Ana Alfageme – Aterrisso em Helsinque. Quando tento pagar pelo trem para o centro, o frio da plataforma me fisga em cheio. Esqueci minha vida —documento de identidade, celular, carteira— no banheiro da área de desembarque no aeroporto. Não posso voltar a entrar. Corro para um balcão. Uma funcionária me escuta, imune ao terror no meu rosto. Telefona. Espero. Volta a ligar. Nada. Me manda para outra janelinha. Ali, a mulher, impassível, fuça debaixo da prateleira: “Ana?”. Ergue o documento. O telefone. A carteira. Na Finlândia você deixa a identidade no banheiro e te devolvem. Uma revista largou 12 carteiras em 16 cidades. Helsinque mostrou ser a mais honesta do mundo. 11 reapareceram; em Madri, 2. Quando chego ao país recordista em tantas coisas —o mais livre e estável do mundo e o que mais contribui para o bem-estar da humanidade—, acabo tendo de vivenciar precisamente esse recorde. Quase choro de alívio. Já posso começar a procurar o segredo da felicidade finlandesa.
Na sauna, nem sobrenomes, nem trabalho, nem política
Entre o vapor e a escuridão da sauna, mal se consegue ver o rosto de uma dezena de homens e mulheres. Com exceção de Ana, uma jovem mexicana que acompanha Riikka, tia–avó de seu filho, todos são de meia-idade. Riikka diz que o ritual de sauna e banho no mar a fazem resistir ao longuíssimo período de escuridão. Para Outi, uma médica jovial na casa dos 50 anos, é relaxante. Um senhor revela que conheceu aqui a sorridente mulher que se senta a seu lado. Sobre o que todos eles costumam conversar? “Do tempo. Ou de receitas de comida”, diz Outi. Há 19 anos ela vem aqui, mas não sabe o sobrenome dos colegas de sauna. Nem a profissão. “Há uma regra. Não se fala nem de trabalho nem de política.” Bom lugar para saborear esta sociedade igualitária.
Suar em uma sala de madeira é o grande passatempo (e invenção) finlandês. Existem 2,3 milhões de saunas neste comprido país incrustado entre a Rússia e a Suécia, com 5,5 milhões de habitantes. Quase um para cada dois cidadãos. Nessas salas aquecidas nasciam crianças e as pessoas se despediam dos mortos. Parece um símbolo desse núcleo resistente, tremendamente prático, de uma nação sujeita a todos os tipos de adversidades —climáticas, econômicas, bélicas— e que viajou em velocidade supersônica da penúria de uma sociedade rural até o cume do desenvolvimento humano.
A sauna de um clube de natação de invierno no centro da capital finlandesa
Neste clube de Helsinque—duas cabanas simples ao lado de um píer— as mulheres em frenesi para se despir e correr para o mar açoitadas pela chuva perguntam: “Você acha que somos loucos, não?”. E felizes? A Finlândia é oficialmente o país mais feliz do mundo pelo segundo ano consecutivo, de acordo com um relatório das Nações Unidas. Uma senhora entra no vestiário com uma toalha minúscula como único traje e responde: “Sim, os finlandeses. Felizes e nus, isso é o que dizem, não?”.
E o que diz o ex-primeiro-ministro Antti Rinne é: “Em nossa sociedade há equidade, o Estado de bem-estar significa que cada pessoa tem o mesmo direito à educação e às prestações sociais. Além disso, é um país seguro para todos. Acredito que por causa dessas duas coisas somos tão felizes”.
