Marina Basso Lacerda – Alguns conceitos se aplicam àquele que elegeu e que sustenta Bolsonaro: neoconservadorismo, necropolítica, tradicionalismo, fascismo ou neofascismo, entre outros.
Todos em alguma medida se aproximam e se afastam desse fenômeno singular da política brasileira.
Bolsonaro se diferencia do fascismo histórico em alguns sentidos.
Em primeiro lugar, porque o fascismo surgido na Europa da primeira metade do século XX foi um projeto nacionalista, e o nacionalismo de Bolsonaro é, notoriamente, de fachada (além do que é difícil comparar o nacionalismo de países centrais com o de um país periférico).
Em segundo lugar, o fascismo floresceu quando vigiam, no mundo, diferentes formas de intervencionismo estatal na economia. O fascismo também propunha modelos de dirigismo e de proteção de parcela de seus cidadãos, os trabalhadores assalariados.
Já o Brasil de Bolsonaro é de um neoliberalismo agressivo, que não defende direitos para nenhum dos grupos de trabalhadores, nem daqueles das classes médias.
Mas Bolsonaro se aproxima, cada vez mais, do fascismo como prática.
Pouca preocupação com questões políticas concretas e tangíveis, sem programa positivo algum; mobilização contra o princípio democrático; irracionalidade; agressividade; propensão à ação violenta; reacionarismo e regressão dos patamares civilizatórios; autoritarismo; propaganda com repetição contínua; e centralização no líder hipnotizador, autoritário, narcisista, afastado da ideia de amor e que sintetiza a figura de um certo homem comum.
Essa relação de atributos não fui eu quem fez.
É elencada por Theodor Adorno em artigo de 1951, no qual, a partir de Freud – sobretudo em Psicologia das massas e análise do eu, de 1921, – o membro da Escola de Frankfurt discute a psicanálise da adesão ao fascismo.
As semelhanças entre as características das massas hitleristas descritas por Adorno e as do bolsonarismo são gritantes, desnecessário pontuá-las para qualquer brasileiro.
Mas, mais do que delimitar as feições das massas fascistas, o que Adorno pretende entender, a partir de Freud, é como indivíduos, filhos da modernidade, do iluminismo, revertem a padrões de comportamento que contradizem seu nível racional.
A resposta, para Freud, é: o vínculo que integra os indivíduos às massas é libidinal; é uma experiência prazerosa se render ilimitadamente às paixões e ser assim absorvido no grupo, recuperando porções de sua herança primitiva.
O fascismo, diz Adorno, seria uma rebelião contra a civilização, reproduzindo o arcaico no seu interior.
O líder é quem desperta no sujeito seu arcaísmo, ao reanimar a ideia do todo-poderoso e ameaçador pai primitivo, onipotente e não controlado – na linguagem do Brasil do século XXI, a ideia de um “mito”.
O narcisismo individual é substituído, de acordo com o esquema teórico de Freud, pela identificação – hipnótica até – com a imagem do líder.
Para isso esse líder, de um lado, tem que aparecer como absolutamente narcisista e autoconfiante; ele não precisa amar mais ninguém a não ser a si mesmo.
É isso que explica, para os autores, a ausência de um programa positivo e de qualquer coisa que o líder possa “dar”: o líder só pode ser amado se ele próprio não amar.
De outro lado, o líder é a ampliação da própria personalidade do sujeito, “uma projeção coletiva de si mesmo”.
Ele precisa possuir, de forma particularmente marcada, as características típicas dos seguidores, só que com impressão de maior força e maior liberdade de libido.
Deve ser ao mesmo tempo um super-homem e uma pessoa comum, “da mesma maneira como Hitler se apresentou como uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio”.
É o conceito do “grande homem comum”, alguém que sugere tanto onipotência quanto a ideia de que é apenas um de nós.
Por exemplo, alguém que sobreviva a uma facada mortífera e ao mesmo tempo use linguagem vulgar e coma pão com leite condensado no café da manhã.
E, assim, os sujeitos, como num rebanho, aceitam e gostam do autoritarismo do líder. Isso porque, ao se identificarem com o líder, elas assumem que eles próprios são o opressor cruel.
O líder fascista, diz Adorno, pode adivinhar os desejos e necessidades psicológicas dos que são suscetíveis à sua propaganda porque a eles se assemelha psicologicamente, capaz de expressar sem inibições o que neles está latente – por exemplo, e isso digo eu, uma misoginia desenfreada –, em vez de lançar mão de alguma superioridade intelectual ou moral – como a que possuem os professores ou defensores de direitos que eles querem tanto destruir.
Outro mecanismo agregador do fascismo é a lógica do inimigo, expressa na tendência de odiar minorias e diferentes. É a distinção entre o amado in-group e o rejeitado out-group.
Novamente Freud identifica uma função libidinal nesse dispositivo: já que a libido positiva está completamente investida na imagem do pai primitivo, e já que poucos conteúdos positivos estão disponíveis, um negativo deve ser encontrado.
O ódio age como uma força negativamente integradora. E o ganho narcisista nesse esquema é óbvio: ela sugere que o seguidor, simplesmente por pertencer ao grupo, é melhor do que aqueles que estão excluídos.
Enfim, no fascismo há uma apropriação, pelos opressores, dos vínculos que integram as massas, ou seja, das tendências narcísicas e arcaicas dos indivíduos. Mas, como pontua Adorno, o fascismo mobiliza a psicologia de massas como mandatário de interesses econômicos e políticos poderosos.
Ele é preciso: as disposições psicológicas não causam o fascismo; antes, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas forças que o promovem por razões completamente não-psicológicas.
As semelhanças são muitas, inclusive na ativação de conteúdos primitivos em prol de elites econômicas, exatamente como ocorreu no Brasil.
Mas temos um agravante terrível. A repetição contínua, exigida pela propaganda fascista, é promovida hoje pelas mídias digitais, sobre as quais – sobretudo o WhatsApp – não há qualquer controle eficiente.
O livro Os engenheiros do caos, do italiano Giuliano Da Empoli, mostra que os algoritmos potencializam o engajamento a partir de mentiras, teorias da conspiração irracionais e de sentimentos negativos como ódio, medo e ressentimento.
O líder fascista é aquele capaz de expressar os conteúdos inconscientes e primitivos sem freios e, assim, criar uma identificação com os que compartilham, mais timidamente, das mesmas crenças.
Bolsonaro deseja e goza a morte alheia e despreza a vida – “apesar da vacina”, disse triste na terça-feira, 19-01.
Considerando o arcabouço de Freud, seus seguidores também assim sentiriam. Seria uma macabra “hipnose coletiva”, que até hoje não deu provas consistentes de arrefecer.
Mas, como diz Adorno, esse aumento “bem pode terminar numa súbita consciência da inverdade do feitiço e, por fim, em seu colapso”. Que assim seja e que não demore.
Fonte da matéria: https://www.viomundo.com.br/voce-escreve/marina-lacerda-de-hitler-a-bolsonaro-por-que-o-lider-fascista-hipnotiza-seus-seguidores.html
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