Saúde

Um aviso das galinhas do mundo

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David Waltner-Toews – Como a nossa dependência de alimentos produzidos em massa aumenta o risco de pandemias.

A intensificação e a “homogeneização” genética global da produção avícola têm sido força motriz de uma nova variedade de epidemias.

Em 1997, Lam Hoi-Ka, um menino de três anos anteriormente saudável, morreu de falência de múltiplos órgãos em Hong Kong. Quando uma equipe de virologistas dos países baixos declarou que o agente mortal tinha sido o H5N1, um vírus anteriormente conhecido por infectar apenas aves, os cientistas ficaram chocados.

A possibilidade teórica de uma pandemia global mortal, semelhante à gripe espanhola de 1918 que matou milhões de pessoas, foi subitamente concretizada.

Enquanto cientistas de todo o mundo localizavam urgentemente as origens e a propagação inicial do novo vírus, o resto de nós via as imagens televisivas de pessoas desesperadas. O que tornou estas imagens confusas e alarmantes foram as histórias que as acompanharam.

Em Hong Kong, um vírus adaptado à galinha havia contaminado diretamente uma pessoa. Para a maioria das pessoas, as galinhas eram carne “saudável, de baixo teor de gordura” que se comprava em embalagens de plástico no supermercado, e jamais pensariam em agentes da morte em massa.

Como veterinário e epidemiologista, eu conhecia melhor. Uma década antes do aparecimento do vírus H5N1, eu estava num grande aviário de frangos do sul de Ontário (Canada) – isto é, um aviário industrial onde os frangos são criados para produção de carne.

Nas minhas botas de plástico branco, necessidade de segurança descartável  e máscara facial, olhei para mais de 10 mil aves idênticas, juntas. O galpão era espaçoso e as aves estavam limpas.

A entrega de comida, água e ar era controlada por computador. As aves eram brancas de penas, gordas, e apenas ligeiramente curiosas sobre a vida. Eram aves urbanas, residentes em escritórios!!. Em cinco semanas, podiam crescer até o tamanho exato exigido pela rede de restaurantes KFC.

Pelas maravilhas da genética e da criação intensiva para características específicas, o estoque ferozmente selvagem de aves domésticas tinha sido transformado em algo que podia crescer mais rapidamente, de forma mais uniforme, padronizada e eficiente.

Entre 1961 e 2017, a produção mundial de carne de aves (frangos, perus, etc) aumentou de 9 milhões para 122 milhões de toneladas e a produção de ovos subiu de 15 milhões para 87 milhões de toneladas. Uma vez que a maioria de nós experimenta uma espécie de dissonância cognitiva quando vemos galinhas e toneladas na mesma frase, deixem-me reformular a frase.

Em 1961, havia pouco mais de 3 bilhões de pessoas e pouco menos de 4 bilhões de galinhas no mundo. Ou seja, um pouco mais de uma galinha por pessoa. Em 2020, enquanto escrevo este artigo, temos cerca de 7,7 bilhões de pessoas que estão aqui a abanar e a gritar por espaço, juntamente com mais de 20 bilhões de frangos – e talvez até 50 bilhões por ano, se considerarmos a curta rotatividade de abate e reabastecimento dessas populações. Ou seja agora temos 6 galinhas por pessoa!

O crescimento mais rápido na produção avícola comercial tem acontecido nos países ditos em desenvolvimento. No final dos anos 90, países como a Indonésia e o Brasil aumentaram sua produção comercial em cerca de 10% ao ano. Muito acima do crescimento das suas populações.

A salmonelose poderia ter sido tomada como um aviso das galinhas do mundo. O presságio não era crítico.

Quando visitei o Sudão do Sul em 2012, apenas alguns meses depois de sua independência, após trinta anos de guerra civil, encontrei frangos “frescos” brasileiros à venda no mercado em Juba, a capital. A China, já um dos maiores produtores mundiais, crescia cerca de 4% ao ano nos anos 90.

Os frangos estavam sendo criados, transportados em caminhões, abatidos e fritos tão rapidamente quanto a tecnologia permitia. Quem poderia imaginar que tantas pessoas neste planeta poderiam ser alimentadas aparentemente com tanta facilidade?

Os geneticistas ajudaram. Estas aves que alimentavam o mundo não eram mais galinhas velhas. Em 2018, pesquisadores cientistas publicaram um trabalho de investigação revisto por colegas e denunciaram que a “morfologia esquelética, patologia, geoquímica óssea e genética” das galinhas comerciais modernas – cujo volume global excede agora a de todas as demais aves somadas- são tão diferentes dos seus antepassados que podem ser consideradas um “novo morfótipo”.