Se você fizer a pergunta a qualquer pessoa que encontrar, ela levantará as sobrancelhas. Provavelmente fará ironia sobre a inclemente penumbra (pouco mais de seis horas de luz) que nos cerca: “Bem-vinda à Finlândia em novembro!”, dirá com um meio sorriso. Depois responderá que se sente satisfeito com sua vida. Citará a educação com toda a certeza. O Estado de bem-estar. A igualdade. A confiança nos outros. Sua crença de que tudo funciona. Algo assim está refletido no Relatório sobre a Felicidade no Mundo. Não são os reservados finlandeses, modestos com suas conquistas, os que expressam mais emoções alegres. Mas se destacam em constatar a escassa corrupção, a grande liberdade de que dispõem para tomar decisões sobre sua vida e que, em caso de necessidade, sempre podem contar com alguém.
A origem é um Estado democrático estabelecido em uma Constituição de grande calado depois do fim da sangrenta guerra civil de 1918, diz o professor de História do Direito Jukka Kekkonen. Um momento para a reconciliação do jovem país, que havia conseguido a independência da Rússia em 1917. A partir daí, o que torna a Finlândia única é “a compreensão do significado das coalizões políticas, o consenso e os compromissos nas grandes questões, além da justiça e da igualdade”. Essas amplas alianças de forças moderadas foram fundamentais, acredita ele, na construção de uma sociedade não isenta de desafios como guerras e dificuldades econômicas: o colapso da União Soviética, que coincidiu com uma grande crise nos anos noventa; a queda da gigante tecnológica Nokia e a Grande Recessão.
Quando esta reportagem foi feita, no fim de novembro, Rinne era o primeiro governante socialdemocrata em 20 anos, à frente de um Executivo de coalizão de centro-esquerda. Havia vencido por pequena margem o ultradireitista e xenófobo Partido dos Finlandeses, impulsionado como sua própria formação pelo descontentamento criado pela fratura social e pelos cortes do Executivo anterior. Rinne caiu em 3 de dezembro, acusado de mentir na sede parlamentar sobre a greve dos serviços postais.
Sua renúncia provocou um novo recorde nacional. A sucessora, Sanna Marin, se tornou, aos 34 anos, a primeira-ministra mais jovem do mundo em meio a uma situação insólita: os cinco partidos do Governo são liderados por mulheres, quatro delas com menos de 35 anos. É uma marca que se entende melhor com um fato. As finlandesas foram as primeiras do mundo a votar e disputar eleições, em 1907. Sua presença no mercado de trabalho é muito elevada, com uma taxa de ocupação superior a 70%, ligeiramente inferior à masculina.
A Finlândia, uma economia altamente industrializada (com muita força na eletrônica) e baseada no setor de serviços, é uma das mais generosas da OCDE em proteção social. Gasta 30,9% do PIB, com uma renda per capita (42.340 euros, aproximadamente 197.099 reais) menor do que o resto dos países nórdicos. Esse guarda-chuva de segurança, que só foi totalmente implantado em meados dos anos sessenta do século passado, agora cobre Edvin, um plácido bebê nos braços do pai no consultório do centro de saúde. Algo não vai bem. A médica o aproxima de um aparelho que emite um zunido no ouvido esquerdo. Ele não se altera. É o momento dos exames que se fazem aos oito meses. A saúde pública finlandesa é pressionada pelo ritmo recorde de envelhecimento (durante 10 anos esteve quase na liderança da UE, com 21% das pessoas acima de 65 anos) e pela baixa natalidade. O Executivo pretende rever os cortes do Governo conservador anterior —que caiu ao tentar privatizar parcialmente a saúde e recentralizá-la— injetando dinheiro, aumentando impostos e gerando mais emprego.
Durante meia hora, a médica, uma enfermeira e uma residente pesam, medem e auscultam Edvin. Escutam e falam. “Ele tem uma infecção no ouvido. Receitaram antibióticos”, conta o pai, Juhana Tuunanen, diplomata de 37 anos, na frente de um café ao voltar para casa. É um apartamento de um quarto —e sauna, claro— em uma região abastada de Helsinque. Chove, mas ele deixa o filho na varanda. “Assim ele dorme melhor a sesta”.
