Antonio Martins – Na Bolívia, golpe de Estado. No Brasil, tentativa de encarcerar Lula de novo. Derrotados no Outubro Rebelde, protofascistas querem o troco. Mas rebeldia no Chile expõe seu ponto vulnerável: o rabo preso com a devastação neoliberal.
Última lição do dia: os homens, eles voltam sempre. É preciso estar sempre de olhos abertos… Na peça Os Saltimbancos, recriada por Chico Buarque, o aviso é dado pelo Jumento, personagem de fina inteligência. Os Bichos espantaram os Barões e têm, enfim, onde dormir. Mas ainda não podem descansar em paz, porque prepara-se a revanche. Na América Latina, um Outubro Rebelde abalou os governos neoliberais do Chile e do Equador, destronou Maurício Macri na Argentina e continua a sacudir o Haiti. Novembro, porém, começou em refrega. Na Bolívia, um golpe militar que estava em fermentação desde 23 de outubro derrubou ontem Evo Morales, seu vice, a presidente do Senado e o da Câmara. Gravações vazadas pelo jornal El Periodico (e reproduzidas no Brasil pela revista Fórum) indicam que em sua preparação participaram assessores de Jair Bolsonaro e senadores norte-americanos. Agora, o país está acéfalo, aterrorizado por milícias. Dois governadores, um ministro e a irmã do presidente tiveram suas casas queimadas. Meios de comunicação independentes foram atacados e tirados do ar. Num dos episódios, José Aramayo, diretor de rádio ligada à Confederação dos Trabalhadores Camponeses, foi amarrado a uma árvore. A Patricia Arce, prefeita de Vinto, na região de Cochabamba, rasparam os cabelos, pintaram o corpo de vermelho e fizeram caminhar sob insultos proferidos por homens.
Ao Brasil, cuja importância geopolítica é incomparável, a orientação foi dada pelo próprio Steve Bannon, principal ideólogo e articulador da onda protofascista. Inconformado com a libertação de Lula, ele propôs no sábado, em entrevista à BBC, que os partidários de Bolsonaro se aproveitem do fato para acirrar a polarização e “empurrar a agenda de reformas com um senso extra de urgência”. Contudo, advertiu que isso deveria ser apresentado não por meio da defesa explícita das propostas, mas como um movimento em favor do combate à corrupção e ao sistema político. Dito e feito. Ainda ontem (10/11), revela a Folha de S.Paulo, Bolsonaro alterou sua tática inicial diante de Lula – que era manter relativo silêncio. Decidiu encarregar Sérgio Moro de lançar campanha para que o Congresso restabeleça, por meio de Emenda Constitucional, a prisão dos réus, após condenação segunda instância.
No mesmo domingo, porém, vinha do Chile um sinal de sentido oposto. Incapaz de frear os protestos contra seu governo (houve nova manifestação gigante na sexta-feira), o presidente Sebastián Piñera sinalizava que aceitará a convocação de um “Congresso Constituinte”. Embora nenhuma informação adicional tenha sido dada, o ato expressa clara vitória de uma revolta popular reprimida com selvageria. Poderá significar forte pressão contra o projeto neoliberal, num país que era há pouco visto como sua “vitrine”.
A América Latina continua instável e, em certa medida, imprevisível. Até outubro, a região era marcada pelo avanço de uma onda conservadora em que se somam correntes ultracapitalistas e protofascistas. No mês passado, uma sucessão revoltas populares e resultados eleitorais – em especial o da Argentina – interrompeu a maré e criou uma situação de impasse. Agora, vem a ressaca. A região parece transformar-se num palco crucial para a disputa entre a ultradireita e os que buscam, diante da crise civilizatória, alternativas humanizadoras. O Brasil será certamente centro deste embate – em especial após as esperanças e ódios despertados pela libertação de Lula. Eis, com base nos fatos mais recentes, quatro hipóteses para examinar o novo cenário.
1. As ruas, e não as instituições, estão se tornando o palco central da disputa:
Atente à contradição. Na Bolívia, um dos governos mais comprometidos com mudanças estruturais na América do Sul caiu ontem, por ser incapaz de mobilizar as maiorias contra os bandos fascistas e a polícia, convertida em força pelo golpe. Mas no Chile, governado por um ultracapitalista, nem ele, nem os tanques do exército e o toque de recolher, nem a morte de 20 manifestantes pelo exército e os carabineros foram capazes de frear o ascenso de um movimento que contesta frontalmente o projeto neoliberal.
