Política

Esquerda que não reconhecer seus erros não pode apontar futuro, diz Boulos

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Jamil Chade – Guilherme Boulos estava com viagem marcada para reuniões no exterior, inclusive com representantes da ONU. Mas cancelou tudo diante da soltura de Luiz Inácio Lula da Silva e decidiu permanecer no Brasil.

Em entrevista à coluna, o líder do PSOL fez uma avaliação do papel da oposição a partir de agora, estratégias de atuação nas eleições municipais e teceu duras críticas contra o ministro da Justiça, Sergio Moro. “A farsa de Moro ruiu. Se tornou um rábula de miliciano, passou a usar a PF como polícia política”, disse.

Sobre a volta de Lula ao palco político, ele insiste que a oposição “se organiza a partir de objetivos, não de pessoas”. Mas Boulos deixou claro que não considera que Lula solto “tira espaço, bloqueia o avanço da esquerda”.

Candidato às eleições presidenciais em 2018, ele admite que “uma esquerda que não tenha o mínimo de humildade em reconhecer que errou e onde errou não terá condições de apontar para o futuro”. Mas faz um alerta: “eu queria ver essa mesma cobrança de autocrítica para mais gente no Brasil”. Entre eles, ele cita o PSDB, a mídia brasileira e setores ditos “democráticos” da sociedade. “Tem muita gente precisando de autocrítica, não só a esquerda”, completou.

Eis os principais trechos da entrevista:

UOL – O que representa a soltura de Lula para a oposição hoje e quais serão os objetivos de curto e longo prazo?
Boulos – 
A libertação do Lula é o início da reparação de uma injustiça, de uma verdadeira fraude judicial. É também o início do fim de Sergio Moro, esse xerife que partidarizou o judiciário brasileiro para intervir nas eleições presidenciais. A farsa de Moro ruiu. Se tornou um rábula de miliciano, passou a usar a PF como polícia política.

Embora sua narrativa ainda cole para alguns setores, tem cada vez menos credibilidade. Seguindo assim, é questão de tempo pra ele voltar pro ostracismo em Maringá. A saída do Lula é uma derrota deles.

E, sem dúvida, uma importante vitória do campo popular e democrático no Brasil. Uma vitória política e simbólica da esquerda, depois de duras derrotas acumuladas desde 2015. Isso cria condições para fortalecer a oposição a Bolsonaro. O que eu espero – e vou trabalhar pra isso – é que a saída do Lula estimule mais gente a ir às ruas, que anime os ativistas e o povo a lutarem contra esse projeto de destruição nacional.

Nós chamamos várias mobilizações durante esse ano, mas a adesão foi aquém do necessário para fazer frente a Bolsonaro. Que essa vitória estimule as pessoas a irem às ruas, colocando a luta num outro patamar. Não vejo outra saída.

Olha o que aconteceu na Bolívia. Um golpe militar, em pleno 2019. A América Latina revivendo isso 50 anos depois. Independente dos erros do Evo na condução do processo, é a prova de que boa parte das elites políticas e econômicas estão dispostas a recorrer a tudo, inclusive ao estímulo de milícias queimando casas, para manter-se no comando.

Eles não funcionam na linguagem do diálogo, do parlamento. Não achem que o quietismo vai inibir a selvageria deles. Evo renunciou e na sequência saquearam sua casa e o estão caçando par prendê-lo. Nós temos que aquecer a luta de ruas para mudar a relação de forças. É a única forma de não ficar à mercê dessa selvageria.

Um dia após ser solto, Lula reencontrou seus eleitores em São Bernardo do Campo (SP) - Amanda Perobelli/Reuters

Um dia após ser solto, Lula reencontrou seus eleitores em São Bernardo do Campo (SP)

No dia que Lula foi preso, ele levantou teu braço e indicou como sendo o possível sucessor. Com ele de volta ao palco, qual será teu papel e como você pretende atuar?
Meu papel é de ajudar a construir uma oposição combativa no Brasil. Espero seguir rodando o país, como fiz nesse ano inteiro. Em 2019 fui a 17 estados, conversei com a juventude nas universidades e institutos, com movimentos sociais nas periferias e com lideranças políticas da esquerda em cada local. Participei das mobilizações pela educação, por moradia e contra a Reforma da Previdência.

Mas, digamos, o copo ainda não estava cheio. A insatisfação contra Bolsonaro foi se fortalecendo ao longo do ano. Acredito que agora temos um cenário mais favorável pra mobilização. E Lula solto ajuda nisso. Eu acho muito engraçada essa ideia de pedir para o Lula ou para a esquerda “pacificar, defender a união de todos” porque senão faz o jogo da polarização do Bolsonaro, vira “duas faces da mesma moeda”… Primeiro, é muito cinismo fazer essa comparação.