Há fotos de Juhana com a esposa e a outra filha, de sete anos, na estante da sala de estar. A proteção do Estado finlandês se espalha sobre todos eles. A enumeração dos benefícios parece infinita: por Edvin, recebem 105 euros por mês até completar 17 anos. Quando ele nasceu, receberam 170, o equivalente ao que custa a famosa caixa de papelão que o Estado envia em cada nascimento, com roupas e alimentos para os dois primeiros meses. Eles já desfrutaram da caixa da filha. A mãe teve quatro meses de licença-maternidade; ele, nove semanas. Ambos podem dividir mais seis meses. É por isso que ele cuida do bebê, cozinha e faz a limpeza da casa. A menina frequentou uma escola infantil acessível (“custa entre 50 e 300 euros, dependendo da renda familiar”, diz ele) e com cinco anos começou a educação pré-escolar gratuita oferecida pela capital. “Ter filhos não significa uma mudança dramática”, diz. Para isso influencia que ele e a esposa não trabalham mais de oito horas por dia, algo habitual na Finlândia.
Edvin acordou. Seu foco de atenção é o microfone que registra as palavras do pai. “Bem, os serviços públicos não saem de uma caixa mágica, temos de pagar uma quantidade bastante alta de impostos, estou muito feliz em pagá-los”, diz, repetindo algo que você vai se acostumando a ouvir, “eu os recebo mais tarde em serviços que são muito importantes para mim.” A pressão fiscal finlandesa é de 42,2% do PIB, menor do que o resto dos países escandinavos, exceto a Noruega.
2
O equilíbrio dourado
A filha de sete anos de Juhana já começou a ir ao colégio. A Educação se escreve aqui em letras maiúsculas. Pública e gratuita até o doutorado, é uma das melhores do mundo. Hanna, Evii, Harris e Aarhun guiam com certa condescendência a visita ao colégio Pukinmäenkaari, ao norte de Helsinque. Aarhun já fez 16 anos. Alto, moreno, ele se expressa em um ótimo inglês. Sua família se mudou do Azerbaijão: “Este colégio é muito mais divertido”, explica. “Os professores te apoiam. Eles te dão as notas que você merece, não te aprovam por trazer presentes para o professor ou por puxar o saco dele. Temos mais recreios e mais longos e você pode fazer um monte de coisas com seus amigos.” O que se vê no passeio são salas de aula sem livros e com computadores, algumas com almofadas em forma de cone por todo o mobiliário e uma ala com crianças com deficiências graves, permanentemente acamadas ou em sofisticadas cadeiras de rodas, sempre com um professor ao lado de cada uma delas.
O que não se vê é que todos os professores têm mestrado na matéria que ensinam e que exercem uma das profissões mais desejadas, que existe um plano contra o assédio copiado em todo o mundo, que as jornadas são curtas, que se trabalha por projetos e que os 960 alunos quase não têm lição de casa. Bom lugar para evocar o professor Pasi Sahlberg, especialista no sistema educacional do país: “A Finlândia parece ter encontrado um equilíbrio dourado entre pressão e liberdade para que seus alunos consigam bons resultados”. Tudo isso, diz ele, é resultado de meio século de evolução social em que prevalece a colaboração entre escolas e a educação individualizada. Esse excelente sistema é uma das razões da felicidade de seus compatriotas? “Absolutamente”, responde. A jovem ministra da Educação e Cultura, Li Andersson, também concorda: “Não importa se falamos de emprego, felicidade, igualdade, criatividade ou crescimento. Todas essas coisas têm origem na forma como o sistema educacional funciona: isso e o conhecimento fornecem ferramentas às pessoas para enfrentar o que temos ao redor”.
Precisamente, o grande trunfo do Executivo para o crescimento econômico passa pela educação, sacudida pelos cortes, na qual planeja injetar 2 bilhões de euros em quatro anos, e o mais importante: “Em 2022, todos os alunos deverão estar no ensino médio (desde os 16 anos) obrigatoriamente”, anuncia enfaticamente o ex-primeiro-ministro Rinne. É fácil de entender, diz. Quanto mais qualificação, mais emprego.
