Júlia Rocha – Há dois dias estou remoendo e tentando digerir a história de um holocausto. Pude ver, ouvir e sentir o cheiro de uma tragédia humana tão dramática, longa e intensa quanto pouco conhecida.
A causa deste impacto ainda pouco assimilado pelos meus sentidos e menos ainda pela minha razão foi a visita a um pequeno museu erguido no complexo hospitalar estadual em Barbacena, Minas Gerais. O Museu da Loucura.
Já passava das 9. Eu e meu companheiro tomávamos o fôlego que alguns amigos nos disseram para tomar antes de iniciar a visita. Não seria suficiente. O que viria ao nosso encontro era forte demais.
Barbacena já foi conhecida como a “cidade dos loucos”. Desde o início do século XX, instituições para tratamento de pessoas com sofrimento mental se instalaram na cidade. Com o passar dos anos, a cidade virou um verdadeiro depósito de indesejáveis. Qualquer desvio de uma suposta normalidade era motivo suficiente para que delegados, prefeitos, maridos, pais, filhos enviassem pessoas para os porões assustadores do hospital psiquiátrico de Barbacena. A unidade tinha sua própria estação ferroviária. Lá chegavam os “trens de doido” com vagões apinhados de gente de todo o canto.
Moças que engravidavam solteiras, mulheres “namoradeiras”, andarilhos, mendigos, usuários de álcool, homossexuais, epiléticos, esquizofrênicos, mulheres com depressão, mulheres cujos maridos queriam um pretexto para poderem se casar com outras mulheres, crianças agitadas, com déficits de aprendizagem, crianças autistas, crianças com deficiências físicas, crianças com sequelas neurológicas graves rejeitadas por suas famílias. Não havia qualquer critério médico para justificar as internações.
Como era de se esperar, em poucos anos, os pavilhões se tornaram amontoados de gente. Não havia qualquer proposta terapêutica que buscasse dar dignidade àquelas pessoas. Cada mulher e cada homem daquele lugar era massacrado em sua individualidade e humanidade.
Já na entrada da instituição, eram despidos de suas roupas, documentos, adornos, tinham seus cabelos cortados da mesma forma e passavam a vestir o azulão. Um uniforme azul que os impedia de tentar fugir. Os que ousavam eram identificados pela roupa e logo levados de volta.
As condições eram tão desumanas e a descrença em uma melhora do estado dos pacientes era tamanha que a instituição chegou a ter o seu próprio cemitério. A mortalidade era tão alta que funcionários chegavam a passar turnos de 24 horas a contar quase duas dezenas de mortos. Não havia estrutura física que suportasse a superlotação. A unidade chegou a comportar mais de cinco mil pacientes, em locais que não suportariam dignamente nem mil.
Camas eram retiradas e substituídas por capim para otimizar o espaço dos pavilhões. No rigoroso inverno de Barbacena, era comum que muitos morressem de frio. Estupros eram uma realidade e mulheres se habituaram a passar suas próprias fezes no corpo na tentativa de desestimular os agressores que tanto podiam ser pacientes como funcionários. As que engravidavam eram separadas de seus filhos de forma precoce e as crianças eram entregues a orfanatos ou adotadas sem respeito a nenhum trâmite burocrático.
A nudez era comum. Fosse pela falta de roupa, pela falta de higiene das peças, ou pelas condições psíquicas de algumas pessoas. Registros da época mostram as imagens de completo abandono. Centenas e centenas de pessoas deitadas nos pátios, impregnadas pelo uso inadequado de medicações psiquiátricas que eram distribuídas sem qualquer critério por funcionários da limpeza, da segurança, da administração.
Muitos pacientes foram utilizados como mão de obra escrava por prefeituras ou por funcionários que os levavam para obras particulares em suas próprias casas.
A eletroconvulsoterapia, o popular choque elétrico, procedimento que deveria ser realizado exclusivamente por médicos e sob sedação, era realizado por um número enorme de funcionários sem qualquer preparo para fazê-lo, em pacientes que não receberam qualquer tipo de anestesia, na presença de outros pacientes, inclusive como forma de punição e tortura.
O ato final desta existência desumana era a venda de seus corpos à faculdades de medicina do país inteiro. Um negócio genuinamente fascista. A perversidade se dissipava em todo o processo. O marido que enviou a esposa com depressão pós-parto, separando-a do filho de apenas dois meses de vida, não se sentia o assassino nem o vendedor de seu corpo. Pelo contrário, recebia a chancela do pai zeloso, cumpridor dos seus deveres. Ele só havia enviado a mãe de seu filho para ser cuidada por médicos e freiras. Ou seja, o melhor da ciência e da religião. Por outro lado, os profissionais ali envolvidos não se sentiam explorando aquelas pessoas. Estavam promovendo uma espécie de terapia. Afinal, sair um pouco dos pavilhões e trabalhar o dia todo fazendo a rede de esgoto da cidade sem remuneração era uma forma de se distrair.
Algumas freiras eram responsáveis por atrocidades igualmente escabrosas. Desde a separação de mães e seus bebês recém-nascidos às ameaças e condenações sumárias a sessões de tortura com choques elétricos.
As fotos na parede revelavam a cor daqueles corpos. Eram homens e mulheres negros e pobres, em sua maioria. O racismo se mostrava em uma de suas faces mais cruéis.
Foi somente no final da década de 70, após mais de 4 décadas de atrocidades, que a realidade sobre o Hospital Psiquiátrico de Barbacena começou a ser conhecida. Com a luta antimanicomial que se seguiu por inúmeros locais do país, instituições como estas foram fechadas e os pacientes foram avaliados e reinseridos conforme a possibilidade individual em suas famílias, na sociedade ou em comunidades construídas especialmente para este fim.
Este foi o resultado de uma luta incansável da sociedade civil pelo respeito aos direitos destes pacientes. Saí desta visita revirada. Foram tantas as sensações que o corpo sentiu o impacto.
Médicos psiquiatras que ousaram questionar o que viram acontecer nos pavilhões foram criticados e receberam ameaças de punição por parte de seus conselhos de classe. Funcionários que buscavam levar o mínimo de humanização para os atendimentos dentro da unidade eram punidos. Familiares que questionavam a conduta dos maus profissionais eram desencorajados.
Jesse Souza, um sociólogo que leio e admiro, sempre me lembra que a opressão não se finda. Ela muda de roupa, torna-se mais sofisticada para continuar existindo. Foi com esta reflexão que saí de Barbacena e por ela me sinto torturada até agora. Onde estamos entulhando nossos indesejáveis? Aqueles corpos adoecidos pelas desigualdades sociais, pela falta de acesso a tratamentos de saúde decentes, pela falta de comida, pela falta de assistência ao pré-natal, ao parto, pelo desestímulo ao aleitamento e a uma alimentação saudável, pela sujeição a uma rotina de trabalho adoecedora e uma renda familiar que os priva de direitos e confortos mínimos?
Onde estão nossos indesejados? Nos orfanatos, nos presídios, nas comunidades mais violentas e vulneráveis, nos lixões? Como estamos encontrando justificativas supostamente racionais, científicas e éticas que aplaquem nossa consciência para assim mantermos nossos privilégios sobre eles?
Uma resposta eu já tenho. A cor da pele dos nossos indesejados segue sendo a mesma.
https://juliarocha.blogosfera.uol.com.br/2019/11/01/o-porao-do-mundo-a-inacreditavel-historia-de-uma-fabrica-de-corpos-humanos/
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