Economia

O Banco Central dos Estados Unidos pula a cerca

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Luiz Gonzaga Belluzzo – A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, administrada pelo Estado.

“Cruzamos muitas linhas vermelhas que não haviam sido ultrapassadas antes”, disse em uma live Jerome Powell, presidente do Federal Reserve.  “Trabalhamos muito duro para nos explicar ao público em geral.” O Financial Times reconhece que o Banco Central dos EUA tomou uma variedade de ações para apoiar a economia: reduzir as taxas de juro para perto de zero, implementar compras ilimitadas de títulos para acalmar os mercados e iniciar programas de empréstimos de emergência para manter o crédito fluindo para empresas e governos estaduais. Vários desses esforços estão em território não testado, incluindo programas que emprestam a empresas de médio porte, compram títulos corporativos e compram dívidas de estados e grandes cidades.

Na pandemia econômica, os nexos monetários foram rompidos e os proprietários privados, aí incluídos os proprietários da força de trabalho, foram expropriados. A propriedade perdeu sua função crucial de legitimar a apropriação da renda e da riqueza. A precificação dos ativos só aponta para baixo, jogando os juros longos para cima. Incumbe ao Banco Central achatar a curva, comprando os longos e vendendo os curtos.

O mercado vira uma mixórdia: não é capaz de diferenciar os ativos de grau de investimento daqueles de alto risco. Trata-se do fenômeno da indiferenciação. A fuga desesperada para a liquidez atesta que, na derrocada, não há ativos melhores ou piores. Todos são fâmulos desprezíveis perante o dinheiro. A crise desvela o segredo que o sodalício dos crentes da sabedoria informacional dos mercados – uma seita poderosa – pretende abafar: em sua dimensão monetária, o capitalismo moderno revela o indissociável contubérnio entre o universal e o particular, entre o Estado e o mercado, entre a comunidade e o indivíduo.

Arrisco uma incursão no território das relações entre dívida pública e dívida privada ao longo dos ciclos de expansão e contração da atividade econômica. O endividamento de empresas e famílias expande-se nos períodos de crescimento e “confiança”. Os bancos, sob a supervisão dos bancos centrais, emprestam às empresas e às famílias. As instituições financeiras não bancárias emitem títulos que, abrigados nos portfólios, próprios e de outras instituições, amparam as “poupanças” das empresas e das famílias, poupanças acumuladas ao longo dos sucessivos circuitos de gasto-emprego-renda.

Em informe recente, o Banco da Inglaterra ensina que, nos sistemas monetários contemporâneos, o dinheiro é administrado em primeira instância pelos bancos. Essas instituições têm o poder de avaliar o crédito de cada um dos centros privados de produção e de geração de renda e, com base nisso, emitir obrigações contra si próprios, ou seja, depósitos à vista, meio de pagamento, dinheiro de crédito.

A criação monetária, até aqui, depende da avaliação dos bancos a respeito do risco de cada aposta privada. As políticas monetária e fiscal do Estado estabelecem, em cada momento do ciclo de crédito, as condições que devem regrar e disciplinar as expectativas de credores e devedores. Somente um instrumento dotado de reconhecimento diretamente social, garantido pelo Estado, é capaz de assegurar a validade das decisões e dos critérios de enriquecimento privado nas economias capitalistas. O dinheiro é criado e ingressa na circulação com a bênção do Estado e a unção das relações de propriedade, as relações débito-crédito.

A criação monetária executada pelos bancos sob a supervisão do Estado sanciona as relações de propriedade: o banco credor empresta exercendo a função de agente privado do valor universal. O devedor exercita seus anseios de enriquecimento como proprietário privado, usufruindo a potência do valor universal. O dinheiro é riqueza potencial, promessa de enriquecimento, mas também algoz do fracasso. Se o devedor não pagar a dívida, o banco, agente privado do valor universal, deve expropriar o inadimplente.

Nos bons tempos, a precificação dos ativos gerados no processo de endividamento – títulos públicos e privados negociados nos mercados secundários e abrigados nos portfólios das instituições – definia uma curva de juros ascendente conforme a duration. Ascendente, porém, bem-comportada, enquadrada nas “regras” de precificação do mercado.

O pandemônio econômico ensina: “O Dinheiro acima de Todos, o Estado acima de Tudo”. A restauração das relações de propriedade e de apropriação só pode ser efetuada pela ação discricionária do Estado – Banco Central e Tesouro Nacional. É o paradoxo da livre iniciativa. A iniciativa é livre enquanto os empreendedores estão legitimados pelo manto protetor da moeda, instituição social administrada pelo Estado.

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