Mas, na ecologia – ou seja, num mundo onde tudo está, mais cedo ou mais tarde, ligado a todos demais seres vivos – há custos e contradições. Segundo o mesmo jornal, estas novas galinhas simbolizavam “a reconfiguração humana sem precedentes da biosfera terrestre” – uma proeza que criaria as condições perfeitas para surtos do tamanho de cada aviário e que depois se alastraria rapidamente a um sistema globalmente integrado que geraria as condições perfeitas para pandemias.

No final do século XX, epidemiologistas especializados em doenças de origem alimentar já estavam bem cientes de que uma pandemia de salmonelose, uma doença com efeitos imediatos no sistema gastrointestinal e efeitos a longo prazo na artrite e doenças cardiovasculares, era um dos custos “ocultos”, mas prováveis da produção em massa de frangos.

A salmonelose poderia ter sido tomada como um aviso das galinhas do mundo. O presságio não era crítico. Poderia ter sido algo como: as galinhas transportam os seus próprios microbiomas bacterianos e virais; as economias de escala para a produção de galinhas são as mesmas que as economias de escala para as doenças; as pequenas explorações familiares têm surtos de doenças; os grandes aviários padronizados criam epidemias; a globalização das grandes explorações e o comércio mundial vai criar as pandemias.

Os criadores do sudeste asiático não aumentaram a sua produção mas aumentaram o volume e a velocidade do seu comércio de produtos avícolas apenas “porque”; estavam atendendo às necessidades de um mercado de alimentos de baixo custo para animais.

De acordo com as Nações Unidas, uma em cada três pessoas vivia numa cidade em 1960. No final do século XX, quase metade das pessoas vivia nas cidades; em 2030, espera-se que mais de 60% da população viva nas cidades. As pessoas urbanas querem comer, e na maioria das vezes, querem proteínas animais. No entanto, sem esse rápido crescimento econômico e a urbanização, a gripe aviária teria provavelmente permanecido um problema menor.

O Brasil, os Estados Unidos, a China e a União Europeia são os maiores produtores mundiais de aves. A China lidera o mundo em patos e gansos. Outros países do sudeste ssiático – aTailândia em particular – quiseram aproveitar estes mercados urbanos em expansão e saltaram para atender essa necessidade econômica.

Em locais como a Tailândia e a Indonésia, o aumento da produção foi por vezes conseguido através da criação tradicional, desconcentrada e a necessidade de produzir frangos em massa. No entanto, quando a produção de  aves aquáticas são misturadas com galinhas e porcos e pessoas, nos bairros próximos – como pode acontecer frequentemente no sudeste asiático – são criadas as oportunidades para o desenvolvimento de novos vírus. Os vírus tornam-se geneticamente mais instáveis e sua propagação é acelerada.

Em 1996, um precursor do vírus H5N1 matou alguns gansos no sul da China. Ninguém prestou muita atenção. Depois, o vírus apanhou alguns fragmentos de genes de codornas e patos, espalhou-se para os mercados de aves em Hong Kong, e deu o salto para os humanos; matou seis de dezoito pessoas que foram infectadas.

O abate em massa de todas as aves domésticas em Hong Kong parou temporariamente o problema, mas o vírus continuou a infectar patos e gansos e a evoluir de forma rápida e descontrolada.  No final de 2002, uma nova variação do vírus matou a maioria das aves aquáticas nos parques naturais de Hong Kong.

Nos anos seguintes, a nova variante mais letal espalhou-se pelo Vietnã, Tailândia, Indonésia, Camboja, Laos, China, Malásia.  Agora, não só estava afetando as aves e matando-as,  como também havia infectado gatos, furões e, finalmente, pessoas.

Em maio e junho de 2005, uma das novas variantes do H5N1 matou mais de 5 mil gansos, gaivotas e patos selvagens com cabeça de barra no Lago Qinghai, China. Muitos investigadores estavam preocupados que as aves migratórias transportassem o vírus pelas rotas aéreas para a Índia.

Parece que podem de fato ter transportado o vírus para a Europa e África, mas as provas serão sempre ambíguas. No entanto, é preciso admitir que a intensificação e a “homogeneização” genética global da produção avícola têm sido força motriz de uma nova variedade de epidemias, incluindo o H5N1.

O conhecimento das dimensões sociais e ecológicas dos alimentos deve fazer parte da educação de todos os consumidores de alimentos. A incapacidade de falar claramente, de forma transparente aos consumidores, sobre a origem e a forma de produzir esses alimentos deveria ser motivo de afastamento de políticos e desligamento de gerentes das empresas.

