JACQUELINE SINHORETTO – Neste ano, vivemos as consequências do fato de não termos trazido as concepções e práticas da segurança pública para o campo democrático.
Dizer o quê do ano de 2019? Ele é a consequência do que não foi feito para trazer as concepções e práticas da segurança pública para o campo democrático em 40 anos. É um ano de tantos eventos trágicos, da exacerbação da pura violência por agentes de Estado. É um presente sangrento que tem a densidade de uma história que se constrói há décadas.
Em janeiro, o recém empossado governo Bolsonaro lançou seu pacote para a área. É apenas – e nada mais – do que uma proposta legislativa de endurecimento das leis penais. Não há plano de segurança, não há medidas de reorganização das polícias, ou da prevenção nos estados e municípios, não há explicitação de como o terceiro maior orçamento do país será manejado pelo ministro Sergio Moro. O pacote enviado ao Congresso Nacional é um documento ressentido de um juiz que odeia o parco e desigualmente aplicado sistema de garantias das leis penais do país. Em cada artigo, uma derrota sua como juiz que inventa o direito que aplica.
O pacote “anticrime” foi organizado em torno do aumento de penas, redução de garantias de defesa e endurecimento de condições carcerárias. Uma lógica se explicita, marcando o refluxo nas concepções modernas do direito penal: vários dispositivos apontam para a desobrigação do Estado em produzir provas para condenar ou executar. Executar não apenas como jargão de aplicar sentença judicial. Executar como autorização prévia para a violência policial. Ao lado de plea bargain, whistleblower, execução provisória da pena, aparece a proposta da excludente de ilicitude para policiais que matam em serviço. Um proposta de campanha de Bolsonaro – de Wilson Witzel, de João Doria, de Romeu Zema, e de outros governadores um pouco mais envergonhados – tornada realidade pela caneta de Moro. O projeto enfrentou resistência no Congresso e nas organizações da sociedade civil, que criaram uma campanha chamada “Solução Fake”. Apesar das resistências, um substitutivo da proposta inicial acabou sendo aprovado, sem essas propostas. Os danos foram apenas reduzidos, talvez temporariamente, mas não totalmente evitados, porque a correlação de forças no Congresso mostra uma bancada da bala coesa.
Logo após o anúncio do pacote “anticrime”, dois decretos ampliando a posse e o porte de armas de fogo foram lançados pelo governo federal, cassados também por ação do Congresso, sob o argumento de que um decreto não pode ser frontalmente contrário à lei em vigor – no caso, o Estatuto do Desarmamento. O que não impediu a proliferação avassaladora de discursos e imagens armamentistas em todas as frentes. Culminando com os movimentos de fundação de um partido abertamente armamentista, com o logo desenhado com projéteis de bala de fogo e o número 38. Antes de o ano acabar, ainda vimos o artista que compôs o logo oferecer um retrato de Moro, também composto por cápsulas de balas, desenhando a imagem do ano.
O discurso das principais autoridades do país passou a endossar ainda mais fortemente ações de letalidade policial, cercadas pela expectativa da aprovação da excludente de ilicitude como norma legal. O efeito de discurso se traduz em aumento da violência policial, com as notícias diárias de crianças sendo atingidas por balas disparadas pelos policiais em ações inacreditáveis para os padrões de uma polícia profissionalizada. A letalidade policial aumentou em todo o país, destruindo ganhos de redução da violência que resultaram de políticas públicas de anos anteriores. A Rede de Observatórios de Segurança Pública avaliou um aumento de 56% no número de mortos pelas polícias em relação ao ano passado, que já não foi nada pacífico. Identificou também o aumento no número de policiais mortos, embora as escalas sejam diferentes.
Este ano começou com o registro da primeira inflexão na contabilidade de homicídios. É possível que o ano encerre com quase 10 mil vidas salvas em relação aos indicadores de 3 anos anteriores. Indevidamente apropriados pela propaganda do governo Bolsonaro, posto que se tratam de efeitos de políticas implementadas especialmente por governos estaduais, entre as quais o controle efetivo de armas. É possível que esta queda seja freada pelas políticas estimuladas pelo atual governo e a retirada de financiamento dos projetos que estavam em curso anteriormente.
Na contramão do (pouco) que fizeram governos anteriores, as políticas destinadas ao aperfeiçoamento profissional das polícias praticamente acabaram. A imagem do policial como profissional qualificado – que ganhava prestígio e bolsas quando se capacitava e estudava, reforçada nos documentos das políticas de segurança anteriores – foi substituída pela imagem do policial acuado pelas emoções, que atira por não ter alternativa para lidar com o crime. Os termos do governo atual, trazidos no texto legislativo de Moro, falam em não punir os policiais que agem por medo, susto ou surpresa. Isto é, o policial é visto não como um profissional que maneja técnicas e conhecimentos acumulados, mas como sede de emoções e instintos. Nas ruas, o comportamento dirigido pelo instinto é apoiado.