A América Latina parece viver um período raro, em que as ruas adquirem força política. Estão em disputa, em todo o mundo – atente também à Catalunha, à Argélia, ao Egito, ao Líbano, a Hong Kong. São voláteis. Como a velha ordem capitalista deixou de produzir estabilidade, radicalizam-se e perdem o medo. É arriscado confiar nas instituições para controlá-las. Um texto publicado por El País no domingo relata o importante trabalho político realizado junto aos comandantes do exército, ao longo de anos, por Evo Morales. Reunia-se com eles uma vez por semana. Participava constantemente de suas cerimônias. Estimulou-os a criar empresas militares. Julgava-se seguro. Mas seu apoio castrense esvaiu-se em dias, após uma combinação de pressões norte-americanas e protestos de rua. Os avanços sociais e econômicos da Bolívia, em 13 anos de Evo, são inegáveis. Mas não bastaram nem para refrear os preconceitos das elites contra o presidente indígena, nem para constituir, entre as maiorias, um movimento capaz de defendê-lo permanentemente. As causas precisam ser examinadas sem precipitação – mas a derrota, também nas ruas, é clara.
2. É preciso impedir que a ultradireita apresente-se como antissistema:
Do ponto de vista de seus interesses, Steve Bannon está coberto de razão, quando orienta a ultradireita brasileira a erguer as bandeiras da luta contra a corrupção e o establishment. Ele tenta, há anos, ocupar um vazio político real e muito potente – ao qual a esquerda demora a atentar. O sistema político está em crise, em todo o mundo. As maiorias sentem-se abandonadas por ele, pois a desigualdade tornou-se acintosa, as condições de vida das maiorias deterioram-se e a democracia, sequestrada pelo poder econômico, não oferece alternativas.
Descrita por Serge Halimi e Pierre Rimbert num texto essencial para compreender as novas condições da disputa política, a manipulação articulada por Bannon é notável. Ela permitiu, a dezenas de partidos de ultradireita em todo o mundo, muitos dos quais sequer existiam antes da crise de 2008, capturar o ressentimento decorrente destas frustrações. Para fazê-lo, desviam o foco. Jamais atacam a ditadura financeira, que produz a concentração brutal de riquezas e o esvaziamento da democracia. Voltam seu eleitorado suscetível contra uma suposta “elite” – composta pelos mais letrados; pelos que expressam etnias, culturas, religiões, sexualidades ou padrões morais não-hegemônicos; pelos que podem ser apontados como politicamente desviantes.
Mas esta manipulação só tem sido possível graças ao espaço aberto pela esquerda. Incapazes até o momento – em quase todos os países – de dialogar com o legítimo sentimento antissistema que cresce entre as multidões, os partidos progressistas travestem-se de defensores das instituições. Não percebem que já não se trata apenas de defender a velha democracia, mas de resgatá-la e reinventá-la. Fazem-no, muitas vezes, porque mergulharam tão profundamente no aparelho de Estado que são incapazes de enxergar uma política da mobilização social.
O resultado é trágico, como mostra todo o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. A situação é bastante distinta hoje, no Brasil. Mas não se deve desprezar o bolsonarismo – que criou uma importante legião de apoiadores, uma milícia digital eficiente para mantê-los mobilizados e um imaginário político primitivo e retrógrado que lhes serve de horizonte.
3. A força da ultradireita – sua aliança com o neoliberalismo – pode ser seu desastre
No Brasil, ao contrário do que ocorreu a partir de 2015, a luta contra a ultradireita pode tirar proveito de um enorme trunfo. O país é governado há mais de três anos por uma coalizão de forças golpistas e conservadoras. As condições de vida agravaram-se. Direitos sociais foram suprimidos e serviços públicos regrediram. Nenhuma das promessas de geração de mais ocupações cumpriu-se. E o governo acaba de apresentar três Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) que poderão tornar tudo ainda mais dramático. Os salários dos servidores poderão ser congelados ou mesmo reduzidos – diminuindo-se também as horas de atendimento aos usuários. Direitos sociais como licença-maternidade, auxílio-doença e outros estão sujeitos à interrupção. Fundos sociais – que financiam a Educação ou a Ciência e Tecnologia – serão extintos. Um em cada cinco municípios pode ser fechado.
O pacote deve-se à aliança com os neoliberais. Até agora, ela tem sido a fortaleza da ultradireita. Pode, porém, esvaziar seu discurso e levá-la ao desastre. Entre os benefícios de que estas duas forças se aproveitam, ao atuar em frente, está a blindagem mútua. Nenhum presidente que pratica atos ou faz declarações como as de Bolsonaro poderia manter-se à frente do governo, se não fosse o executor do programa que os ultracapitalistas querem impor ao país. E este projeto, por sua vez, seria irrealizável sem o apoio de um político capaz não apenas de vencer as eleições – mas de impor medidas antipopulares enquanto desvia a atenção da sociedade para temas menores.
