Reginaldo Nasser – O atentado que matou o general iraniano Qassem Suleimani pode parecer, à primeira vista, apenas mais um gesto tresloucado de Trump. Mas é preciso estar alerta para as razões domésticas de tal decisão e lembrar que, como acontece desde a Guerra do Vietnã, a superioridade militar dos EUA é sempre derrotada pela falta de estratégia política.
Quaisquer que sejam os motivos que levaram o presidente Trump a autorizar o assassinato do general, um dos principais comandantes militares iranianos, tudo leva a crer que a política doméstica dos EUA seja uma das principais razões (processo de impeachment e eleições presidenciais) que reforça o ímpeto imperialista na região. O fato é que, a partir de então, iniciou-se não apenas uma nova etapa nas relações entre Irã e EUA, mas uma redefinição do quadro geopolítico de todo Oriente Médio.
Por mais paradoxal que possa ser, até 2 de janeiro de 2020, era possível pensar em um novo acordo entre Estados Unidos e Irã apesar da tensão crescente entre eles desde a retirada unilateral de Trump do pacto nuclear em maio de 2018, colocando o Irã sob crescente pressão econômica, política e diplomática. O acordo foi firmado em 2015 entre o Irã e um grupo de potências mundiais conhecido como P5+1 – EUA, Reino Unido, França, China, Rússia e Alemanha.
Enquanto o acordo assinado pelo então presidente Barack Obama esteve em vigor, não houve ataques das forças iranianas contra as forças americanas, nem contra instalações petrolíferas sauditas, que estavam mais ocupadas com as manifestações populares contra o governo iraquiano mantido pelos dois países.
Em junho de 2019, o primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, esteve em Teerã para ajudar a intermediar um possível diálogo entre os EUA e os iranianos. Abe instou a liderança iraniana a seguir as regras nucleares internacionais e a desempenhar um “papel construtivo” para a segurança regional, logo após a visita do presidente Trump ao Japão. Neste encontro, o Irã foi um dos principais tópicos de discussão. Em 20 de dezembro, Abe recebeu o presidente do Irã, Hassan Rouhani, para ajudar a manter o acordo. No início de dezembro, os EUA e o Irã fizeram uma troca de libertação de prisioneiros. Trump agradeceu ao Irã no Twitter pelo que chamou de “negociação muito justa”, acrescentando que era possível haver cooperação entre ambos os países.
Por incrível que pareça, um mês depois, em uma coletiva de imprensa, um alto funcionário do Departamento de Estado dos EUA disse que Suleimani era, por 20 anos, “o principal arquiteto” dos ataques terroristas do Irã. Mas os EUA não estavam em guerra com o Irã. Aliás, é importante sublinhar que, na noite de sua morte, Suleimani não se movia furtivamente pelo Iraque e se dirigia para o aeroporto de Bagdá, região em que tem base militar norte-americana na Zona Verde. Ora, esse livre trânsito de Sulemani era possível, porque havia um entendimento entre americanos e iranianos.
As relações entre os EUA e o Irã sempre tiveram um duplo caráter no Iraque, desde 2003, com a queda do governo de Saddam Hussein. Há cooperação entre os dois países para “pacificar” o Iraque, mas, ao mesmo tempo, as relações sempre foram de disputa por hegemonia no Oriente Médio. A retirada do governo Trump do acordo nuclear, a reintrodução das sanções econômicas dos EUA contra o Irã, em novembro de 2018, e a derrota de um inimigo comum (o Estado Islâmico) criaram uma situação de tensão crescente. Após as eleições parlamentares iraquianas, em maio de 2018, essa rivalidade ficou evidente. Tanto Washington quanto Teerã têm forçado o governo iraquiano a tomar partido.
