgar sua morte não mais que natural, inevitável, o retorno à terra para um descanso desejado. Mas não, há nesse caso uma gravidade maior. Se o que morre é sua etnia, seu povo, se sua constelação de mortos se estende vastamente em direção ao passado, nosso mundo está mais pobre e mais raso depois dessa morte.

Convém contemplar essa perda em mais detalhe, para assimilar não apenas sua realidade, mas seu valor simbólico. Diante de algo assim, é evidente que não basta lamentar o presente, pois estamos confrontados com a consumação de uma violência maior: a dizimação de um povo inteiro num mortal esforço continuado. Os Juma chegaram a ser 15 mil no final do século 19. O terrível século 20 os atingiu pesado: chacina após chacina, numa suposta conquista da Amazônia, eles foram se tornando mais e mais escassos, até restarem apenas algumas dezenas na década de 1960. O que agora faz uma doença, ou melhor, o que faz a negligência estatal, é completar o minucioso trabalho de destruição de uma cultura por forças que alguma vez se afirmaram civilizatórias.

Essa história tem um capítulo à parte que mereceria muito mais do que um parágrafo. No fatídico ano de 1964, deu-se o último massacre contra o povo Juma, por um grupo de extermínio contratado por comerciantes locais, supostamente interessados nas castanhas do território. Entraram atirando sem nenhum pudor, nenhum reconhecimento das vidas que ali se encerravam. Sessenta indígenas morreram como “bestas ferozes“, no termo empregado pelo mandante do crime, orgulhoso por livrar sua região de alguns selvagens. Sobreviveram apenas sete, entre eles Aruká. Era 1964, eu poderia estar falando do golpe militar, da atrocidade do regime que então se instaurou, da atrocidade que agora se retoma – e de certo modo estou.

Povo algum jamais foi aniquilado para que outro comesse castanhas. A aniquilação é a própria finalidade, a supressão de tudo o que desconhecemos, do que escapa à nossa compreensão imediata. Trata-se de uma guerra sem fim contra os bárbaros, como afirma Aílton Krenak, contra os povos marginados do mundo, contra indígenas, caiçaras, aborígenes, quilombolas. “Muitas dessas pessoas não são indivíduos, mas ‘pessoas coletivas’, células que conseguem transmitir através do tempo suas visões sobre o mundo.” Sim, células que vão transmitindo geração após geração uma cultura rica, diversa, muito distinta da nossa – até que a civilização as devora.

O traço comum mais marcante nessa imensa diversidade, ainda segundo Krenak, é o apego insofismável pela terra. “Parece que eles querem comer terra, mamar na terra, dormir deitados sobre a terra, envoltos na terra”, ele provoca. Essa intimidade com o espaço, essa profunda familiaridade, é o que nunca chegamos a entender por completo, e por isso não sabemos respeitar. Que o rio seja um avô, como o chamam os Krenak, que a montanha seja um amigo com quem se intercambiam dádivas. Aruká passou anos abatido, entrevado, privado da terra de seus antepassados. Quando por fim ela lhe foi restituída, contam os presentes, seu corpo recobrou uma juventude impensável, seus pés se fizeram ágeis sobre a pele da terra ancestral. Nessa noite ele entoou o ajapyryty, um comovido choro ritual em homenagem aos mortos.

Porque não entendemos esse apego à terra, porque nos alijamos da terra a ponto de julgá-la dispensável, é que essa morte tem um valor simbólico suplementar. Ela não é apenas um crime humanitário, mas também a manifestação tortuosa de um crime ambiental contra a terra, da imensidade de crimes ambientais que vamos cometendo por toda parte. Na morte de Aruká não morre apenas o mundo incógnito dos Juma, mas também um mundo que conhecemos bem: o nosso próprio mundo. Alijados da terra, recebendo dela apenas notícias remotas, vivemos como se não soubéssemos da destruição que está em curso, como se fosse possível esquecer a iminência do fim.

Mas a história não termina aqui, a história nunca termina. Contra tudo, a terra resiste. Contra tudo, resistem até mesmo os Juma. Continuo lendo sobre a morte de Aruká Juma e descubro que só numa concepção normativa e patriarcal a etnia foi extinta. Aruká deixou três filhas, que se casaram com homens do povo Uru-eu-Wau-Wau, e assim abdicariam de sua origem. Descubro então que filhas, genros e netos decidiram romper a tradição de seus povos e se autodeclarar Juma, resistindo simbólica e fisicamente, sobrevivendo contra toda expectativa. Seguindo o seu exemplo de ruptura talvez possamos também sobreviver, se estivermos dispostos a romper nossa própria tradição de devastação e extermínio.

Fonte da matéria: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2021/02/27/morre-o-ultimo-homem-de-um-povo-e-com-ele-todos-morremos-um-pouco.htm

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