João Vitor Santos – O “Velho Cap”, como diz Luiz Gonzaga Belluzzo, ainda se mostra potente, capaz de recuperar sua natureza inquieta e criativa para chamar a si um protagonismo no mundo de hoje.
A plasticidade do capitalismo permite que ele assuma o espírito do tempo e, com isso, vá se transmutando e se tornando senhor do tempo e do espaço. “O velho capitalismo reconciliou-se com sua natureza inquieta e criativa. Tão inquieta e criativa que rapidamente transmutou a concorrência perfeita em concorrência monopolista”, observa o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. Se antes o capitalismo era ruim, ao menos gerava recursos para o Estado, podendo se pensar um Estado de bem-estar a partir de suas bases. No entanto, agora se faz ainda mais perverso pela perspectiva individualista que assume. “Livre, leve e solto em seu peculiar dinamismo, amparado em suas engrenagens tecnológicas e financeiras, o ‘Velho Cap’ promoveu e promove a aceleração do tempo e o encolhimento do espaço. Esses fenômenos gêmeos podem ser observados na globalização, na financeirização e nos processos de produção da indústria 4.0”, acrescenta.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Belluzzo analisa essa “ nova fase da digitalização da manufatura”, que, na visão dele, “é conduzida pelo aumento do volume de dados, ampliação do poder computacional e conectividade, a emergência de capacidades analíticas aplicada aos negócios, novas formas de interação entre homem e máquina, e melhorias na transferência de instruções digitais para o mundo físico, como a robótica avançada e impressoras 3D”.
Na sua perspectiva, ter consciência dessa potência do capital pode ser um primeiro passo para a tomada de consciência da necessidade de transformação, de concepção de outros paradigmas. “É preciso intensificar o esforço no trabalho na busca do improvável equilíbrio entre a incessante multiplicação das necessidades e os meios necessários para satisfazê-las, buscar novas emoções, cultivar a angústia porque é impossível ganhar a paz”, sugere. E por isso passa, até mesmo, a concepção de outras matrizes de pensamento econômico, pois, como observa, “os fâmulos da ciência econômica se entregam à farsa pseudocientífica dos modelos engalanados por matemática de segunda classe”, resignando a ciência econômica a uma racionalidade que a engessa e concebe um único caminho.
Luiz Gonzaga Belluzzo é graduado em Direito pela Universidade de São Paulo – USP, mestre em Economia Industrial pelo Instituto Latino-Americano e Caribenho de Planejamento Econômico e Social – Ilpes/Cepal e doutor em Economia pela Universidade de Campinas – Unicamp. Foi secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda. É um dos fundadores da Faculdades de Campinas – Facamp, onde é professor. Publicou recentemente Manda quem pode, obedece quem tem prejuízo (São Paulo: Facamp-Editora Contracorrente, 2017). Também é autor de Capital e suas metamorfoses (São Paulo: Unesp, 2013), Os antecedentes da tormenta: origens da crise global (Campinas: Facamp, 2009), Temporalidade da Riqueza – Teoria da Dinâmica e Financeirização do Capitalismo (Campinas: Oficinas Gráficas da Unicamp, 2000), entre outras obras.
Confira a entrevista um trecho da entrevista. A versão completa será publicada em Cadernos IHU ideias.
IHU On-Line – Vivemos o ápice de um liberalismo econômico no Brasil e no mundo? E quais os riscos dessa perspectiva econômica que põe o financeiro no centro da vida?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Na assim chamada Era Dourada – entre o fim da Segunda Guerra e o início dos anos de 1970 do século passado – conviveram em harmonia o crescimento rápido, a baixa inflação, reduzidas taxas de desemprego, aumento dos salários reais e integração das massas aos padrões modernos de consumo e de convivência. Na década dos 1970, o jogo virou. Entrou em campo a funesta combinação entre inflação e baixo crescimento. O bloco ideológico que se opunha às políticas “intervencionistas” e ao Estado do Bem-Estar tratou de atribuir o desarranjo à decrepitude das políticas e das práticas que buscavam controlar a instabilidade do capitalismo e impedir que o destino dos cidadãos ficasse à mercê das incertezas do mercado. Depois de 30 anos de desempenho brilhante, as economias capitalistas emitiam sinais de fadiga estrutural. A Golden Age agonizava.
No limiar dos anos 1980, a eleição de Thatcher e Reagan refletiu o desconforto das classes abastadas e médias com a estagflação. As cargas tributárias elevadas, o excesso de regulamentação e o poder dos sindicatos eram, sem dúvida, os responsáveis pelo mau desempenho das economias.