Bolsonaro é ligado a milicianos, trata a imprensa igual lixo, defende a tortura, diz que a oposição tem que ir pra cadeia ou pro exílio. Quando a esquerda fez isso? Bolsonaro é um sociopata. A turma dele acredita que a Terra é plana. Que comparação é essa? É um oportunismo retórico de quem quer ter vantagem eleitoral ou de viúvos de um centro político que se decompôs. Estão em busca do centro perdido.

O centro democrático da Nova República, inaugurado pelo Ulisses, foi destruído pelo Eduardo Cunha. E enterrado quando essa turma se aliou ao Bolsonaro, ainda que preservem diferenças. Acho que tem que dialogar com todo mundo e fazer as alianças que for para defender as liberdades democráticas e barrar o autoritarismo.

Agora, acreditar numa saída ao centro no Brasil de hoje é ilusão. Não há condições pra isso. Essa ideia se traduz na mídia e em certas figuras políticas como “vamos moderar o discurso”, etc. O que eles querem? Que enquanto Bolsonaro aplica o projeto mais selvagem da história recente, a oposição fique dócil e bem comportada? Enquanto ameaça abertamente a democracia, a gente fique em colóquios? Bolsonaro não precisa de pretextos pra avançar.

E se algum dia precisar, sua turma de extremistas tem atrevimento o suficiente pra produzir eles próprios, como tentaram no RioCentro, pra não citar casos mais controversos. O Brasil não precisa de uma oposição domesticada. Precisa de uma oposição combativa, que entenda a gravidade do momento e não tenha medo da iniciativa política e das ruas. Esse é o projeto que vou seguir ajudando a construir.

Poderá haver uma frente única para pensar a eleição?
As eleições municipais vão ser um importante momento para enfrentar o bolsonarismo. Sou um defensor de formar frente única da esquerda onde tiver condições. Defendo isso no PSOL e junto a lideranças de outros partidos. Não é fácil. A esquerda brasileira vem de um histórico de divisões e, de fato, existem diferenças de visão. Ainda bem. Pensamento único é coisa da tradição autoritária, não da nossa.

Mas, neste momento, temos que ter a responsabilidade de entender que nossas diferenças são menores que o que nos une contra Bolsonaro e seu projeto. Estive esses dias em Florianópolis, participei de conversa com vários partidos e senti que lá teremos uma frente bem ampla da esquerda, um exemplo importante. Tem que acontecer em mais capitais, em mais cidades grandes. Vamos seguir trabalhando pela unidade.

A oposição corre o risco de ficar refém do destino de Lula e “esquecer” sua função de oposição?
A oposição se organiza a partir de objetivos, não de pessoas. E pautas para a oposição não faltam no governo Bolsonaro. Citaria quatro grandes linhas para nossa iniciativa política: a defesa da soberania nacional, do meio ambiente, das liberdades democráticas e dos direitos sociais.

Bolsonaro representa uma ofensiva brutal em todos esses campos. A entrega da base de Alcântara, a devastação da Amazônia e a omissão nas praias do Nordeste, as constantes ameaças à democracia. Mas destacaria hoje o tema dos direitos, com o pacote de Paulo Guedes.

É a destruição do embrião de Estado social que a Constituição de 88 formou. Dentre outros ataques propõe a desindexação do BPC do salário mínimo, que já haviam tentado com a Reforma da Previdência; a desvinculação dos recursos do pré-sal para educação e saúde; um ajuste fiscal obrigatório, por gatilho, para União, estados e municípios, que ataca servidores e os investimentos públicos; a destinação dos recursos de fundos públicos para pagamento da dívida ao rentismo financeiro.

É, na prática, ajustar o Estado brasileiro ao teto de gastos recessivo do Temer. É condenar o Brasil ao aumento estrutural e contínuo da desigualdade. Temos que mostrar isso ao povo. Esse é o papel da oposição.

Mas e em relação ao ex-presidente Lula?
Agora, em relação a Lula, eu não estou entre os que acham que uma liderança como ele solto tira espaço, bloqueia o avanço da esquerda. Tem gente que acha que renovação significa destruir quem hoje tem hegemonia na esquerda. É um pensamento tacanho, quase infantil. Não perceberam que as derrotas impostas ao PT nos últimos anos não fortaleceram uma nova esquerda, mas sim a extrema-direita.

O antipetismo é um fenômeno de direita, que contaminou alguns do lado de cá. Gente que, sem perceber, acabou virando puxadinho do lavajatismo, do Moro. Eles tem que ler o livro do Walfrido Warde sobre o significado da Lava Jato. E desde Getúlio Vargas, a gente sabe de onde parte e aonde leva o udenismo. Agora, isso não isenta quem esteve no governo – o PT e os partidos aliados – de reconhecer seus erros e de se abrir para a renovação política. Uma esquerda que não tenha o mínimo de humildade em reconhecer que errou e onde errou não terá condições de apontar para o futuro.