Crianças em uma escola de Pukinmäenkaari, ao norte de Helsinki
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Afundar na água gelada e brilhar
– Solte o ar. Expire enquanto desce. Assim. Tranquila.
A monitora de natação de inverno Päivi Pälvimäki se equilibra sobre o gelo que filtra o píer enquanto dá instruções. Vê–la de maiô e usando um gorro de lã seria engraçado se a sua cabeça não estivesse ocupada em sobreviver. Milhares de agulhas se cravam nas pernas. É importante se lembrar de respirar com a água a quatro graus.
Päivi Pälvimäki, monitora de natação de inverno
Uma luz mortiça descobre os abetos que abraçam a lagoa. Amanhece no imenso cenário do Parque Nacional de Nuuksio, a apenas meia hora de Helsinque. A floresta, repleta de lagos, é a essência da Finlândia. O maior recurso natural, estandarte das exportações e lugar ao qual sempre se volta. Ocupa quase três quartos do país. Metade dos cidadãos diz que o que mais gosta é fazer exercícios na natureza, como Päivi. “Nadar no inverno dispara minha energia, é uma experiência extrema, uma espécie de meditação”. Para a jornalista Katja Pantzar, afundar na água gelada é um símbolo de sisu, termo finlandês que descreve uma fortaleza quase sobre–humana e que está em seu DNA. A mesma que repeliu a –40ºC o equipadíssimo e superior Exército soviético em 1939, ou a que mostrou Lasse Virén depois de cair na prova de 10.000 metros nas Olimpíadas de Munique, em 1972, levantar-se e vencer batendo o recorde mundial.
Refugiamo-nos, sozinhas, em uma cabine de sauna. É fácil se imaginar em uma dessas cabanas de férias para as quais todo mundo escapa. Existe uma para cada 2,5 edifícios residenciais. “Gostamos da vida simples e de contemplar o que acontece nas diferentes estações do ano”, diz.
A Finlândia também possui o ar de melhor qualidade do mundo e cidades atravessadas pelo verde. Um bom lugar para Liisa Tyrväinen, que investiga o efeito das florestas na saúde. “Basta uma visita de quinze minutos para reduzir os marcadores de estresse”, comenta. Ela supervisiona um projeto com um bosque terapêutico dentro de um hospital. “Este país é único em sua relação com a natureza. 96% dos cidadãos a visitam”, diz. “E está provado que, quando você está em contato com ela, se compromete com a sustentabilidade.” Nas últimas eleições, a maior preocupação dos eleitores foi com a mudança climática. A Finlândia quer ser neutra em carbono em 2035, um objetivo mais ambicioso do que o europeu. O plano inclui a redução do uso de combustíveis fósseis, a produção de energia solar e eólica e a eletrificação da calefação e do transporte.
A lei permite entrar e acampar em qualquer bosque particular. E colher cogumelos ou frutas vermelhas. Existem restaurantes de “comida selvagem” que oferecem pratos com bagas, cogumelos e plantas silvestres. Um deles é o Gron, um pequeno estabelecimento de Helsinque que exibe sua estrela Michelin no banheiro. “Colhemos 800 quilos de vegetais que preservamos”, informa com ar solene o garçom ao servir um cardápio no qual a cebola é combinada com flores de alho e a sobremesa é feita com estame de pinheiro e brotos de abeto.
Päivi nada no silêncio do amanhecer. Ao emergir, parece outra. A visitante entende o porquê. Afundar na água gelada e brilhar, metáfora da Finlândia.
4
Uma tarde na cidade mais feliz do mundo
– Dizem que a única coisa que falta em Kauniainen é um campo de golfe porque não cabe.
