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“O vírus chegou”: considerações sobre o pronunciamento de Bolsonaro em rede nacional

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VICTOR PICCHI GANDIN — Na noite de ontem (24/03), os brasileiros se surpreenderam com um pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) transmitido em cadeia nacional de rádio e televisão. No início do discurso, ao se apresentar como líder de um governo que há tempos vinha se preparando para enfrentar o coronavírus, “que mais cedo ou mais tarde chegaria ao Brasil”, Bolsonaro causou a impressão de que aparentemente iria de alguma forma se retratar pelas diversas declarações negligentes feitas anteriormente.

Ignorando sua atitude de incentivar manifestações a seu favor no último dia 15 e cumprimentar pessoalmente diversos apoiadores em um momento em que aglomerações já deveriam ser evitadas, o presidente afirmou que na verdade estaria traçando “estratégias para salvar vidas”. De forma quase heroica, considerou que estava agindo “contra tudo e contra todos” para enfrentar o problema.

Logo depois de tais falas, o discurso começou a mudar, com Bolsonaro repetindo alguns chavões de sempre, vindo a criticar a imprensa com direito a um irônico “Parabéns imprensa brasileira!”. A liberdade de expressão garante que o Presidente da República critique a imprensa, como aliás vem sendo feito desde sempre, por todos os ocupantes do Palácio da Alvorada. Assim sendo, criticar a imprensa não é uma atitude nada exclusiva do atual presidente, mas utilizar um pronunciamento oficial para expor tal manifestação pode ser considerado como algo até inédito.

Como se estivesse em uma live nas redes sociais, Jair Bolsonaro aproveitou um pronunciamento oficial para polarizar com governadores e mandar uma indireta “àquele conhecido médico daquela conhecida televisão”. Tudo isso num pronunciamento que foi pensado, escrito, lido e não impedido de ir ao ar por assessores e por aqueles que compõem o círculo político mais próximo do presidente. Menção também foi feita, de forma positiva, aos “cientistas e pesquisadores do Brasil”, mas desconsiderando os recentes cortes de bolsas que custeiam suas pesquisas.

A imprensa tem cumprido seu papel de informar casos concretos que estão acontecendo ao redor do mundo. Atualmente, segundo dados oficiais, são mais de 433 mil casos confirmados de coronavírus, sendo quase 20 mil mortes. No Brasil, onde a situação estaria tranquilíssima, já são 2.201 casos e 46 mortes. Estatisticamente, é importante considerarmos não apenas os números em si, mas a curva de crescimento da propagação do vírus ao longo do tempo.

Dia a dia, o número de contaminados e casos fatais aumenta com velocidade assustadora, e isso acontece mesmo existindo diversos casos subnotificados, não confirmados ou ainda aguardado resultados laboratoriais. Não há como esconder: num país com mais de 200 milhões de habitantes e já havendo transmissão comunitária, este número vai crescer. Mesmo que uma pequena proporção da população venha a óbito, este número já será considerável. O próprio Ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), também fez alertas quanto à possibilidade de colapso em nosso sistema público de saúde.

O exemplo do que aconteceu com os países que demoraram a tomar alguma providência está disponível para quem quer ver. O Brasil teve a “sorte” de demorar alguns meses para passar a ser incluído no mapa mundial de transmissão da Covid-19 e, por isso, tivemos a oportunidade de adotar as medidas necessárias antes que o pior acontecesse. Apesar disso, Bolsonaro as considera desnecessárias, já que o exemplo da Itália é “um país com grande número de idosos e com um clima totalmente diferente do nosso”.

Porém, o coronavírus tem se espalhado mesmo em regiões de climas tropicais e existem idosos em todos os países. Devemos preservar os nossos, e não minimizar a situação como se fosse normal encarar que apenas “os velhinhos”, como diria um famoso empresário e apresentador, irão perecer. Vale lembrar também que em diversas outras ocasiões a Covid-19 pode ser fatal, mesmo entre não-idosos.

