Edson Teles – Seja no Chile dos encapuchados ou dos revoltosos de hoje, ou no Brasil do Quebra-quebra de 1983 ou da revolta de junho de 2013, seja ainda nos momentos em que o “morro desce e não é carnaval”, o que temos se destaca é a sistemática tentativa de desqualificação de uma ação política.
O Chile arde nas chamas da revolta. O Estado cria a ficção do risco à ordem para autorizar ainda mais violência contra os corpos “inimigos”. Um aumento nas passagens do transporte público (alguns poderiam dizer: “mas foram somente 20 centavos”) acionou aquele que, sob pesadelos, dorme e habita as subjetividades do Outro.
O Outro: o não-cidadão; o que recebe auxílio para diminuição de seu sofrimento; aquele que vive sob o drama de perder sua residência; de não ter como sustentar as refeições até o fim do mês; cujos filhos estão em escolas de baixa qualidade ou fora dela; que são empurrados pelos empreendimentos imobiliários para as franjas periféricas das cidades; os que experimentam tudo isso com ainda mais gravidade por serem não-brancos; os corpos aos quais a heteronormatividade supõe ser proprietária e sobre eles aplica sua violência; os endividados e sem tempo para qualquer outra coisa, a não ser trabalhar para pagar a dívida.
As chamas se repetem, além das principais cidades do Chile, em Quito, Hong Kong, Barcelona, Argel, Beirute, Paris. E, também, no asfalto próximo aos morros na cidade do Rio de Janeiro, na rodovia Raposo Tavares em São Paulo, em alguma BR com perímetro urbano, em cidades próximas às mega obras da região Norte.
Não tem enigma. A revolta é um dos resultados da democracia sob a ordem capitalista neoliberal. Não há violência excessiva na revolta. Há resistência contra inúmeras formas de violência institucional que se acumulam e explodem nas narrativas dos corpos em barricadas. Antes de ser violenta, a ação revoltosa é um bloqueio à violência.
A democracia do neoliberalismo globalizado prometeu a participação política, mas ofereceu quase que somente conselhos estéreis e processos eleitorais controlados por sistemas partidários inacessíveis às lutas cotidianas. Discursou sobre a universalidade dos seres humanos mas criou categorias de corpos e hierarquizou a divisão das riquezas. Produziu ao longo do tempo um abismo cada vez maior entre pobres e ricos. E, em meio às ambiguidades de cada território, quando algo foi feito em sentido contrário à ordem estabelecida, logo surgiram os golpes, intervenções e ainda mais violências.
Para a lógica capitalista se manter, não há outra forma a não ser militarizar cada vez mais a vida e a política. Ver um presidente chileno pronunciar seu discurso de início do estado de emergência em meio a um bando de militares, remetendo inapelavelmente à história de uma ditadura das mais sangrentas, é o ápice da militarização da política. A produção do inimigo interno, naquela época de Pinochet associada aos oposicionistas e ao projeto socialista em torno de Allende, se transfigura para uma política de segurança pública e de proteção da ordem democrática.
É interessante lembrar que, desde a segunda metade dos anos 80 e nas décadas seguintes, o Chile deu à luz aos encapuchados (mascarados). Eram jovens ativistas que agiam em atos de memória aos mortos pela Ditadura, mas também às vítimas fatais do Estado durante suas ações anticapitalistas. Em geral, atacavam delegacias, viaturas da polícia repressora e símbolos do capitalismo. Seus atos foram condenados pela democracia da Concertación, governo da coalizão de centro-esquerda. Muitos foram para a prisão sob a acusação de vandalismo e, por vezes, terrorismo.