A famosa curva de Laffer garantia que a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança, o que comprometia o investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e a renda dos mais pobres. As práticas neocorporativistas, diziam os ideólogos do neoliberalismo, criavam sérias deformações “microeconômicas”, ao promover, deliberadamente, intervenções no sistema de preços – nas taxas de câmbio, nos juros e nas tarifas. Com o objetivo de induzir a expansão de setores escolhidos ou de proteger segmentos empresariais ameaçados pela concorrência, os governos distorciam o sistema de preços e, assim, bloqueavam os mercados em sua nobre e insubstituível função de produzir informações para os agentes econômicos. Tal violação das regras de ouro dos mercados competitivos culminava na disseminação da ineficiência e na multiplicação dos grupos “predadores de renda”, que se encastelavam nos espaços criados pela prodigalidade financeira do Estado.
Ainda nos anos de 1950, tempo de esplendor e glória das políticas keynesianas e do Estado do Bem-Estar, o libertarianismo de Friedrich Hayek e o monetarismo de Milton Friedman formaram a comissão de frente da ofensiva contra “os inimigos da liberdade econômica”. Para Hayek, o mercado é um processo de troca e de acumulação de informações e não um ambiente estático dotado de forças que o reconduzem ao equilíbrio. As intervenções do Estado são nefastas, pois só o processo de mercado torna possível a inovação nos métodos de produção e de organização, a partir do continuado fluxo de informações que surge da interação entre os indivíduos livres.
O importante nesta concepção é a ênfase na capacidade do mercado, livre de empecilhos, de mobilizar e fluidificar os recursos individuais. O corpo de propostas “reformistas” rotuladas de neoliberais está, portanto, comprometido com a ideia de que é preciso liberar as forças criativas do mercado. A renovação do capitalismo, em gestação desde o crepúsculo da era keynesiana, tinha o propósito de abrir caminho para a preeminência das relações entre indivíduos livres, dispostos aos objetivos do ganho monetário. Essa é a sociedade dos neoliberais.
Estado muda de agenda
Mas, na verdade, as reformas liberalizantes, empreendidas desde o crepúsculo dos anos 70 do século passado, trataram de mobilizar os recursos políticos e financeiros dos Estados Nacionais para fortalecer os respectivos sistemas empresariais envolvidos na concorrência global. O Estado não saiu da cena, apenas mudou de agenda. Em sua obra maior, Civilização Material e Capitalismo , o historiador Fernand Braudel escreveu: “o erro mais grave (dos economistas ) é sustentar que o capitalismo é um sistema econômico… Não devemos nos enganar, o Estado e o Capital são companheiros inseparáveis, ontem como hoje.”
Na esteira do apoio decisivo do Estado, as corporações globais passaram a adotar padrões de governança agressivamente competitivos. Entre outros procedimentos, as empresas subordinaram seu desempenho econômico à “criação de valor” na esfera financeira, repercutindo a ampliação dos poderes dos acionistas. Aliados aos administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitaram um individualismo agressivo e exigiram surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.
Mutações nos padrões organizacionais
As estratégias de localização da corporação globalizada introduziram importantes mutações nos padrões organizacionais: constituição de empresas-rede, com centralização das funções de decisão e de inovação e terceirização das operações comerciais, industriais e de serviços em geral. A individualização das relações trabalhistas promoveu a intensificação do ritmo de trabalho, conforme estudo recente da OIT e de outras instituições que lidam com o assunto. O trabalho se intensificou, sobretudo, entre os que se tornaram independentes das relações formais, os que negociam diariamente a venda de sua capacidade de trabalho nos mercados livres.
Isso aconteceu no mesmo período em que as novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações em suas relações com os empregados e terceirizados. As fusões e aquisições suscitaram um maior controle dos mercados e promoveram campanhas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistiram com a tendência ao monopólio e, assim, impediram que os cidadãos, no exercício da política democrática, exercitassem o direito de decidir sobre a própria vida.
Os neorreformistas, na realidade, cuidaram de transferir os riscos para os indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que buscaram o Estado e sua força coletiva para limitar as perdas provocadas pelos episódios de desvalorização da riqueza. A intensificação da concorrência entre as empresas no espaço global não só acelerou o processo de financeirização e concentração da riqueza e da renda como submeteu os cidadãos às angústias da insegurança.
Na era do capitalismo “turbinado” e financeirizado, os frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para os demais, perduram a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.