Quem conta isso é Christoffer Masar, prefeito desta cidade de 9.700 habitantes de apenas seis quilômetros quadrados, ao volante de seu carro. A chuva borra as luzes do congestionamento das quatro da tarde. Já é noite. A maioria dos moradores trabalha em Helsinque, a 15 quilômetros dali, ou na vizinha Espoo. Em Kauniainen não haverá campo de golfe, mas tem até uma escada que não leva a lugar algum porque foi construída apenas para fazer exercício.
Se a Finlândia é o país mais feliz do mundo, este punhado de casas espalhadas entre as árvores, quase indistinguíveis na eterna escuridão de novembro, é a comunidade mais feliz, de acordo com uma pesquisa de 2017. A razão? “É uma comunidade de moradores ricos, com ótima formação, isso é importante”, explica o minucioso prefeito, de 38 anos. É um funcionário, como todos os prefeitos finlandeses, às ordens dos políticos eleitos. Para saber mais razões dessa felicidade é preciso se enterrar. Literalmente.
Um portão franqueia a entrada de um bunker escavado em uma colina. Aí começa a vida. Há crianças correndo por um túnel que parece não ter fim, handebol juvenil em uma quadra coberta por rocha, acrobacias de ginastas adolescentes e a excitação de subir por uma parede de escalada subterrânea. Os primeiros abrigos civis foram construídos em 1938, antes da guerra contra a vizinha União Soviética. Desde os anos cinquenta as cidades e os edifícios têm abrigos antibélicos. Existem 45.000 em todo o país, um formigueiro de quadras esportivas, estacionamentos ou depósitos que em 72 horas devem estar prontos para acolher a população. Kauniainen abriga 100 clubes e associações de todo tipo, parcialmente financiados pela prefeitura. Muitos deles treinam nessas curiosas instalações.
O município gasta cerca de 300 euros por ano por habitante em atividades esportivas, o triplo da média de outras cidades. Também investe o triplo na educação de adultos e mais do que outros em educação infantil. E isso que os impostos municipais são os mais baixos do país. Mas ter uma grande quantidade de contribuintes ricos significa arrecadar muito.
A trepidante atividade intramuros se repete nos três andares do centro de educação de adultos, que recebe 4.000 alunos por ano. Atte Saari, de 80 anos, grande, compacto, sai da aula de estoniano. Diz ter preguiça de pedalar os 100 quilômetros por dia que costumava e só sai para caminhar. “Não tenho do que reclamar.” Paga um terço do valor da aula. O restante é custeado pelo Governo (24%) e pela prefeitura (43%), explica satisfeito o diretor da escola, Roger Renman. É possível estudar quase qualquer coisa, inclusive sugeri–la.
Pessoas usam uma parede de escalada nas intalações subterrâneas de Kauniainen
Duas mulheres jovens, vestidas de branco, se preparam para entrar na aula de yoga kundalini, enquanto Lars Chvister Johans, um espigado consultor aposentado de 76 anos, e Tarja Liljavista, de 63, terapeuta de uma casa de repouso, saem da ginástica da parte superior do corpo! São felizes? “Este é o lugar onde, quando você tem um problema e telefona para a prefeitura, eles transferem a ligação para a pessoa que resolve o problema”, diz, “podem até transferir a chamada para o prefeito. Tudo funciona”. Ela aprova os colégios e a natureza. Ele fala sobre impostos: “Me dão muito pelo que pago”.
5
A casa primeiro
É sexta-feira à tarde e um neon gigante vermelho ilumina com cinco letras —sauna— quatro homens seminus sentados em uma mureta na rua. Eles são a imagem da felicidade, acolhedores e imunes ao ímpeto da neve que cai fracamente. “Passei dois dias sem dormir por causa de um encontro de programadores”, diz Claudio, um jovem italiano de ampla ossatura, tremendo um pouco, “e aguentei porque vim à sauna”. Seu veterano colega finlandês —eles trabalham juntos em uma empresa de software (o setor tecnológico é grande no país onde os Angry Birds nasceram)– diz divertido: “Se diz que se algo não se cura com sauna ou álcool, com certeza é mortal”.