Mas a vantagem desta aliança transforma-se num estorvo e num fator de crise quando seus objetivos reais aparecem sem máscara. Por que os apoiadores de Bolsonaro, atraídos pelo discurso em favor de “Saúde e Educação padrão FIFA”, precisam defender o corte drástico dos recursos para estas duas áreas? Aqui, o caso do Chile merece um exame especial. A mobilização que abalou Piñera foi possível porque houve, antes, campanhas intensas contra as políticas neoliberais. Surgiram, ao longo de mais de uma década, coalizões contra a entrega do abastecimento de água a transnacionais, o sistema privado de aposentadorias, a crise da Educação, o péssimo atendimento à Saúde, o altíssimo custo de vida. A alta dos preços das passagens de metrô foi apenas o estopim. Quando deu-se a explosão, o acúmulo de consciência e organização pré-existente tornou possível politizar a revolta rapidamente, formular um conjunto claro e conciso de reivindicações, torná-lo popular entre a sociedade.
No período intenso que promete se abrir no Brasil, o exemplo é inspirador. E a tramitação, no Congresso, do pacote de PECs de Bolsonaro e Paulo Guedes pode ser um momento de virada. Elas são tão abertamente antissociais, e seu fundamentalismo está tão em desacordo até mesmo com o pensamento mais pragmático de outros líderes de direita (no Reino Unido, Boris Johnson propõe o fim da “austeridade”; no próprio Chile, depois de pressionado, Piñera tentou calar os protestos com um “pacote social”) que valeria pensar na hipótese de um combate mais radical contra elas. Em vez de buscar emendá-las, como fez na votação da contrarreforma da Previdência, a oposição poderia pensar em rechaçá-las em bloco; e em propor um conjunto de medidas alternativas; e em abrir uma disputa de projeto contra projeto, para os serviços públicos do Estado brasileiro.
4. Em vez da nostalgia dos “bons tempos”, é preciso um novo programa
Ao analisar, no sábado, as consequências políticas da libertação de Lula, o filósofo Marcos Nobre chamou a atenção, entre outros, para dois pontos. Livre, o ex-presidente tirará, quase automaticamente, a esquerda e o PT de uma postura puramente defensiva. Para contrapor-se a Bolsonaro, já não poderá reclamar a liberdade – terá de apresentar ideias de país. Espera-se, completou Nobre, que, ao contrário do que ocorreu em 2018, estas ideias não sejam apenas a evocação aos “bons tempos dos governos petistas” – mas, principalmente, uma visão distinta sobre os desafios que o Brasil enfrenta agora. Uma visão semelhante tem sido sustentada com insistência em Outras Palavras. Não basta falar aos já convencidos da capacidade da esquerda; nem ocultar que o projeto adotado nos governos Lula e Dilma entrou em crise já em 2013 e não pode ser repetido.
Ao falar a milhares apoiadores em São Bernardo, no mesmo sábado, Lula colocou de fato a esquerda em outro patamar. Suas críticas a Paulo Guedes – muito mais que as feitas a Moro – indicam que enxerga a fragilidade central do governo Bolsonaro. Sua alusão a temas que angustiam as maiorias, mas são frequentemente ocultados do debate público (por exemplo, a captura da riqueza nacional pelo sistema financeiro; o drama das dezenas de milhões de endividados) mostra que a sensibilidade, uma de suas grandes virtudes, continua presente e afiada.
Lula parece disposto a partir, agora, para uma caravana pessoal pelo país, em grandes atos, cujo objetivo seria resistir e passar à ofensiva. A princípio, parece ótimo. Quebrar a ausência de oposição, que persiste há tanto tempo, é, mais que nunca, bem-vindo. Mas talvez também esteja presente, na iniciativa, o risco ao qual Nobre alude.
O protagonismo pessoal do ex-presidente é uma força extraordinária e pode ser ainda mais imprescindível em tempos muito difíceis. Não seria conveniente, por isso mesmo, que ele estivesse articulada com um esforço mais coletivo de superação do labirinto em que nos perdemos? Que pudesse atrair outros sujeitos e outros públicos, além dos que desejariam a volta dos governos de Lula? Por exemplo, os partidos que, à esquerda, têm projetos distintos dos do PT. Ou os movimentos que propõem novos paradigmas de desenvolvimento; ou julgam insuficientes as “reformas fracas” que o lulismo promoveu em seu período. Não será possível abrir, em mobilização e nas ruas, um novo processo de resistência e de construção de alternativas, que vá além da reivindicação do passado pré-2016?
Rebeliões. Golpes. Disputa acirrada pelas ruas. Imprevisibilidade. Numa América Latina em que as perspectivas pareciam tão estreitas, há apenas 40 dias, o futuro está de novo em aberto. Será um prazer acompanhar os fatos novos e deixar a condição de espectadores passivos de nossa tragédia.
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