Sonali Kolhatkar – “A América Primeiro” tem sido uma expressão usada com orgulho pelo presidente Donald Trump e por milhões de seus apoiadores. Hoje, durante uma pandemia global, eles realizam seu desejo, com os Estados Unidos na liderança, ultrapassando rapidamente as outras nações em número de infecções e mortes por Covid-19. Pode não ser o primeiro lugar que eles desejavam ou esperavam. Mas a primeira posição não deve causar nenhuma surpresa, pois qualquer pessoa minimamente atenta ao modelo econômico e de infraestrutura escolhido pelos EUA poderia prever o impacto da pandemia. E, na realidade, nossa arrogância nacional pode ter sido nosso principal ponto fraco.
A pressão para nos adaptarmos aos delírios de um excepcionalismo americano nos cegou para nossas vulnerabilidades. Ignoramos os riscos do nosso sistema de saúde porque os Estados Unidos eram grandes demais para fracassar. Preferimos não encarar a crescente desigualdade de riqueza, porque a riqueza dos muito ricos era uma medida de nossa grandeza. Não demos importância às disparidades raciais e de gênero porque admiti-las arranharia o brilho da mítica América.
Por muitas décadas, sucessivos governos sugaram nossos recursos coletivos para turbinar as forças armadas e forrar os bolsos dos ultra-ricos, deixando nossa rede de proteção social tão esfarrapada até ficar cada um por si. Durante esta crise, os americanos receberam pouca orientação do governo federal além de especulações perigosas sobre tratamentos sem comprovação científica. Uma nação com um sistema de saúde que é um patchwork público/privado caro de administrar e que oferece pouca proteção no momento em que mais precisamos estava destinada a sucumbir a uma crise de saúde ampla como a atual. As forças conservadoras fizeram dos EUA uma sociedade guiada pela noção de “sobrevivência do mais forte”. E, de fato, nas últimas semanas, os conservadores chegaram a dizer em voz alta o que costumavam deixar implícito – tudo bem que os mais fracos morram se o mercado de ações se mantiver em alta.
Nossa arrogância nacional é uma questão bipartidária. Mesmo o presidente Barack Obama tendia a cair na armadilha, invocando frequentemente o excepcionalismo americano em seus discursos. Mas, como a crise do Covid-19 deixou claro, as ideias sobre a superioridade dos EUA são essencialmente delírios de grandeza. Eles nos cegaram para os inevitáveis fracassos de um império que prefere investir em jatos militares em detrimento do Medicare for All (NdaT: projeto de sistema de saúde pública e universal). Ser a nação mais rica e a maior potência militar do mundo não quer dizer nada diante da crise que enfrentamos hoje – ou de crises futuras como catástrofes causadas pelas mudanças climáticas.
É tentador pensar que é a inaptidão do presidente Donald Trump que está matando tantos americanos, mas sua negligência é deliberada. Durante meses, Trump ignorou os sinais de alerta sobre o vírus, dados por suas próprias agências de inteligência. Meses se passaram desde que a pandemia foi declarada sem que haja um plano federal sério e com base científica para enfrentar a crise que vá além de passar a responsabilidade para os estados e, acima de tudo, do desejo de reabrir a economia. Trump não tem plano algum para salvar vidas. Seu único objetivo é ver subir os indicadores econômicos com que ele conta para ser reeleito.
É nesse contexto que o New York Times publicou, em 23 de abril, uma reportagem sobre a decepção de estrangeiros com a situação dos EUA, devastados pelo coronavírus sob o comando de Trump. Sob o título “’Tristeza’ e descrença de um mundo sem a liderança americana”, a autora Katrin Bennhold lamenta que a pandemia seja “talvez a primeira crise global em mais de um século em que ninguém sequer olha para os Estados Unidos em busca de liderança”. Dois dias depois, o mesmo jornal publicou outra matéria sobre o mesmo assunto, chamada “Uma pandemia poderá destruir a percepção do excepcionalismo americano?” Nele, a jornalista Jennifer Schuessler descreve uma profunda “luta para conciliar a crise e a autoimagem do país”. Mas os Estados Unidos nunca foram excepcionais da maneira que os historiadores e os autodeclarados especialistas imaginavam.
Oferecendo uma visão mais dura e honesta dos EUA, Calvin Woodward escreveu na Associated Press, um dia após a publicação da matéria de Bennhold, que “O coronavírus abala a ideia de um ‘excepcionalismo americano'”. Woodward escreveu, de forma incisiva: “Uma nação com poder incomparável, ambição sem limites e aspirações, ao longo da história, de ser a “cidade brilhante na colina” da humanidade não pode produzir simples cotonetes em número suficiente, apesar da capacidade de produção industrial e de fornecimento de tempos de guerra invocada pelo presidente Donald Trump”. Talvez a crítica mais embaraçosa ao excepcionalismo americano tenha vindo do jornalista irlandês Fintan O´Toole, ao observar que “havia um único sentimento que os EUA não tinham inspirado até hoje: pena”.
Enquanto outras nações organizaram abordagens bem fundamentadas, baseadas na ciência e enérgicas para retardar a disseminação do vírus, deveria causar vergonha a todos os americanos o fato de a nação mais rica do planeta fracassar de forma espetacular. Poderia ser engraçado se não tivessem morrido mais americanos de Covid-19 do que durante a guerra do Vietnã.
Mas as ações americanas têm sido vergonhosas muito antes dessa pandemia. Mesmo deixando de lado as origens da conquista desta terra paga com o sangue de indígenas, ou a construção de poder econômico à custa de africanos escravizados, nossa história é marcada com sangue, desigualdade, encarceramento, massacres com armas, guerra, desperdício, superconsumo e poluição – tudo isso com raízes profundas em um nacionalismo hipócrita.
A verdade é que os EUA se destacam – de algumas das piores maneiras. Somos excepcionais por ter sobrevivido tanto tempo sem um programa nacional de saúde e por tolerar desigualdades obscenas que constantemente favorecem os ricos em detrimento do resto de nós. Esta nação é excepcional por encarcerar uma porcentagem da população maior do que qualquer outro país e por continuar vivendo com a constante ameaça da violência por arma de fogo. Somos excepcionais por estar em guerra durante a maior parte dos últimos séculos. E, é claro, somos excepcionais em termos uma população grande o suficiente para eleger um presidente tão horrível como Donald Trump. São essas as características que tornam os EUA realmente excepcionais.
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Os-EUA-sao-mesmo-excepcionais-de-algumas-das-piores-formas/6/47425
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