Carlos cruza os braços sobre as tatuagens e fuma um cigarro com um sorriso de fim de semana. Nasceu em El Salvador e é professor. Na penumbra quente se fala. Existe até um Dia da Sauna: “Você vai a um lugar com pessoas que nunca viu, fica nu e vocês transpiram juntos”, ri Jaakko Blomberg, o inventor da celebração, em que saunas particulares se abrem a todos. Lá, diz, se interrompe a proverbial dificuldade finlandesa de falar com estranhos. E a festa, afirma, se entronca com uma divertida tradição: “Jogar em campos de futebol enlameados, carregar as esposas ou o lançamento de Nokias [a emblemática marca finlandesa de celulares, cuja abrupta queda prejudicou a economia nacional]”. É um homem alto que se desloca de bicicleta e tem um ar de eterno adolescente. Organizou o Cleaning Day, no qual todos são convidados a vender o que não usam, além de exposições de arte em casas. “Em outro lugar isso seria um problema, aqui não. As pessoas confiam nas outras.”
Kotiharjun, em cujas portas os quatro homens estão sentados, é uma das poucas saunas públicas a lenha que restam em Helsinque. Foi inaugurada em 1929, quando Kallio, este bairro hoje boêmio, era um enclave de operários e o banho de vapor era o lugar para se lavar. Ali nasceu, há 63 anos, Martti, olhos azuis permanentemente lacrimejantes. Evasivos. Ao abrir a porta de casa, surpreendem o cheiro de tabaco e a limpeza do humilde espaço quadrado, com uma cama de solteiro, uma coleção de garrafas vazias e coisas importantes penduradas na parede. Um recorte de jornal que mostra a igreja onde seus pais se casaram. Dois barracões de madeira juntos. Como aqueles em que pescava em uma ilha quando criança.
– Isto não é um quarto. Isto é uma casa, a melhor que tive.
Um parque de Helsinki ao amanhecer
O que ele diz parece não extinguir-lhe o gesto amargo, a inclinação esquiva da cabeça. Morava na casa da tia e teve de sair quando ela morreu. Percorreu os albergues de Helsinque bebendo álcool. Em outro lugar do mundo ele certamente estaria morto.
Não na Finlândia, o único país da União Europeia que proporciona uma casa para aqueles que não a têm como o primeiro passo para recuperar suas vidas, dando-lhes também apoio com a engrenagem pública de assistência. O sistema Housing First (a casa primeiro), adotado como estratégia nacional, conseguiu reduzir o número de pessoas sem-teto em 35% entre 2008 e 2013. De 18.000 em 1987 para 5.500 agora.
Assim, enquanto nos países vizinhos cresce o número de outros Marttis, jogados na periferia do sistema, o castigado eletricista já incapacitado para trabalhar mora neste apartamento há três anos e fez um teste para o jornal da associação Vva Ry, que gerencia a casa. No mesmo prédio de tijolo e vidro, 28 moradias iguais a esta acolhem homens mais velhos e sozinhos. Pagam 900 euros por mês. Sempre há um assistente social de plantão. Eles os ajudam no que precisam.
Um homem de rosto avermelhado cambaleia e grita. Acabou de chegar da rua, segurando uma lata de cerveja. É um dos residentes. O alcoolismo está em declínio na Finlândia, mas entre os homens é o dobro da média europeia. Apesar das duras estratégias nacionais —beber é mais caro aqui do que em qualquer país da UE— metade dos finlandeses do sexo masculino (44,7%) declara consumir álcool em grandes quantidades pelo menos uma vez no último mês. Tampouco o vociferante perderá a casa por seu estado.