Em Paraisópolis, São Paulo, nove jovens morreram após uma operação policial em um baile funk
Em maio, no Rio de Janeiro, o discurso de expertise e sangue frio, orgulho de atiradores de elite (snipers), se viu acuado pelo espetáculo de um governador que foi acompanhar uma ocorrência de alto risco, com reféns, depois de haver decidido, no lugar dos experts, que a única alternativa que eles tinham na ação era atirar para matar. Ficaram para a história as imagens de Witzel descendo de um helicóptero na ponte Rio-Niterói para comemorar uma ação com resultado morte. Visivelmente inebriado por participar de uma espécie macabra de filme de ação, exibindo o prazer que sentia com a extinção da vida.
Até outubro, seis crianças tinham perdido a vida com balas disparadas em tiroteios com a participação da polícia no Rio de Janeiro. Casos que nunca são investigados adequadamente e nos quais não se esclarece a autoria dos disparos. Em São Paulo, a morte violenta de Lucas, 14 anos, culminou com a prisão de sua mãe, ao comparecer à delegacia para depor sobre o desaparecimento do filho após uma abordagem policial. Pouco dias depois, nove jovens foram mortos por asfixia em um baile funk na favela de Paraisópolis, numa ação policial que os PM encurralaram e impossibilitaram a fuga e a defesa de centenas de jovens. O caso produziu uma grande resistência, mas também recebeu apoio de uma parcela da população que considera a morte um desfecho merecido para os frequentadores de bailes funk. Os dois casos se acrescentam a outros 330 boletins de ocorrência de mortes por intervenção policial registrados até outubro em São Paulo, muitos deles com múltiplas vítimas.
Desde 2018, com a intervenção militar no Rio de Janeiro, o quadro de deterioração dos indicadores de respeito às leis por parte das forças policiais se reforça. A concepção de que o controle do crime é uma guerra contra inimigos internos se consolida, tendo como decorrência o reforço da doutrina de eliminação do inimigo interno. Este é um processo que ganhou musculatura a partir do governo Dilma Rousseff, após as manifestações de rua de 2013 e os megaeventos, criando uma estrutura jurídica e de financiamento para o progressivo uso das Forças Armadas em atividades de policiamento urbano ordinário, o que também reforça nas polícias a adoção de modelos de policiamento pautados nessa visão.
O Ceará viveu uma série de ataques a ônibus, prédios e vias em decorrência da adesão a uma gestão penitenciária linha-dura que não reconhece as divisões dos presidiários em facções e procura um enfrentamento que reproduz e amplifica a violência. Mesmo um governo de partido de esquerda adere à doutrina do inimigo interno a ser vencido, praticamente abandonando as políticas de prevenção específicas que tinham surtido efeito em anos anteriores.
É reduzido a quase nada o espaço para uma doutrina de policiamento que se diferencie do discurso hegemônico do bandido morto. Existem ações pontuais que procuram resistir ao seu sufocamento, existem atitudes individuais de profissionais da segurança, mas não existe um debate consistente sobre alternativas. As palavras de ordem de muitos movimentos de protesto à violência policial propõem o fim da polícia militar, num momento histórico em que as possibilidades de atingir esse objetivo são concretamente muito reduzidas. Mas não se ouve eco de outras propostas fora das salas das universidades e ONG que trabalham no tema – e que estão aberta e deliberadamente sendo atacadas em sua imagem e orçamento.
Em 2019, tomou posse a maior bancada de políticos oriundos das carreiras da segurança pública, em sua maioria com discurso radicalizado e até extremista. O nível do debate sobre policiamento e prevenção à violência que essas lideranças profissionais produzem é o mais raso que se possa conceber, com uma ou outra exceção. A bancada da segurança esteve muito mais preocupada com a reforma da previdência, do que com ações efetivas para a mudança dos patamares de insegurança em que vive a população brasileira, em todas as divisões e segmentos.
Enquanto isso, as únicas propostas que ressoam – além da morte – apostam todas as fichas no encarceramento. Em julho de 2019, a marca de 800 mil presos foi atingida, e nos meses seguintes mais 40 mil se agregaram. O crescimento é vertiginoso, posto que a marca de 700 mil havia sido transposta em 2016. Naquele momento, o Ministério da Justiça lançou uma política nacional de desencarceramento e os tribunais superiores passaram a admitir situações de cumprimento de pena domiciliar para mulheres com filhos. Mesmo com este esforço, o número cresceu. O Ministério da Justiça não apenas abandonou as políticas de redução do encarceramento, como investiu sua força política para aumentar a permanência de condenados em regime fechado, estendendo o período necessário para a progressão de regime, o que foi aprovado no tal pacote. Ainda aguardam julgamento dessas pessoas.
Apesar de resistências por parte da sociedade civil e de parlamentares, em 2019 acentuaram-se os traços autoritários das práticas e concepções de políticas de segurança e penais cristalizadas pelo pacote “Anticrime”. Esses elementos estruturais produzem como consequência a vulnerabilização da vida e da segurança, especialmente de alguns grupos sociais: crianças e jovens de áreas urbanas degradadas, corpos de negras e negros vistos como matáveis ou destinados ao confinamento.
O ano da violência: com incentivo do Estado, letalidade da polícia explodiu em 2019
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