Clóvis Gruner e Murilo Cleto – Entre todas as imagens produzidas pela morte da menina Ághata Félix, 8 anos, atingida nas costas por um disparo durante ação da PM no Complexo do Alemão, Rio de Janeiro, uma das mais dilacerantes é a de seu avô, Airton Félix, em frente às câmeras, ainda na noite de sexta-feira (21), transtornado com a versão de que o tiro teria sido um revide de policiais a criminosos.
Mais um na estatística. Vai chegar amanhã e ‘morreu uma criança num confronto’. Que confronto? […] Com quem? Porque não tinha ninguém. Atirou por atirar na Kombi lá. Atirou na Kombi e matou a minha neta. Foi isso. Isso é confronto? A minha neta estava armada por acaso pra poder levar um tiro? Airton Félix, avô de Ághata
O maior sintoma do seu desespero, no entanto, veio a seguir: “[…] Foi a filha de um trabalhador. Ela fala inglês, tem aula de balé, tem aula de tudo, era estudiosa. Ela não vivia na rua, não. Agora vem o policial aí e atira em qualquer um que está na rua. Acertou minha neta. Perdi minha neta. Não era para perder ela, nem ninguém”.
O grito do avô faz ver e ouvir uma outra dimensão da violência crescente e contínua a que estão submetidas as comunidades periféricas, e que os discursos oficiais costumam chamar de “pacificação”.
Um informe da Anistia Internacional sobre “O estado dos Direitos Humanos no Mundo”, de 2013, dedicava parte significativa a denunciar o uso recorrente, no Brasil, da violência policial como “política de segurança pública” e resposta das autoridades governamentais à criminalidade. Com o recrudescimento do número de mortos em ações policiais, principalmente depois da experiência das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), a entidade dedicou um longo relatório ao tema.
Publicado em 2015, sob o título “Você matou meu filho: homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro”, o documento não hesita em afirmar que os “autos de resistência”, ao servirem como instrumento que dificulta a apuração rigorosa e transparente das ações policiais, favorecem a impunidade, naturalizam a truculência policial e corroboram com a narrativa oficial, que invariavelmente estigmatiza e criminaliza a vítima.
Um processo que legitima, ao reproduzir, as condições que estimulam a alta letalidade do sistema penal e policial brasileiro, e de modo mais visível o carioca; um “massacre sistêmico” —nas palavras o delegado Orlando Zaccone—, cujas vítimas principais e potenciais quase sempre partilham, além da cor da pele, uma mesma condição social e geográfica. São vidas indignas de serem vividas, cujas “cabecinhas” se transformaram no alvo preferencial das políticas públicas ditas de segurança orientadas a produzir e eliminar os inimigos de sempre.
A questão mereceu da filósofa norte-americana Judith Butler atenção especial. Ao pensar a produção do que chamou de “vidas precárias” pela guerra ao terror levada a cabo pelo então governo de George W. Bush, a filósofa norte-americana coloca a questão, apenas aparentemente banal: o que é uma vida? Segundo Butler, para além da dimensão biológica, para ser reconhecida, uma vida precisa se conformar a certas concepções, a um conjunto de normas social e politicamente produzidas.
A isso ela denominou “enquadramento”, responsável por distinguir aquelas vidas que podemos apreciar e valorizar, daquelas que não merecem ser consideradas, e cuja eliminação merece a indiferença. Uma distinção que, no Brasil de Bolsonaro, ganha contornos didáticos: quando um governador de Estado deixa um helicóptero da polícia comemorando a morte, mesmo que de um sequestrador, não é difícil saber quais são as vidas reconhecidas como tal, e quais não.
Não é preciso muito esforço para reconhecer que a “condição precária” a que se refere Butler é politicamente induzida e, particularmente no caso brasileiro, por uma soma de políticas que distribuem desigualmente a vulnerabilidade e a violência, principalmente estatal. E não se trata de “vidas nuas”, conceito amplamente conhecido a partir da obra de outro filósofo, o italiano Giorgio Agamben. Diferente do homo sacer, as vidas precárias, como a de Ágatha Félix, Evaldo Rosa, Amarildo ou Rafael Braga, não estão fora, mas dentro dos limites muito bem demarcados da polis.
Uma das faces mais perversas dessa condição é que, forçosamente expostas, constrangidas e subjugadas pela violência do Estado, não é incomum às comunidades vulneráveis não restar outra opção além de se sujeitar ao próprio Estado contra o qual precisam de proteção. Porque se o Estado não exerce, necessariamente, o monopólio do exercício da violência, ele detém as condições políticas e simbólicas privilegiadas para estabelecer os limites no interior dos quais as vidas que ele mesmo sacrificou serão ou não passíveis de luto.
É principalmente, embora não exclusivamente, o Estado quem produz os critérios políticos de reconhecimento, razão pela qual, a cada novo assassinato, além de defender e proteger a polícia, seus agentes tratam de criminalizar ou culpabilizar a vítima, tornada responsável por sua própria tragédia. E não é como se defensores dessa e de outras ações policiais não soubessem disso. Pelo contrário.
Uma das práticas mais comuns nas redes sociais, imediatamente posterior à comoção pelo fim de uma vida não passível de luto, é a farta distribuição de falsificações que desautorizam o seu reconhecimento. Aconteceu com Marielle. Aconteceu com Eduardo de Jesus Ferreira, menino de 10 anos que sonhava em ser bombeiro, morto com um tiro de fuzil na cabeça pela polícia na porta da própria casa, também no Complexo do Alemão. Acontece todo dia.
O desabafo de Airton Félix é, no fundo, uma luta cruel pelo reconhecimento de uma vida que não é passível de luto. Do que pode ser só mais uma vida encerrada precoce e violentamente durante uma operação policial no Rio de Janeiro, efeito colateral de uma guerra que se anuncia contra as drogas, mas que não é travada nem nas áreas nobres da Cidade Maravilhosa, nem naquelas que são dominadas pela milícia.
O “acidente” tem lugar para acontecer. Antes de Ágatha, 15 crianças já tinham sido baleadas só neste ano em diferentes comunidades em meio a essas operações —quatro delas mortalmente. Com Vitória Ferreira, 11 anos, baleada no Morro da Mineira no dia 24, o número subiu para 17.
Essa luta é cruel e solitária porque é como se Airton estivesse, sozinho, tentando cancelar, a posteriori, uma ação que já ocorreu. Como se a enunciação dos valores que seriam facilmente associados a uma vida reconhecível —filha de trabalhador, estudiosa, fala inglês e faz balé— pudesse trazê-la de volta. E, se não traz, que a torne passível de luto. O mínimo que se pode esperar. O mínimo para que avô nenhum mais precise berrar em frente às câmeras que sua neta não merecia ter morrido.
Noutra ponta, Wilson Witzel, que demorou longas horas até se pronunciar sobre mais essa tragédia civilizacional, decidiu culpar usuários de drogas pela ação. O governador também decidiu acabar com a gratificação a policiais pela redução de mortes no estado. Silente sobre a morte de Ágatha, o presidente Jair Bolsonaro subiu à tribuna da ONU para dizer ao mundo que é a “ideologia”, e não as balas disparadas pela polícia militarizada e a serviço do Estado, a verdadeira ameaça à “inocência de nossas crianças”.
Sinal de que, assim como não foi a primeira, Ágatha lamentavelmente também não será a última vida rifada pela retórica truculenta que dominou a política. Quanto menos passível de luto, para ela melhor.
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