Josué Medeiros – Em 2016, o campo político vitorioso nas eleições municipais foi a direita tradicional. PSDB, DEM, PMDB, PSD, entre outros partidos, ganharam 17 das 26 capitais, incluindo 8 dos 10 maiores colégios eleitorais. Se ampliarmos a escala para todos os municípios, o quadro é o mesmo.
A situação em 2020 repete 2016: nossa pesquisa mostra que a direita tradicional é favorita para vencer em 07 dos 10 maiores colégios eleitorais: São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Belo Horizonte, Curitiba, Porto Alegre e Manaus. Nos outros três – Fortaleza, Recife e Belém – terá candidatos competitivos e está na disputa. O quadro de candidaturas ainda está indefinido e pode mudar, mas dificilmente a direita deixará de triunfar na maioria das cidades.
Em 2018, contudo, essa mesma direita tradicional não teve força diante da avalanche bolsonarista. Seus votos parecem ter simplesmente desaparecido, foram sequestrados pelo atual presidente. Nas capitais, já no 1o turno, Bolsonaro venceu em 21 cidades. Teve 44,6% dos votos em São Paulo, 58,3% no Rio de Janeiro e 55,2% em Belo Horizonte.
Tal descompasso se repetirá 2020 e 2022? Essa é a pergunta que tentaremos responder ao longo dos próximos meses com a pesquisa sobre as eleições municipais.
Nossa hipótese é que a direita tradicional não só perdeu a capacidade de hegemonizar a política brasileira – algo já dito por muita gente – como adotou uma tática “flanelinha” de guardar a vaga para o Bolsonaro vencer. O mais interessante é que o sistema político acreditava que poderia fazer justamente o oposto, ou seja, que o atual presidente seria um instrumento de uma agenda que ele em si não concorda – as tais reformas estruturais – e que guardaria a vaga para o retorno à presidência de algum político mais civilizado em 2022. A pandemia mostrou que isso não é possível, mas a recente “domesticação” de Bolsonaro reacendeu as esperanças.
A importância do voto e das eleições e o sentido de 2018
Embora a democracia representativa busque limitar o voto a um ato individual, a ação política de escolher representantes vai além disso. Antônio Gramsci, nos Cadernos do Cárcere Volume 3, nos oferece uma interpretação mais precisa do alcance do processo eleitoral moderno:
“O número de votos é a manifestação terminal de um longo processo” no qual “um grupo de homens ou até mesmo uma individualidade” (82) conseguem obter um consenso, não no sentido de ausência de conflitos, mas de adesão da maioria às suas ideais, apresentadas como o interesse nacional.
Ora, tal afirmação pode ser interpretada em chave negativa, as eleições como momento em que uma minoria domina uma maioria. Gramsci nos dá, contudo, outros sentidos, positivos: primeiro, na própria chave individual que o liberalismo tenta limitar o sentido do sufrágio. Ainda no Volume 3 dos Cadernos, ele afirma que o ataque ao voto por parte das elites revela a pretensão de “tirar do homem ‘comum’ até mesmo aquela fração infinitesimal de poder que ele possui para decidir o curso da vida estatal” (Idem). Ou seja, há de se defender e valorizar e ampliar esse direito.
O segundo momento está no Volume 5 dos Cadernos e assume o sentido coletivo pretendido por Gramsci. O revolucionário italiano lista os eventos históricos que têm o “potencial” de produzir “momentos de vida intensamente coletiva e unitária no desenvolvimento” (56) de um povo: ele cita as guerras, as revoluções, plebiscitos e eleições. Neste último caso, é preciso procurar aqueles pleitos que levam “a parte mais ativa” de um povo a lidar e decidir conjuntamente “sobre as mesmas questões” e “busca resolvê-las em sua consciência histórico política” (57). Na investigação desta “potencialidade” é preciso encontrar “o conjunto de elementos ‘unificadores’ positivos e negativos que para ela convergem” (Idem).
Gramsci sabia que essa potencia não significa, necessariamente, uma vitória do que chamamos de interesses populares. Em sua reflexão sobre as eleições na Itália, por exemplo, ele cita a eleição de 1919 como Constituinte, devido à amplíssima participação popular, que resultou em vitória do Partido Socialista. A maioria parlamentar, contudo, seguiu nas mãos das classes dominantes e foi fundamental para a derrota da revolução em 1919/1920 e posterior ascensão do fascismo em 1922.
Com um ano e meio de governo Bolsonaro e no meio de uma pandemia que já custou mais de 100 mil vidas, podemos chamar as eleições de 2018 como um “momento de vida intensamente coletiva”, embora seu desenvolvimento posterior seja precisamente o de desfazer de modo radical os laços e o tecido social que viabilizam esses momentos. Disto que se trata a crise da democracia brasileira, cujo primeiro grande momento foi o golpe de 2016 e que vem sendo agravada pela normalização do bolsonarismo na vida política nacional.
No Brasil, as eleições municipais não têm esse efeito de produzir um impacto definitivo na vida nacional. Mas sempre são importantes como momento de confirmar tendências pregressas – por exemplo, a vitória das forças democráticas nas eleições de 1982 confirmou os ventos da redemocratização – ou de antecipar mudanças que se confirmarão no pleito geral seguinte, como ocorreu em 2000, quando o PT foi o grande vitorioso daquelas eleições, preparando o terreno para a vitória de Lula em 2002.
