ALEXANDRE PUTTI – Ao contrário do senso comum, educação sexual vai além de falar sobre sexo: previne abusos sexuais, doenças e até mesmo gravidez
Mari Rosa, de 34 anos, é mãe de Alice, de nove. Ambas moram juntas na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Mari é mãe solo e decidiu que a melhor maneira de educar sua filha seria falando abertamente com ela sobre
sexualidade.
Assim que Alice veio ao mundo, Mari começou a pesquisar maneiras de como falar sobre o assunto com sua filha para poder protegê-la de um trauma que a fotografa passou ainda na infância: ser abusada sexualmente. Aos oito anos, ainda em Jaboticabal, cidade onde nasceu no interior de São Paulo, Mari foi abusada por um tio próximo da família e sofreu muito com isso, chegando a se culpar pelo ato criminoso.
“Eu vim de uma família católica tradicional, cresci com pais amorosos e preocupados. Sempre foram presentes e extremamente cuidadosos, mas não se falava de sexo em casa, e uma criança de oito anos não sabe exatamente o que está acontecendo, muito menos como se proteger sem informação. A verdade é que éramos todos punidos moralmente e eu me sentia culpada, por isso não contei para meus pais o que aconteceu”, disse a fotógrafa.
Agora, a ideia da moradora do interior de São Paulo é fazer com que sua filha se empodere e tenha consciência do seu corpo para não passar pela mesma situação. Mari explica que, na sua visão, educação sexual é falar sobre amor e limites e não só sobre sexo. “Pra mim foi muito importante quebrar a vergonha em falar sobre o assunto para conseguir me empoderar. Quero ensinar minha filha que o verdadeiro valor de uma mulher está em ela ser dona de si”, explicou.
Nesse processo, a fotógrafa contou com ajuda de vídeos e livros que tratam do assunto com uma linguagem mais acessível para crianças. Assim ela consegue falar sobre o tema com Alice de uma forma mais natural e esclarecedora. Uma das obras utilizada por Mari foi “Pipo e Fifi”, um livro que busca ajudar pais, professores e amigos a abordarem o problema da violência sexual contra crianças utilizando uma narrativa ilustrada.
O livro foi escrito pela pedagoga e especialista em educação sexual, Caroline Arcari. Após um trabalho de seis anos, a moradora da cidade de Rio Verde, interior de Goiás, escreveu a obra com a intenção de trazer crianças e adolescentes para o debate sobre seus corpos, transformando-os em sujeitos da sua própria aprendizagem.
“O senso comum acredita que educação sexual se resume a falar sobre camisinha e sexo. É muito mais abrangente que isso. A criança precisa entender seu corpo para se apropriar dele, desenvolver o autoconhecimento, aprimorar a autoestima e se prevenir de possíveis abusos”, conta a escritora.
Quando especialistas defendem que a educação sexual previne abusos, estão se referindo à importância da criança entender quais são os limites de qualquer pessoa sobre seu corpo e, com isso, aprender a dizer não. Caroline explica que, como o abusador costuma ser conhecido, ele se aproxima da criança de uma forma sutil e exerce toques que parecem atenção e afeto.
“É importante saber que a prevenção da violência sexual começa desde cedo. Dentro de casa, com uma criança de um ano e meio, por exemplo, já é possível começar o trabalho. Durante o banho os pais devem falar para a criança o nome das partes do corpo. Deixar claro quem esta autorizada a dar banho nela. Que só os pais e a professora podem tocá-la. Que um médico só pode examiná-la se tiver um adulto próximo. Durante a troca de fraldas e de roupas também ir adicionando mais informações e isso já é um início da educação sexual”, explica Caroline.
Apesar da resistência de alguns pais em tratar do assunto com seus filhos, e até mesmo do tema ser abordado dentro das escolas, Caroline conta que a aceitação ao seu livro foi muito alta, inclusive entre pessoas conservadoras.
Alguns, no entanto, ainda se posicionam contra esse tipo de educação, caso do presidente Jair Bolsonaro. Em 2018, o então candidato à Presidência da República chegou a dizer que educação sexual deveria ser feita apenas pelo “papai e mamãe” e defendeu que este tema não deveria ser debatido nas escolas.
Em março deste ano, durante uma transmissão ao vivo em seu Facebook, Bolsonaro chegou a sugerir que os pais rasgassem as páginas sobre educação sexual de Caderneta de Saúde da Adolescente. Livros como o escrito por Caroline, por exemplo, o presidente já deixou claro que não serão adotados pelo MEC.
O que talvez Bolsonaro não saiba é que, segundo dados do próprio Governo Federal, 70% dos casos de abuso sexual registrados são cometidos por algum integrante da família. Se a educação sexual for ensinada apenas pelos pais, são grandes as chances do abuso ser naturalizado pela criança. “É tarefa, sim, da escola desenvolver educação sexual. Só assim protegeremos as crianças”, defende Caroline.
Educação sexual nas escolas
A defesa de que a educação sexual deve ser responsabilidade também das escolas é feita por muitos especialistas da área, incluindo a psicanalista e doutora em Psicologia e Educação pela Faculdade de Educação da USP, Ilana Katz.