Um dos inventores do sistema finlandês é Juha Kaakinen, CEO da ONG Fundação Y, a principal proprietária desta rede, que compra casas para alugar a baixo preço com o dinheiro que o Estado arrecada com jogos de azar. “Se o Housing First fosse um medicamento”, diz, “deveria ser prescrito como tratamento básico para essa doença chamada falta de moradia”. Uma receita que exigiu mais moradias públicas, transformar albergues em complexos de apartamentos e não deixar ninguém sozinho. Uma fórmula magistral que visa fazer a doença desaparecer em 2027. Esse sistema é ético, diz ele, e até vantajoso. “A economia anual por pessoa é de ao menos 15.000 euros”, comenta, “porque são usados menos serviços sociais, de emergência, da polícia e da Justiça”.
Este medicamento é prescrito para sociedades diferentes e mais populosas? “É claro”, responde, “mas é preciso ter o Governo, as prefeituras e as ONGs trabalhando com o mesmo objetivo e aportando recursos. E depois você precisa de casas, claro”.
Por extensão, e chegamos a uma pergunta recorrente, o Estado de bem-estar finlandês é aplicável a outros países? “Os Estados de bem-estar são conjuntos complexos em que políticas, regulações, prestações e serviços são combinados em âmbitos diferentes (relações de trabalho, saúde, velhice). Portanto, não podem ser exportados como exportamos azeite de oliva da Espanha”, explica o professor de Economia da Universidade de León Luis Buendía, autor do livro ¿Es Exportable el Modelo Nórdico? Assim como você não constrói uma democracia, diz, somente convocando eleições. É preciso estabelecer liberdades e separação de poderes. Mas o professor acredita que se pode aprender e muito.
A suposição de que os Estados de bem-estar só são viáveis em países pouco povoados não é correta: “Não se trata da quantidade de população. Trata-se da vontade de se comprometer, que as instituições funcionem bem e, acima de tudo, de igualdade de oportunidades para todas as crianças”, diz o professor finlandês Jukka Kekkonen. “A Suécia tem aproximadamente os mesmos habitantes que a Grécia ou Portugal. Os Estados de bem-estar destes são muito diferentes, parecidos com o da Espanha, que tem muito mais população”, diz Buendía. “O que aponta para uma história compartilhada: os três viveram ditaduras com repressão aos movimentos operários e de esquerda quando o resto da Europa consolidava e ampliava seus Estados de bem-estar”.
Se você diz que vai viajar para a Finlândia, é comum ouvir uma frase semelhante a esta:
– Eles não devem ser tão felizes se são os que mais se suicidam, não?
Os finlandeses têm uma taxa de suicídio três pontos superior à média europeia (14 por 100.000 habitantes) e é enorme entre os homens, mas ela foi reduzida à metade desde 1990. O professor de Psiquiatria da Universidade de Helsinque, Erkki T. Isometsä, explica como: “Fomos o primeiro país do mundo a desenvolver um plano de prevenção, todos os suicídios foram estudados durante um ano e depois a disponibilidade e a qualidade do tratamento de doenças mentais foram promovidas”. Outra demonstração da perícia finlandesa: um portal, o Mental Health Hub, oferece orientação e tratamentos virtuais em todo o país.
Martti, um dos residentes do programa Housing First, em sua casa da capital finlandesa
Não é necessário invocar como origem dos suicídios o clima extremo, dizem os especialistas, já que são mais numerosos neste país do que no resto dos nórdicos. As causas, sempre complexas, teriam mais a ver com o alcoolismo, a emigração traumática para a cidade e o grande número de armas de caça.
