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Na pandemia, o declínio do poder americano

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Fernando Marcelino – Sistema de saúde excludente e despreparado. Medidas emergenciais fragmentadas. Indústria desnacionalizada — inclusive a de insumos hospitalares. E o fator Trump, que aprofunda caos interno e geopolítico.

Nos filmes de Hollywood, os super-heróis norte-americanos costumam salvar o mundo de alguma ameaça terrível. Até nos filmes sobre epidemias o roteiro costuma ser o mesmo. Só que agora, diante da covid-19, o que está ficando claro não são as virtudes dos Estados Unidos, mas suas fraquezas e vulnerabilidades no sistema de saúde, na economia e na condução política, na segurança energética e no poder militar.

Em primeiro lugar, destaca-se a falta de uma forte liderança centralizada no mais alto nível do governo. Trump poderia ter tomado medidas para mitigar a crise, mas optou primeiro pela negação, declarando os avisos do covid-19 como “nova farsa” dos “globalistas”. Começou a agir somente no meio de março, desperdiçando dois meses irrecuperáveis ​​para se preparar e cumprir a função mais básica de um estado durante uma pandemia – que é avaliar com precisão a ameaça.

Sem conseguir implementar rapidamente uma estratégia nacional centralizada para orientar uma resposta uniforme, os Estados Unidos cumpriram rapidamente a previsão da Organização Mundial de Saúde de que se tornaria o novo epicentro da covid-19. O resultado é que hoje, 19 de maio, há 1.537.830 de casos de coronavírus, com 90.694 mortos.

Para enfrentar uma pandemia é preciso uma agência central para coletar e monitorar dados do exterior e dentro do país para coordenar uma resposta – ainda mais num país do tamanho dos EUA. E, diante da paralisia da Casa Branca, o vácuo foi ocupado por governadores e prefeitos, empresários, comissários esportivos e presidentes de faculdades que passaram a tomar medidas para contenção da epidemia. Frustrada pela lenta resposta federal, governadores como Andrew Cuomo em Nova York, Newsom, na Califórnia e Inslee de Washington, começaram a agir por conta própria para fechar escolas e atividades comerciais para controlar a pandemia. Estas ações descentralizadas, de acordo com cada estado, entretanto, levou ao fracasso em compreender a magnitude nacional do problema. Além disso, os governos estaduais vem competindo entre si para adquirir equipamentos de proteção de saúde numa situação em que as empresas que estão vendendo estão aumentando os preços. Medidas judiciais se somam as disputas entre os governos estaduais e federal. Enfim, não existe uma ação nacional rápida e unificada.

Outra dificuldade dos Estados Unidos – e do Ocidente em geral – é que setores estratégicos ao desenvolvimento econômica e a proteção da população deixaram de ser “nacionais”, isso é, não existem cadeias produtivas completas em seu território. A concentração da produção e de saberes especializados na Ásia, a partir da década de 1980, deslocaram estas indústrias, incluindo do setor hospitalar e médico.

Segundo a Associação Americana de Hospitais, o número total de hospitais é 6.146, dos quais 5.198 são “hospitais comunitários” definidos como “hospitais não federais, gerais de curto prazo e outros hospitais especiais”. O total de leitos com pessoal nos EUA é de 924.107 e existem 1.005.295 médicos nos EUA, muitos que nasceram fora dos Estados. De acordo com a Associação Médica dos EUA, haverá uma escassez de 105.000 médicos nos EUA até 2030. Além deste números, indicarem que os Estados Unidos tem menos médicos e menos leitos hospitalares per capita do que a maioria dos outros países desenvolvidos, mostra que seria preciso uma grande ampliação dos leitos para pessoas que precisam de monitoração cuidadosa, de camas e ventiladores na UTI. Para lidar com a falta de estrutura, suprimentos e pessoal, o governo começou uma rapinagem internacional, confiscando materiais médicos e recrutando médicos e enfermeiros do exterior. Além disso, enviaram à China, no primeiro de abril, 23 aviões cargueiros para trazer ao território norte-americano equipamentos médicos.