No segundo turno da eleição de 2018, não se conseguiu formar uma frente democrática. Existe alguma chance de isso ocorrer agora?
A unidade agora é nas ruas e nas iniciativas de frentes municipais para o ano que vem. Antecipar o debate de 2022 é uma besteira. Mais que isso, uma miopia. É não entender o tamanho da destruição que Bolsonaro representa. Ele tem que ser derrotado.

As fortes denúncias de fraude eleitoral da CPMI das Fake News, os atentados dele e de seus filhos à democracia e as suspeitas graves de relação com os milicianos que mataram Marielle fazem com que Bolsonaro tenha cada dia menos condições políticas de permanecer no cargo. O Brasil não aguenta 4 anos de Bolsonaro. Crimes de responsabilidade ele já cometeu inúmeros, já listados por vários juristas. Bem mais graves que “pedaladas”, diga-se. Mas não acho que o impeachment é o caminho.

Acredito que a sociedade tem que se mobilizar para que o TSE tire da gaveta a denúncia feita ainda nas eleições sobre os crimes eleitorais do Bolsonaro: dinheiro empresarial, caixa 2 e disparos de Fake News. Três crimes eleitorais passíveis de cassação de chapa. Ou ninguém mais se lembra da investigação jornalística da Patricia Campos Melo?

Durante o segundo turno das eleições de 2018, a Folha de S.Paulo e o UOL publicaram matérias expondo o esquema de disparos de mensagens via WhatsApp que vão contra a lei eleitoral.

Ou vamos ignorar as confissões de bolsonaristas arrependidos como o Paulo Marinho e o [Alexandre] Frota? Não é possível que o destino do Brasil tenha sido decidido por um lumpesinato empresarial, composto pelo “Velho da Havan” [Boulos se refere aqui a Luciano Hang] e seus amigos. Um bando de escroques. Lembrando que, em caso de cassação da chapa por crime eleitoral, a Constituição prevê novas eleições em 90 dias.

Existem muitas críticas sobre a forma pela qual a esquerda não fez uma autocrítica diante dos escândalos de corrupção. Chegou a hora de fazer isso?
A esquerda tem autocríticas a fazer. Uma delas é, quando esteve no governo, não ter mudado profundamente o sistema político brasileiro. Esse sistema é o pai da corrupção, ele é uma captura do Estado pelos interesses privados. Todos sabem como funciona: financiamento de campanhas eleitorais levam a compromissos nem sempre republicanos com os financiadores. Essa é a origem da corrupção sistêmica e não apenas no Brasil.

E a chamada porta giratória, onde representantes do setor privado assumem funções públicas do outro lado do balcão: um banqueiro vira Ministro da Economia, um diretor de plano de saúde vira Ministro da Saúde, o cara da Shell se torna diretor da Petrobrás, por aí vai. É a raposa cuidando do galinheiro. A forma de enfrentar isso é com mecanismos de controle social, transparência e uma profunda reforma política que mude as regras do jogo.

Mas essa não foi a única que faltou. Faltou enfrentar de fato a roubalheira dos bancos, que cobram o maior spread do mundo, 280% nos juros do cartão e ganham com a farra da dívida pública. Isso não existe em nenhum lugar. Faltou uma Reforma Tributária, para os ricos começarem a pagar a conta… Já conversei isso muitas vezes com o Lula e ele sempre diz: “Não dava pra aprovar no Congresso, não tinha maioria”, etc. Eu sei que não é num passe de mágicas, ninguém é ingênuo. Mas acredito que poderia ter tido um esforço político maior nesses pontos, ter convocado o povo pra pressionar. Ao optar por não fazer um enfrentamento mais forte, em nome da governabilidade, acabou alimentando certos setores e criando o ovo da serpente, que depois se traduziu no golpe de 2016.

Eu não estive no governo, o PSOL também não, mas acho que hoje é possível fazer um balanço mais maduro, reconhecendo os acertos e os limites do governo petista. Mas eu quero dizer também outra coisa: eu queria ver essa mesma cobrança de autocrítica para mais gente no Brasil.

De quem?
Quando é que o PSDB vai fazer autocrítica por não reconhecer o resultado em 2014 e jogar o país no caos institucional? Quando é que a mídia brasileira vai fazer autocrítica pelo apoio incondicional e militante à Lava Jato, depois de escancarados seus abusos? Quando é que setores ditos “democráticos” vão fazer autocrítica pelo apoio a Bolsonaro, que colocou o Brasil neste desastre? Tem muita gente precisando de autocrítica, não só a esquerda.

https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2019/11/12/entrevista-guilherme-boulos-lula-lava-jato-sergio-moro.htm

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