IHU On-Line – Como conceber uma outra economia, descentrada do mundo do mercado financeiro e que leve em conta as necessidades humanas e a preservação do planeta?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Para começo de conversa, digo que as questões suscitadas nas origens da vida moderna ainda não obtiveram resposta. Nos tempos de prosperidade, elas hibernam e ai dos que ousam despertá-las. Mas no fragor das crises elas voltam a assombrar o mundo dos vivos. Nesses tempos, a incômoda pergunta não quer calar: em que momento homens e mulheres – sob o manto da liberdade e de igualdade – vão desfrutar da abundância e dos confortos que o capitalismo oferece em seu desatinado desenvolvimento?
O capitalismo da grande indústria, da finança e da construção do espaço global, entre crises e recuperações, exercitou os poderes de transformar e dominar a natureza – até mesmo de reinventá-la – suscitando desejos, ambições e esperanças. A versão panglossiana desses prodígios nos ensina que a admirável inclinação para revolucionar as forças produtivas há de aproximar homens e mulheres do momento em que as penas do trabalho subjugado pelo mando de outrem seriam substituídas pelas delícias e liberdades do ócio com dignidade.
Para muitos, estaria prestes a se realizar a utopia de trabalhar menos para viver mais. Os avanços da microeletrônica, da informática, da automação dos processos industriais já permitem vislumbrar, dizem os otimistas, a libertação das fadigas que padecemos em nome de uma ética do trabalho que só engorda os cabedais dos que nos dominam. Alguns cidadãos já podem trabalhar em casa, longe dos constrangimentos da hierarquia da grande empresa e assim escolher à vontade entre o tempo livre e as fadigas do labor.
Esses enredos foram contados nos bons tempos da globalização e das bolhas financeiras e de consumo: a economia da inovação e da inteligência estaria prestes a substituir a economia da fábrica, dos ruídos atormentadores e dos gases tóxicos. As transformações tecnológicas e suas consequências sociais ensejariam a proeza de realizar o projeto da autonomia do indivíduo, aquele inscrito nos pórticos da modernidade. A autonomia do indivíduo significa a sua autorrealização dentro das regras das liberdades republicanas e do respeito ao outro. O projeto da autonomia do sujeito é uma crítica permanente e inescapável da submissão aos poderes – públicos e privados – que o cidadão não controla. Até mesmo os críticos mais impiedosos reconhecem que a economia capitalista engendrou formas de sociabilidade que descortinaram a possibilidade de libertar a vida humana e suas necessidades das limitações impostas pela natureza e pela submissão pessoal. A indústria moderna, essa formidável máquina de eliminação da escassez, oferece aos homens e mulheres a “realidade possível” da satisfação dos carecimentos e da libertação de todas as opressões pelo outro.
Da realização pessoal a estruturas técnico-econômicas
Mas qual é a realidade que se esconde sob os pretextos dessa fantasia? Na marcha de sua realidade real, o capitalismo incitou os anseios de realização pessoal, mas também fez emergir estruturas técnico-econômicas e formas de dependência que agem sobre o destino dos protagonistas da vida social como forças naturais que frequentemente destroem a natureza, colocando em sério risco a sobrevivência humana.
Em Eros e Civilização , Marcuse falou da mútua e estranha fecundação entre liberdade e dominação na sociedade contemporânea. Para ele, a produção e o consumo reproduzem e justificam a dominação. Mas isso não altera o fato de que seus benefícios são reais: amplia as perspectivas da cultura material, facilita a obtenção das necessidades da vida, torna o conforto e o luxo mais baratos, atrai áreas cada vez mais vastas para a órbita da indústria. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo paga com o sacrifício de seu tempo, de sua consciência e de seus sonhos nunca realizados. A concorrência generalizada se impõe aos indivíduos como uma força externa, irresistível. Por isso é preciso intensificar o esforço no trabalho na busca do improvável equilíbrio entre a incessante multiplicação das necessidades e os meios necessários para satisfazê-las, buscar novas emoções, cultivar a angústia porque é impossível ganhar a paz.
IHU On-Line – Que perspectivas e vertentes teóricas podem nos inspirar a pensar uma outra economia?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Na Inglaterra, Jeremy Corbyn ganhou a liderança do Partido Trabalhista. Em sua campanha, ele ofereceu ao partido um programa econômico que causou urticária não somente nos conservadores, mas também na turma do Novo Trabalhismo de Tony Blair .
Corbyn criticou duramente a austeridade expansionista: “A Inglaterra clama por um programa de investimento público em novas moradias, ferrovias, energia e infraestrutura digital e, por isso, sugerimos os meios para que isso aconteça. Uma das opções, conhecida como a Facilitação Quantitativa do Povo, foi prontamente acolhida por Sir Robert Skidelsky , Ann Pettifor e outros renomados economistas”. O programa foi apoiado por 41 economistas de prestígio, entre eles o ex-membro do Comitê de Política Monetária do Banco da Inglaterra, David Blanchflower , além de Mariana Mazzucato , Steve Keen e Victoria Chick .