Alguns “opinadores-de-mercado”, por exemplo, sugeriram que os agricultores no sul e leste da Ásia deveriam criar galinhas da forma como fazemos na América do Norte e na Europa – dentro de galpões rigorosamente controlados.

Estas pessoas nunca viveram em países pobres nos trópicos úmidos, nem compreendem as ramificações sistêmicas do surgimento de grandes concentrações de terra e de produção, onde outrora existiam muitas explorações familiares pequenas . Esses camponeses foram expulsos e foram embora.

Alguns dos maiores surtos de gripe aviária têm ocorrido em algumas das fazendas avícolas mais bem geridas do mundo, em alguns dos países mais ricos

Se eles querem biossegurança como a que temos na Europa e na América do Norte, os agricultores tropicais precisariam de fechar os aviários. Mas, nos trópicos, com elevadas temperaturas,  sem ar condicionado, as aves começariam a morrer em minutos. Com que fonte de energia é que teriam ar condicionado?

E o que aconteceria a todos aqueles agricultores pobres do campo que dependem de pequenas criações de aves para a alimentação de sua família e para pagar as suas contas? Mesmo que matássemos todas as galinhas doentes e colocássemos o resto em galpões com ar condicionado, ainda haveria patos a voar por cima ou gatos ou furões a entrar e a sair dos arbustos.

Alguns dos maiores surtos de gripe aviária têm ocorrido em algumas das fazendas avícolas mais bem geridas do mundo, em alguns dos países mais ricos. Os vírus, como todos os micróbios, adaptam-se rapidamente a novas situações. Nos anos que se seguiram aos surtos iniciais de gripe aviária, passei muito tempo e energia a trabalhar com os que tomavam as decisões de política sanitária no Canadá, procurando formas de impedir a entrada da doença na América do Norte.

E também com os agricultores do sudeste asiático, procurando formas de deter a epidemia na sua origem. Muitos funcionários e líderes empresariais estavam atuando para encorajar os países a seguir um programa de teste e abate e desencorajar os camponeses a seguir criando galinhas em liberdade nas suas casas e comunidades rurais.

Em março de 2008, num mercado no leste da Tailândia, descobri que, se os vendedores respondessem aos incentivos econômicos, os programas concebidos para impedir as pessoas de criarem frangos de quintal tinham poucas probabilidades de sucesso. De acordo com uma mulher com uma dúzia de aves carneadas e limpas à sua frente, as galinhas da aldeia comiam o dobro por peso obtido, que os frangos de aviários, criados de forma intensiva.

No mês seguinte, a convite dos meus colegas indonésios, eu e a minha mulher visitamos uma aldeia javanesa numa área que se diz ser altamente endêmica da gripe aviária. Naturalmente, os camponeses que participaram de nosso seminário afirmaram não ter tido casos confirmados de gripe aviária. É claro que quaisquer aves que morreram tinham sucumbido a alguma outra doença.

Após a reunião, os camponeses levaram-nos a ver as suas galinhas. A sua maior fonte de orgulho foram os seus galos cantores competitivos Ayam Pelung. Falavam de um metro de altura e os seus apelos eram longos, arrastados, de baixa voz, lembrando-me Cesária Évora, a “diva dos pés descalços” de Cabo Verde.

Estes galos cantores valiam cada um $2.000 a $3.000 (US), o que era mais do que o rendimento anual da maioria destes agricultores. Um dos agricultores era um criador que tinha vendido galos a compradores de tão longe como o Japão.

Lembrei-me, então, de ter visto um concurso de galos cantores javaneses em 1986. As aves estavam em gaiolas, no alto de postes balançantes, juízes a passar de ave para ave, a ouvir. Será que estavam a ouvir os presságios? Avisos de uma noite pandêmica mesmo no horizonte?

Não sei que critérios os juízes usaram, mas estando ali, no fresco de uma manhã tropical sombria, a ouvir aqueles cantos de amor e perda, semelhantes a fados, ansiava por acreditar, como os zoroastrianos, que os apelos daquelas aves da selva poderiam afastar os demónios da noite.

(*)Capítulo do livro On Pandemics: Doenças Mortais da Peste Bubónica ao Coronavírus, de David Waltner-Toews, disponível agora na Greystone Books. Extraído e adaptado com a permissão da editora.

(**) David Waltner-Toews é epidemiologista veterinário,  autor de mais de vinte livros. Ele vive em Kitchener, Ontário.

Fonte da matéria:
(https://www.brasildefato.com.br/2020/07/15/artigo-um-aviso-das-galinhas-do-mundo)

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