Entretanto, o problema na saúde é mais profundo. Como não existe um sistema público universal de saúde, a principal preocupação dos norte-americanos é com uma alta taxa de seguro e altos custos. As pessoas precisam ir ao médico e ser verificadas se apresentam sintomas da covid-19, mas os americanos podem evitar atendimento médico, mesmo em condições graves, por causa dos custos. Eles podem ter receio de ir ao médico porque têm medo de não poder pagar o check-up ou qualquer teste. E se receberem um diagnóstico da covid-19 e precisarem de hospitalização, receberão as contas do hospital.

Na Flórida, o custo do tratamento para um paciente covid-19 não segurado foi de US$ 34.927,43. No último relatório da FairHealth, há detalhes chocantes sobre os custos do tratamento que podem aumentar para até US $ 73.000 para um paciente de covid-19 não segurado. Se você é um paciente da covid-19 e tem seguro, o valor que você pagará varia entre US $ 9.000 e 20.000. São 27 milhões de pessoas sem seguro saúde nos EUA.

Esta situação se agravou com o governo vacilando ao realizar testes de coronavírus. Um problema de fabricação com os kits de teste que foram enviados inicialmente em campo e um atraso na aprovação de testes comerciais fizeram com que o país perdesse semanas de mapeamento da covid-19. A Jack Ma Foundation, uma organização de caridade criada pelo fundador da empresa de varejo chinesa Alibaba, anunciou uma doação de 500.000 kits de teste para os Estados Unidos. Em resumo, o setor de saúde do país se mostrou sem estrutura e despreparado para lidar com situações críticas como a pandemia de covid. Falta crítica de kits de teste. Falta de ventiladores. Camas insuficientes na UTI. Falta de médicos e enfermeiros. Sistema de saúde excludente. Ações descoordenadas e descentralizadas.

Nesta situação, com 1,3 milhão de soldados em serviço ativo e uma Guarda Nacional de reserva de 440.000 funcionários em tempo parcial do exército e da força aérea, as forças armadas dos EUA têm uma capacidade significativa de agir com velocidade em momentos de emergência nacional.

Atualmente, existem cerca de 40.000 soldados envolvidos na luta contra o coronavírus – incluindo milhares de militares da ativa, mais de 20.000 membros da Guarda Nacional, dois navios hospitalares e 15.000 do Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA – com dezenas de milhares mais propensos a serem trazidos nas próximas semanas. O principal esforço militar foi aumentar as capacidades médicas civis através da construção de hospitais de campo de emergência no Javits Center de Nova York, CenturyLink Field de Seattle e TCF Center de Detroit, bem como através do envio de navios hospitalares para Nova York e Los Angeles. O Departamento de Defesa também anunciou que forneceria máscaras de respiração e ventiladores a partir de seus próprios suprimentos, a serem distribuídos pelo Departamento de Saúde e Serviços Humanos. A Guarda Nacional da Geórgia está ajudando a operar casas de repouso para idosos e a Guarda Nacional de Illinois está prestando assistência médica em uma prisão atingida pelo vírus.

À medida que a crise aumenta, o papel dos militares pode se expandir ainda mais. E isso aumenta a perspectiva de que soldados mais ativos, especialmente equipes médicas e outros especialistas, possam ser chamados a prestar mais apoio às agências civis à medida que a pandemia se intensifica. A re-atribuição dessas e de outras tropas prontas para o combate à linha de frente da pandemia pode abrir lacunas e vulnerabilidades em partes das forças armadas – limitando sua capacidade de realizar treinamento básico, realizar exercícios e responder a novas crises em outros lugares.

O porta-aviões Theodore Roosevelt, movido a energia nuclear, esteve em Guam depois que pelo menos 173 marinheiros deram positivo para covid-19, incluindo o próprio capitão, deixando-o tecnicamente operacional, mas incapaz de funcionar normalmente. É apenas um dos pelo menos quatro navios da Marinha dos EUA com um surto declarado a bordo, um número que provavelmente será muito maior. Isso está começando a afetar a presença militar dos Estados Unidos no Indo-Pacífico. Ambos os porta-aviões americanos no Pacífico Ocidental – Theodore Roosevelt e USS Ronald Reagan – foram atingidos pela covid-19. Exercícios militares com as Filipinas foram cancelados. E provavelmente também não haverá o exercício do Comando Indo Pacífico dos EUA que deveria reunir 25 nações regionais e 25.000 funcionários em julho. Vários exercícios importantes, eventos e movimentos programados de pessoal foram cancelados em todo o mundo. As estações de recrutamento fecharam. Tudo está online. No Centro de Excelência em Manobras do Exército dos EUA, dentro da base militar de Fort Benning, novos exames e protocolos médicos estão mudando a maneira como o treinamento básico é realizado com o isolamento social.