Os protestos populares contra o governo iraquiano se originaram nas províncias do sul e do centro do Iraque – regiões que, tradicionalmente, têm sido a espinha dorsal da influência iraniana – e se espalharam por todo país, caracterizando a revolta como não sectária e de caráter nacional. Tratava-se de uma revolta contra um dos governos mais corruptos do mundo e uma sociedade onde a desigualdade econômica e miséria crescente são decorrentes, fundamentalmente, de uma política econômica neoliberal (privatizações) e da militarização da economia.
Mas as seguidas ações militares dos EUA, matando dezenas de combatentes iraquianos, fizeram com que as questões geopolíticas preponderassem sobre as revoltas populares. Como já acontece desde a Guerra do Vietnã, a superioridade militar dos EUA é sempre derrotada pela falta de estratégia política. O Parlamento iraquiano votou pela expulsão das tropas norte-americanas, o antiamericanismo em todo Oriente Médio atinge seus níveis mais elevados, aumentaram as possibilidades das presenças russa e chinesa na região, enquanto críticos e dissidentes dos regimes iraniano e iraquiano se uniram no repúdio à ação dos EUA.
Tudo isso pode nos dar a impressão de uma ação tresloucada de Trump e de seus assessores. Contudo, como foi dito no início desse texto, é preciso estar atento, sobretudo, para as razões domésticas de tal decisão. Mas, não apenas às questões propriamente políticas. É bastante conhecida a assertiva do grande estrategista Clausewitz de que a “a Guerra é a continuação da política por outros meios”. E a política nos EUA é feita, sobretudo, com base na lógica econômica. CEOs de grandes empresa militares dos EUA devem colher enormes lucros a partir de uma possível escalada de conflitos com o Irã. Assim que as notícias do assassinato do general chegaram aos mercados financeiros, os preços das ações dessas empresas dispararam.
Em dezembro de 2019, Trump conseguiu autorização do Congresso para gastar mais de US$ 738 bilhões no Pentágono para o ano fiscal de 2020, o que representa um aumento de US$ 21 bilhões em relação ao ano de 2019. Isso é mais do que foi gasto com as Forças Armadas durante as Guerras da Coreia e do Vietnã.
De acordo com estimativas do projeto Costs of War, do Instituto Watson de Assuntos Públicos e Internacionais da Universidade Brown, a Guerra ao Terror custou aos americanos por volta de US$ 6 trilhões desde 2001, quando os EUA invadiram o Afeganistão. Isso significa que, ao longo desses 19 anos, os norte-americanos gastaram US$ 32 milhões/hora. Desde 2001, a guerra continua a se espalhar pelo mundo e não se limita ao Afeganistão, ao Iraque, ou à Síria. As Forças Armadas dos EUA e as empresas militares de segurança fazem parte de uma rede de operações em todo mundo – em pelo menos 76 nações, ou 40% dos países do planeta.
Como se sabe, toda essa máquina de guerra em operação tem como consequência aumentar o número de revoltas no mundo. Portanto, quando os presidentes dos EUA dizem em alto e bom tom que seu objetivo é derrotar o terrorismo, pode-se entender que, no fundo, eles sabem que isso vai apenas alimentar o aparecimento de mais conflitos e, por mais paradoxal que possa ser, isso deve ser visto como um êxito político.
Creio que um texto de Trotsky, escrito no final da década de 1920, sobre os problemas da política mundial e da política europeia decorrentes da expansão irresistível do poder norte-americano, traduza de certa forma o futuro que nos aguarda. Com sua expansão, explicava Trotsky, os norte-americanos “introduziram no subsolo de seu edifício os barris de pólvora do universo inteiro”. Ou seja, passaram a querer lidar com todos os antagonismos do Ocidente e do Oriente, a luta de classes na Europa, as insurreições dos povos coloniais, todas as guerras e todas as revoluções. De um lado, isso fez com que o capitalismo norte-americano se tornasse a força fundamental da contrarrevolução internacional, cada vez mais interessado em manter a “ordem” em todos os lugares do mundo. Por outro, essas ações podem preparar o terreno para uma explosão revolucionária gigantesca deste poder imperialista mundial em expansão.
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