“Dizer que não se fala sobre sexualidade nas escolas é o mesmo que dizer que não se ensina cuidado e proteção do corpo para crianças. Educação sexual não é ensinar sexo. É falar sobre o corpo, e a partir de determinada idade falar também sobre sexo. É importante também entender que falar sobre sexo é muito diferente de ensinar a fazer sexo”, esclarece Ilana.
Ilana ainda lembra que, com a internet, a criança e o adolescente podem ter acesso a toda essa informação, mas sem filtro, sem alguém para ajudá-los a pensar, principalmente sobre abusos, gravidez precoce e doenças sexualmente transmissíveis.
“As crianças têm relação com seu corpo desde muito cedo. Isso faz parte da construção humana. Uma criança que está informada sobre a noção de privacidade e de cuidado tem mais recursos para limitar o acesso de outro ao corpo dela”, explica.
E como fazer isso da melhor maneira? A psicóloga esclarece que escutar as crianças e responder as suas perguntas de forma clara é a melhor maneira de iniciar esse trabalho. “O que os pais precisam dizer para o filho não é a informação sobre o funcionamento anatômico na precisão da ciência médica, muitas vezes nem é essa a pergunta, mas também não precisam criar fantasias, os pais podem falar com seus filhos usando seus termos e o seu conhecimento”, conta.
Dessa forma, criar histórias fantasiosas, como a da cegonha que traz bebês, não é a postura ideal. “Isso pode acabar confundindo a criança na construção da sua sexualidade. A responsabilidade da família é falar pros filhos sobre o corpo e seu funcionamento a partir do que vivem e do que acreditam. Se os pais têm dificuldades, eles também podem pedir ajuda. Educação sexual inclui as famílias”, enfatiza a psicóloga.
Como falar sobre sexualidade com meu filho?
De acordo com as especialistas ouvidas pela reportagem, ter uma conversa clara, sem termos técnicos nem teorias fantasiosas, é a melhor maneira de se falar sobre sexualidade com as crianças e os adolescentes.
Para a psicóloga e sexóloga Carina Tomaz, do Rio de Janeiro, existe uma maneira diferente de abordar o assunto em cada faixa etária. “Com uma criança você não fala sobre o ato sexual, mas vai introduzindo o assunto, falando sobre cuidado com o corpo, higiene, como respeitar o corpo do amiguinho, limites e consentimento”, explica.
Carina também lembra outra boa maneira de iniciar esse tema com crianças: brinquedos. “”Os pais, sem perceberem, já educam sexualmente seus filhos. Ao falarem que bonecas namoram bonecos estão inserindo conceitos normativos de relacionamento, bem como quando explicam as diferenças corporais entre meninos e meninas, estão abordando questões de gênero”.
Aos adolescentes resulta em uma prática sexual mais responsável com menos danos como a gravidez precoce, ISTs, HIV/AIDS e o estupro. “Os país precisam conquistar a confiança de seus filhos”, ressalta Carina.
A sexóloga defende que, além da família e da escola, o Estado também deve garantir que a educação sexual seja realizada com crianças e adolescentes. Para ela, políticas públicas devem ser criadas para tratar sobre o tema. “Informar, facilitar o acesso a prevenção, fiscalizar e proteger é um dos papéis do Estado”, enfatiza.
E quando a criança se toca?
Por fim, mas não menos importante, é necessário destacar que crianças tocam o próprio corpo. Os especialistas esclarecem que se tocar é diferente de se masturbar, já que não há imaginário sexual.
“A criança reage ao estímulo, que é corporal. Ela não pensa em algo. Esse prazer é uma resposta orgânica, a criança não busca uma referência externa como estímulo ou uma lembrança, assim como no caso dos adultos. É natural que ela tenham esse contato, que é o primeiro contato com seu próprio corpo”, explica Carina.
Dessa forma, a especialista orienta que os pais nunca reajam com repressão, explicando à criança que esse ato é normal, mas que não pode ser realizado em público.
“Brigar, bater ou colocar de castigo, por exemplo, podem favorecer a manifestação de disfunção sexual na vida adulta. Precisamos educar, crianças precisam de respostas. Crianças compreendem facilmente, temos que explicar o porquê de tudo. Quando explicamos, estamos educamos e dando informação”, conclui.
Educação sexual não antecipa a sexualidade
Ao contrário do que pensa o senso comum (e o Presidente da República) sobre educação sexual, informar sobre sexualidade não antecipa a vida sexual, muito pelo contrário.
Segundo uma pesquisa realizada em 1999 e repetida em 2015 pela Organização Mundial da Saúde (OMS), pessoas que tinham passado por algum programa de educação sexual iniciaram sua vida sexual mais tarde do que aquelas que não tiveram informação.
Além disso, pessoas sexualmente informadas iniciaram sua vida ativa com maior responsabilidade, utilizando preservativos e anticoncepcionais para prevenir doenças e gravidez precoce. É a prova concreta de que educar é sempre o melhor caminho.
Educação sexual para crianças: qual é a melhor forma de tratar o tema?
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