Alguns defendem que a preparação para a pandemia e os cuidados com a saúde são prioridades mais urgentes do que estar equipados para combater guerras. Nos últimos 20 anos (em dólares de 2020), os EUA destinaram US $ 4,7 trilhões a mais ao Pentágono do que se tivessem mantido seu orçamento no mesmo nível desde 2000 para desenvolver e comprar novos navios de guerra muito caros para a Marinha, aviões de guerra que quebram o orçamento como o caça F-35 da Força Aérea e uma lista de desejos de novas armas e equipamentos para todos os ramos das forças armadas. Esse desvio sem precedentes dos recursos nacionais para o complexo industrial militar – situação parecida com a URSS – levou a não se ter dinheiro para gastar em hospitais públicos, ventiladores, treinamento médico, testes covid-19 ou qualquer uma das coisas de que se necessita nesta crise não militar.

Este quadro ainda tem outro desdobramento: a indústria global de petróleo está produzindo muito mais petróleo do que o mundo precisa – cerca de 30 milhões de barris por dia a mais. E com a covid-19, está ocorrendo uma enorme destruição da demanda à medida que as principais economias permanecem paralisadas. O colapso maciço na demanda global atingiu a economia dos Estados Unidos em cheio, destruindo a demanda por gasolina, diesel e combustível de aviação, à medida que os carros ficam estacionados nas calçadas e os aviões são enviados para campos e pistas remotas. Em Midland, Texas, o epicentro do boom do xisto de petróleo na última década, os estacionamentos de empresas como Chevron, Diamondback e Apache estão vazios. Diversas empresas estão demitindo trabalhadores, fechando poços e se preparando para uma queda prolongada com a queda dos preços do petróleo.

Talvez por perceber o caos da pandemia, o presidente Trump vem agindo perigosamente no front externo. As forças armadas dos Estados Unidos enfrenta desafios de complexidade assustadora em três frentes. Ele está lutando para apoiar agências civis na luta contra a covid-19 no território dos EUA, lutando para preservar uma força saudável à medida que o coronavírus se espalha por suas fileiras (já são mais de 1.500 militares e seus familiares ficaram doentes com a covid-19) e manter sua prontidão e compromissos operacionais no exterior. Equação muito difícil de se realizar.

Enquanto países em todo o mundo enfrentam o perigo comum de covid-19, o governo dos EUA impôs mais sanções ao Irã, Sudão, Síria, Venezuela, Zimbábue e Cuba, que está desempenhando um papel ativo e corajoso no combate à pandemia. No caso do Irã, o governo Trump deixou claro que manterá sua política de “pressão máxima”, inclusive bloqueando o pedido do Irã por um empréstimo do FMI. Trump também vem fazendo uma campanha para culpar a China pela covid-19. Em vez de admitir o despreparo e falhas políticas, fomentou toda uma campanha publicitária para aumentar a visão negativa da China. E agora busca uma aliança internacional com Inglaterra, França e Austrália para cobrar reparações, o que mostra que seja improvável que o governo Trump suavize sua posição em relação a Pequim.

Soma-se a isso tudo a incerteza sobre as eleições nos EUA. Várias primárias em estados foram adiadas. Existem preocupação de que a eleição presidencial de novembro possa ser realizada. Enfim, muitas incertezas e inseguranças emergem em 2020, num contexto de visível incapacidade de união em torno dos interesses nacionais e declínio dos EUA como força decisiva nas questões mundiais. A verificar as consequências que virão, exigindo da comunidade internacional a tomada de medidas rápidas para conter o impacto destrutivo que as políticas dos EUA possam vir a tomar.

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