“Este é um país bastante brutal”. Kjell Westö pronuncia estas palavras no Teatro Nacional, onde se ensaia a adaptação de um de seus romances. “Houve quatro guerras em 27 anos em um país com tão poucos habitantes. Isso deixou marcas em várias gerações de homens. Quando eu era criança, éramos todos filhos ou netos de soldados, o que traz consigo certa dureza na vida e nas atitudes. Essa foi uma parte sombria da nossa sociedade, mas, por outro lado, existe solidariedade, uma percepção de que somos bastante iguais”. Acredita que isso tem a ver com um passado rural e pobre, quase sem aristocracia, “que nos tornou igualitários em nossas atitudes”. Westö aprendeu espanhol aos 35 anos para ler Cortázar, Borges e Sábato. Depois ouviu obsessivamente Joaquín Sabina. “Eu falo muito”, ri, “e aqui se suspeita daqueles que falam muito”.
Guardar silêncio não é estranho neste país em que se faz mais do que se fala, mas cujos cidadãos são os europeus que mais confiam uns nos outros e em suas instituições. Esperam o bonde ou o ônibus muito distantes entre si (existe até um emoji alusivo), ciosos de seu espaço pessoal. E nos trens, buscam a maior solidão possível.
6
Arde o design
Niklas Mahlberg parece um capitão na ponte de um navio inabarcável. A seus pés, crianças que engatinham, mesas de café, silhuetas curvadas sobre notebooks, grupos variados conversando e estantes brancas cheias de livros. Observa o panorama como quem olha o filho brincar. “Esta é a grande sala de estar da cidade.” Mahlberg, da empresa ALA, é um dos arquitetos da Oodi, a nova biblioteca central de Helsinque. Estamos no Céu dos Livros. Assim chamam este espaço diáfano, cujas claraboias absorvem o ruído no telhado ondulado, como todo o edifício, uma espécie de navio de formas esculturais que navega entre o Parlamento e o Museu de Arte Contemporânea. Um andar abaixo há impressoras 3D, máquinas de costura, estúdios de gravação e salas para videogames. Tudo gratuito. Em seu primeiro ano, recebeu 10.000 visitantes por dia.
No país mais alfabetizado do mundo, cinzelado em sua identidade pela alta cultura, a Oodi conquistou a cidade, envolta em madeira. As lâminas de pinheiro também sobem pela fachada da sauna Löyly, um emblema arquitetônico –mais um– de Helsinque. O lendário design finlandês espalha o alento da floresta em suas últimas insígnias.
A jornalista Katja Pantzar entra na biblioteca. Cresceu no Canadá e, quando se mudou, engoliu a Finlândia como um remédio. Subiu na bicicleta e nada em um buraco no gelo. Viu seus compatriotas enfrentarem os problemas “em vez de escondê-los debaixo do tapete” e encontrarem soluções. Como com os suicídios ou os sem-teto. Mais uma vez o sisu, essa fortaleza. Queria saber mais e escreveu Sisu,O Segredo Finlandês para Um Estilo de Vida Feliz. Olha para o filho de nove anos e diz: “Se você tem talento musical, poderá ir à Academia Sibelius, uma das nossas instituições de maior prestígio, não porque seus pais conhecem alguém ou têm dinheiro”.
Epílogo.
Portão 31 do aeroporto de Helsinque. Olhares impacientes que saltam dos celulares para o painel, que anuncia o voo para Estocolmo. A ruidosa paisagem habitual. Do outro lado da parede se ouvem pássaros. É uma gravação. Uma mulher lê diante da grande vidraça, as malas e o casaco colocados ao seu lado. Ela se senta em uma cadeira fabricada por um artista a partir de uma árvore caída. Na sala, há uma estante cheia de livros deixados pelos viajantes e que qualquer pessoa pode tomar emprestados. A jovem representante de uma ONG, a caminho da Cúpula do Clima em Madri, consulta o telefone em uma espécie de chaise longue acarpetada que cresceu no chão. Quando olha para o teto, vê o que veria se estivesse deitada na floresta. É apenas uma fotografia, mas é assim que a Finlândia se despede.
https://brasil.elpais.com/brasil/2020/02/15/eps/1581787076_373420.html?utm_campaign=oqel&utm_source=Newsletter
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