Ignorando recomendações da Organização Mundial da Saúde, de profissionais de saúde de todo o mundo e até mesmo “descredibilizando” seu próprio Ministro da Saúde (cuja aprovação na gestão da crise provocada pelo coronavírus é bem maior que sua própria – o que talvez lhe afetou o ego), Bolsonaro radicalizou, afirmando que se deve “abandonar” a “proibição de transportes, o fechamento de comércio e o confinamento em massa”.

Cinicamente, o presidente questionou: “O que se passa no mundo tem mostrado que o grupo de risco é o das pessoas acima dos 60 anos. Então, por que fechar escolas?”. Sabemos que não é necessário respondê-lo, mas não custa lembrar que professores e profissionais da área de Educação são adultos e idosos, que a circulação de alunos mobiliza outras pessoas que podem fazer parte do grupo de risco e que crianças em idade escolar muitas vezes são criadas pelos avós, que podem contrair coronavírus a partir de seus netos. Para estes avós, a consequência pode ser fatal e não meramente assintomática.

Para o presidente, como “raros são os casos fatais de pessoas sãs”, estas deveriam circular livremente, ignorando o fato de que estas podem contrair o vírus e transmiti-lo inconscientemente para pessoas cuja contaminação seria mais perigosa. Para ser justo, mais adiante, no mesmo pronunciamento, Bolsonaro afirma que devemos ter “preocupação em não transmitir o vírus para outros”, mas tal afirmação soou bastante contraditória em meio ao seu discurso. Como tal precaução poderia acontecer sem a adoção do distanciamento social?

No momento mais bizarro do pronunciamento, Bolsonaro dedica-se a falar de si próprio, quando ressalta seu próprio “histórico de atleta”. Irresponsavelmente, o presidente afirma que “caso fosse contaminado pelo vírus”, não precisaria se preocupar. O chefe do Executivo diz que “nada sentiria ou seria, quando muito acometido, uma gripezinha ou resfriadinho”. Ao menos 23 pessoas ligadas à comitiva presidencial que viajou aos Estados Unidos no início de março receberam o diagnóstico “positivo” para a doença.

Bolsonaro deveria preocupar-se sim, estando ou não com coronavírus, em vez de sair cumprimentando apoiadores quando a recomendação era a de evitar aglomerações e contatos com as mãos. Deveria também se preocupar com o resultado que suas declarações podem provocar, e não apenas com a economia (que indiscutivelmente sofrerá abalos em nível mundial) ou com a manutenção de seu mandato. Se ele não estará nem aí caso seja contaminado, por ser “atleta”, a população em geral deve ficar atenta e evitar o risco de contaminação – para si e para os demais.

“O vírus chegou, está sendo enfrentado por nós e brevemente passará”, disse Bolsonaro. Caso o Brasil passe bem pela pandemia de coronavírus, com poucas contaminações e óbitos em comparação com outros países, certamente o presidente usará tal dado – que deve ser comemorado – meramente como uma informação para ser “jogada na cara” dos demais. Bradará por ter “avisado” que o dano não seria tão grande. A verdade é que, se tomarmos agora as medidas necessárias, isso significa que conseguiremos passar por este surto APESAR do presidente Jair Bolsonaro.

A população em geral está consciente do problema, governadores e prefeitos tem feito a sua parte, o próprio Ministério da Saúde tem agido tecnicamente na contramão do presidente e com isso ainda existem chances de o problema ser superado a médio ou longo prazo. A atuação de Bolsonaro só tem atrapalhado este objetivo (tomara fique restrita apenas ao nível do discurso), mas é sabido que cerca de um terço da população continuará concordando com qualquer coisa dita por ele e seguirá defendendo-lhe e o aclamando. Infelizmente, a parcela mais radical dentre seus apoiadores agora terá a oportunidade prática de chegar ao ponto de fazer algo que por vezes era invocado apenas retoricamente: morrer por seu ídolo. Esperamos que isso não aconteça.

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