Os economistas assinaram um manifesto em defesa do programa, acusado pela mídia de extremista de esquerda. Retrucam os signatários: “A despeito do fogo de barragem disparado pela cobertura da mídia, extremistas são as políticas e objetivos da política econômica atual. Já falhou no último mandato a tentativa de produzir um reequilíbrio orçamentário mediante cortes nos gastos. É injustificável o aumento da pobreza infantil e a redução do apoio aos mais vulneráveis. Cortar o investimento público em nome da prudência é errado porque afeta negativamente o crescimento, a inovação e o aumento da produtividade, além de elevar a dívida do governo, por causa da queda das receitas fiscais”.
Corbyn defende duas medidas azedas para o paladar conservador:
1. A reestatização das empresas de utilidade pública e das ferrovias privatizadas nos governos conservadores de Thatcher & Cia. e nas administrações do Novo Trabalhismo de Tony Blair.
2. A criação de um banco nacional de desenvolvimento incumbido de financiar a reconstrução da infraestrutura degradada e apoiar a reindustrialização da Velha Albion, hoje um pigmeu manufatureiro.
Estado do Bem-Estar britânico
Corbyn não esconde: seu programa econômico é descendente da experiência trabalhista do pós-Guerra. Na primeira eleição realizada depois de 1945, o conservador Winston Churchill foi derrotado pelo trabalhista Clement Attlee . Acompanhado por Aneurin Bevan , seu ministro da Saúde, pai do National Health Service , Attlee desenhou a arquitetura do Estado do Bem-Estar britânico, inspirado no relatório preparado pelo liberal William Beveridge e por John Maynard Keynes , também liberal.
Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, pelo racionamento e pela debilidade econômica, o liberal Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório, fincou as estacas que iriam sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar. O Relatório Beveridge recebeu a colaboração das concepções da Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda – obra magna do liberal, porém iconoclasta, John Maynard Keynes.
O liberal Beveridge apontou os “Demônios gigantes da vida moderna” que os governos estavam obrigados a enfrentar: carência, doença, ignorância, miséria e inatividade. Em seu Relatório, Beveridge proclamou que a ignorância é uma erva daninha que os ditadores cultivam entre seus seguidores, mas que a democracia não pode tolerar entre seus cidadãos.
Socialização do investimento
As políticas econômicas da Teoria Geral estão ancoradas profundamente nas convicções de Keynes a respeito da instabilidade intrínseca do capitalismo. Maynard chamou de “oportunistas e danosas” as políticas fiscais e monetárias de curto prazo, “formas grosseiras” de enfrentar as flutuações do investimento e seus efeitos sobre a renda e o emprego.
Keynes advogou a “socialização do investimento”, entendida como a coordenação pelo Estado das relações entre o investimento público e privado. Ela envolve não somente a definição de um “orçamento de capital” de longo prazo, mas a ação das empresas semipúblicas. Tanto o orçamento de capital quanto as empresas deveriam ser administradas e avaliadas por comitês público-privados.
As políticas de longo prazo preconizadas por Keynes jamais foram executadas, sequer compreendidas por quem se autoproclama keynesiano. Não vale a pena comentar os que se julgam antikeynesianos.
IHU On-Line – O papa Francisco tem insistido na necessidade de se conceber “uma economia que não mate” e, agora, chama economistas para juntos pensarem em alternativas. Como o senhor compreende esse desafio proposto? Como compreender as questões de fundo por trás dessas assertivas de Bergoglio?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Em 2015, durante uma audiência no Vaticano, o papa Francisco disse que “o dinheiro é esterco do diabo”, acrescentando que, quando o capital se torna um ídolo, ele “comanda as escolhas do homem”. O documento Oeconomicae et pecuniariae quaestiones elaborado pela Congregação para a Doutrina da Fé , contém «considerações para um discernimento ético acerca de alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro». Aprovado pelo papa Francisco, que ordenou a sua publicação, o documento foi apresentado na Sala de Imprensa pelo arcebispo Luis Francisco Ladaria Ferrer e pelo cardeal Peter Kodwo Appiah Turkson .