Nesse sentido, nossa hipótese é que as eleições de 2020 não farão senão confirmar a vitória do bolsonarismo conquistada em 2018, seja pelo voto em candidatos abertamente ligados ao presidente, seja pela escolha de políticos da direita tradicional que já dominam as capitais desde 2016 e que, como prefeitos, terão a função de “guardar os votos” para a reeleição do atual presidente.
As eleições de 2016 e a (falsa) hegemonia da direita tradicional
Iniciamos nossa pesquisa para esse boletim com o histórico eleitoral recente. São dados públicos e já conhecidos, mas que convém resgatar para visualizar melhor o quadro de ampla vitória da direita tradicional em 2016 e recuo das esquerdas em comparação a 2012.
Tabela Esquerda e direita nas capitais em 2012 e 2016
Cidade/Partido | Eleito | Derrotado |
Ano | Esquerda | Direita |
2012 | 13 | 13 |
2016 | 9 | 17 |
Para além da perda quantitativa, há a perda qualitativa: em 2012 a esquerda governava São Paulo com o PT, Porto Alegre e Curitiba com o PDT, Belo Horizonte com o PSB. Todas essas cidades hoje são comandadas por partidos de direita. A avanço da direita nas Regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste foi quase total, com apenas Vitória sendo governada por um partido – Cidadania, ex-PPS – que hoje é oposição ao governo Bolsonaro e compõe a frente de partidos de esquerda no Congresso, mas que em 2016 foi a favor do golpe.
Contudo, como já mencionamos, apesar de governar 8 dos 10 maiores colégios eleitorais municipais do país, a direita tradicional foi amplamente derrotada nas eleições de 2018, ficando fora do 2o turno, quando em sua quase totalidade apoiou o então candidato Jair Bolsonaro.
A lógica do bolsonarismo e as eleições municipais
Já argumentamos, ao longo do monitoramento dos conflitos políticos durante a pandemia, que o Bolsonarismo inaugura uma lógica nova na política brasileira, distinta daquele que organizou os campos políticos no governo e na oposição desde 1988.
Bolsonaro não chegou ao poder com um programa de oposição ancorado em políticas públicas. Ele foi um candidato de combate, contra tudo e contra todos. No mesmo sentido, ele não governa com base em políticas públicas e um programa de governo que possa ser combatido, mas mantendo o ambiente de contra tudo e contra todos.
Não é menos importante que sua principal realização na pandemia tenha sido o auxilio emergencial, medida aprovada pelo Congresso Nacional depois de uma campanha da sociedade civil e que exige do governo o abandono do receituário neoliberal que fazia a direita tradicional acreditar que estava “usando” Bolsonaro.
Como esta lógica impacta nas eleições? De um modo coerente, Bolsonaro opta, com bastante tranquilidade, por ser o primeiro presidente que não vai disputar de fato o pleito municipal posterior a sua eleição.
Primeiro, ele sai do partido em que se elegeu (PSL) em 12 de novembro de 2019, em um tempo político que na prática inviabilizava que seus apoiadores disputassem de fato o pleito deste ano. Seu partido, Aliança pelo Brasil, não chegou perto de conseguir o registro. Este nunca foi, na verdade, um objetivo real do presidente, que vê a organização mais como um movimento proto-fascista de combate e sustentação do seu governo do que como uma agremiação mediadora dos interesses.
Segundo, como foi amplamente anunciado, no dia 08 de agosto, em suas redes sociais, Bolsonaro anuncia que não disputará mesmo o pleito municipal. Ou seja, não apoiará candidatos, não subira em palanques, etc. É claro que os candidatos a prefeito poderão dizer que apoiam Bolsonaro e disputar essa identidade. E já tinha sido assim nas eleições para os governos estaduais. É uma inversão da lógica do nosso sistema político, quando o presidente buscava organizar uma base parlamentar e uma sustentação vertical, baixando para governadores e prefeitos que sustentassem o governo e implementassem as políticas públicas.
A saída de Bolsonaro abre caminho para que a direita tradicional mantenha (ou mesmo amplie) suas posições. Caso seu principal adversário for de partido de esquerda, o bolsonarismo a socorrerá, devido às afinidades ideológicas e ao antipetismo e antiesquerdismo. Se o oponente mais forte da direita tradicional for bolsonarista, quem vira acudir será a esquerda, em nome do mal menor.
Mas de que servirá essa vitória?
Conclusão
Bom, obviamente que para os partidos tradicionais, governar capitais é muito importante. Trata-se de máquinas públicas robustas, que podem absorver os quadros, projetar lideranças e ajudar na eleição de parlamentares. Contudo, este último aspecto já se mostrou falho em 2018, quando a direita tradicional viu sua bancada encolher, com seus votos capturados pela onda bolsonarista.
Ademais, com Bolsonaro forte, à direita tradicional só resta se conformar em não organizar a hegemonia dominante no Brasil, servindo de flanelinha para “guardar a posição” até o que o presidente resolva ocupar o que é dele por direito conquistado com base no voto.
E quanto as esquerdas nisso tudo? Fragmentadas e enfraquecidas, deixaremos para o próximo boletim.
Fonte da matéria:
(https://nudebufrj.com/2020/08/18/eleicoes-municipais-2020-mais-uma-vitoria-do-bolsonarismo/)
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