A cada aniversário do golpe de 11 de setembro de 1973, quando os militares começaram suas caravanas de tortura, morte e desaparecimento, os encapuchados aparecem ao fim dos atos para se fazerem ouvir com seus coquetéis molotov’s contra os tanques e viaturas policiais. A performance da revolta, no Chile, foi ensaiada nas últimas décadas (lembramos que a recente revolta no Equador teve no Conselho Nacional de Organizações Indígenas um ponto de organização fundamental). Contudo, quando o atual presidente, Sebastián Piñera, acionou os militares para sufocarem os primeiros atos contrários ao aumento nas passagens do transporte, o que se viu explodir foi o acúmulo de uma política viva de memória em simbiose com a indignação contra a precarização geral da vida e, especificamente, dos serviços públicos. Isso foi demais. Até mesmo o recuo no aumento das passagens parece não docilizar mais os revoltosos.
Tem-se dito que é a primeira vez que os militares foram acionados para irem às ruas desde a Ditadura. Contudo, já em 2010, durante os saques e conflitos sociais decorrentes do terremoto que atingiu o país, o Exército foi acionado, atuando somente na cidade de Concepción. Assim, foi a primeira vez em Santiago e desta vez com aparato de exceção e diretamente contra mobilizações políticas críticas a uma democracia excludente.
Ouvi perguntas sobre porque não ocorre uma revolta como esta no Brasil. Lembro de uma grande revolta no país, cujo epicentro ocorreu em abril de 1983. Em São Paulo, assistiu-se a pelo menos três dias de saques e quebra-quebras com a derrubada das grades do Palácio dos Bandeirantes, onde residia havia duas semanas o governador Franco Montoro (eleito nas primeiras eleições para o cargo desde 1964).
Antes dessa data, e mesmo depois, tais eventos ocorreram em maior ou menor grau em várias capitais ou grandes cidades do país durante aquele ano. Era uma mistura de saberes de lutas contra a situação econômica dos trabalhadores, mas também uma exigência das camadas populares em participar do jogo da transição. À época, os democratas acusavam provocadores de direita em meio aos manifestantes, além de acusar esses últimos de vândalos e desordeiros. Os militares, na pessoa do general-presidente João Figueiredo, diziam que as manifestações eram insufladas por radicais de esquerda. A homogeneidade da nascente campanha pelas Diretas Já (1983-1984) e os pactos obscuros da transição trataram de enterrar e invisibilizar a revolta.
Em junho de 2013, por “apenas vinte centavos”, no caso da cidade de São Paulo, dezenas de milhares de revoltosos tomaram as ruas, se juntando a centenas de milhares pelo país, em uma das maiores revoltas do Brasil contemporâneo. Insuflados pela mídia conservadora e pelos pactos de governabilidade, logo se sedimentaram discursos de repressão e militarização da revolta (“desordeiros, arruaceiros, vândalos”). Desta vez, pelo que a história tem narrado, novamente os desejos de mudança acabaram por serem silenciados, ensejando aquilo que alimentaria o golpe institucional de 2016.
Há que se somar a esses grandes acontecimentos as revoltas localizadas, que ocorrem cotidianamente quando algum jovem é vítima da violência de Estado e a comunidade sai às ruas em protesto. Não é incomum terminarem em barricadas no asfalto e bloqueios com ônibus queimados. Lembramos que no ano de 2014, no rescaldo da recém revolta nacional, cerca de 200 ônibus foram queimados na cidade de São Paulo. Em sua maioria, resultado de revoltas locais.
Seja no Chile dos encapuchados ou dos revoltosos de hoje, ou no Brasil do Quebra-quebra de 1983 ou da revolta de junho de 2013, seja ainda nos momentos em que o “morro desce e não é carnaval”, o que temos se destaca é a sistemática tentativa de desqualificação de uma ação política. Pois pode-se discordar do modo como se resiste à violência do Estado, mas tentar retirar destas ações seu caráter político e crítico é trabalhar para aplainar o terreno para outro golpe, mais um ano de genocídio do povo negro, aumento do feminicídio, desemprego etc.
A revolta e seus motivos não são enigmas. Compreender o porquê de corpos que preferem colocar a própria vida em risco a ficar em casa em meio a um toque de recolher não é a questão. O enigma é como fazemos para não entrar nos cálculos das razões de governo na hora em que a potência das ruas explode e queima.
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