Já na introdução, o texto revela seu propósito de avaliar a supremacia dos mercados financeiros e suas consequências sobre a vida de homens e mulheres que habitam o mundo dos vivos. “A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real. Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta, porém, uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui dos seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes. Está em jogo o autêntico bem-estar da maior parte dos homens e das mulheres do nosso planeta, os quais correm o risco de serem confinados de maneira crescente sempre mais às margens, se não de serem «excluídos e descartados» do progresso… se queremos o bem real para os homens, o dinheiro deve servir e não governar!”
Destruição de realidades
A nova economia comandada pela finança excita as esperanças e destrói as realidades. As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das corporações internacionalizadas sobre grandes massas de trabalhadores, permitindo a “arbitragem” entre as regiões e nivelando por baixo a taxa de salários. As fusões e aquisições acompanharam o deslocamento das empresas que operam em múltiplos mercados. Esse movimento não só garantiu um maior controle dos mercados, mas também ampliou o fosso entre o desempenho dos sistemas empresariais “globalizados” e as economias territoriais submetidas a regras jurídico-políticas do Estados Nacionais. A abertura dos mercados e o acirramento da concorrência coexistem com a tendência ao monopólio e debilitam a força dos sindicatos e dos trabalhadores “autônomos”, fazendo periclitar a sobrevivência dos direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência.
A liberalização da finança e a dominância do rentismo também produziram efeitos negativos nas finanças públicas. Primeiro, estimularam a multiplicação dos paraísos fiscais. A fuga sistemática das obrigações fiscais foi acompanhada da crescente regressividade dos sistemas de tributação. A predominância dos impostos indiretos conferiu maior sensibilidade das receitas fiscais às flutuações da economia. Os sistemas fiscais tornaram-se desagradavelmente pró-cíclicos: quando a economia desacelera, os pobres aprisionados em seus territórios consomem pouco e pagam menos impostos. Enquanto isso, os enriquecidos globalizados aceleram as remessas para os paraísos fiscais.
Revolução tecnológica e financeirização
No livro Phenomenology of The End , Franco Bifo Berardi cuida das relações entre a novíssima revolução tecnológica e financeirização: “Em suas etapas mais recentes, a produção capitalista reduziu a importância da transformação física da matéria e a manufatura física de bens industriais, ao propiciar a acumulação de capital mediante a combinação entre as tecnologias de informação e a manipulação das abstrações da riqueza financeira. A informática e a manipulação da abstração financeira na esfera da produção capitalista tornam a visibilidade física dos valores de uso (bens materiais) apenas uma introdução na sagrada esfera abstrata do valor de troca”.
Cristianismo
Em 2013, o papa Francisco ofereceu aos católicos e cristãos a Primeira Exortação Apostólica Evangelii Gaudium . Assim como as encíclicas Rerum Novarum de Leão XIII , Mater et Magistra e Pacem in Terris de João XXIII , a exortação apostólica de Francisco abordava as vicissitudes e alegrias da vida cristã no mundo contemporâneo.
Os olhares do nosso tempo perderam de vista a ideia de comunidade cristã, expressão tantas vezes repetida no texto do Papa e incrustrada nas origens do cristianismo. Jacques Le Goff diz com razão que no cristianismo primitivo e no judaísmo a eternidade não irrompia no tempo (abstrato) para “vencê-lo”. A eternidade não é a “ausência do tempo”, mas a dilatação do tempo ao infinito.
Depois da encarnação, o tempo adquire uma dimensão histórica. Cristo trouxe a certeza da eventualidade da salvação, mas cabe à história coletiva e individual realizar essa possibilidade oferecida aos homens pelo sacrifício da cruz e pela ressurreição. “Não nos é pedido que sejamos imaculados, mas que não cessemos de melhorar, vivamos o desejo profundo de progredir no caminho do Evangelho, e não deixemos cair os braços”.
O cristianismo – o mistério libertador da Encarnação – foi um divisor de águas na história da humanidade, um movimento revolucionário, nascido das crueldades e das sabedorias do mundo greco-romano. Em uma entrevista sobre seu filme Satyricon , Fellini desvelou a alma que se escondia no rosto de seus personagens no crepúsculo do império romano. As máscaras se debatiam entre o tédio das concupiscências e as angústias da desesperança. Para o grande Federico, o filme escancarava “a nostalgia do Cristo que ainda não havia chegado”.
Tal como nos personagens do Satyricon, percebo nos católicos de hoje a nostalgia do Cristo que não voltou. Mas, creia-me o leitor, ele já esteve entre nós encarnado na simplicidade e na sabedoria camponesa de João XXIII e parece ter retornado no reformismo de Francisco.
http://www.ihuonline.unisinos.br/artigo/7585-o-velho-capitalismo-e-seu-folego-para-dominacao-do-tempo-e-do-espaco
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