Política

Vivíamos em um ambiente de fato democrático antes de Bolsonaro?

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ESTHER SOLANO – Certas frases soam como socos no estômago, porradas, que nos colocam rapidamente na realidade.

Nos últimos meses, proliferam-se eventos, seminários, livros e palestras com os títulos “democracia em crise”, “o fim da democracia” ou fórmulas parecidas. Eu mesma tenho participado de vários, de muitos. Há sempre um denominador comum interessante: são organizados e protagonizados majoritariamente por gente branca de classe média, como eu, com uma preocupação genuína por este declínio democrático. Tudo isso me faz pensar muito. Falar no fim ou numa profunda crise democrática significa que partimos da base de que no Brasil havia, de fato, uma democracia. Essa é uma afirmação muito rotunda, demais talvez.

É absolutamente inegável, inquestionável, que o governo Bolsonaro supõe um ataque às formulas mínimas democráticas de uma forma tão obscena e abjeta, tão ostensivamente agressiva, que deixa os brasileiros estupefatos e estarrecidos. Mas é igualmente verdade que pressupor que antes de Bolsonaro havia uma democracia plena para todos os brasileiros não é fidedigno.

Lembro muito de um dia, durante uma conversa com um jovem negro numa região periférica de Rio de Janeiro sobre estes questionamentos, ele me disse: “Ah, professora, são vocês, os brancos de classe média que estão preocupados com a crise democrática de Bolsonaro, porque para vocês havia democracia. Nós, jovens negros, éramos assassinados com o PSDB, com o PT, com o PMDB e seremos assassinados agora, mais ainda, com Bolsonaro. Qual democracia há para nós?”

Certas frases soam como socos no estômago, porradas, que nos colocam rapidamente na realidade.

Ao chegar a este ponto, podemos perguntar: o que é democracia? Para essa pergunta temos várias respostas: direito ao voto e à representatividade popular, um regime de direitos e não privilégios, um regime de inclusão das diferenças… Definições não faltam, mas todas pressupõem algo muito mais básico, o direito à vida. Sem este não há democracia, não há nada.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2007 o Brasil registrou 44.625 mortes violentas. Em 2012 foram 53.054, em 2017, o número chegou a 59.121 e, no ano passado, a 51.589. Todos sabemos que essas mortes têm endereço, cor da pele e classe social. O endereção não fica nos Jardins, a cor não é branca e a classe não é alta. Difícil pensar numa construção democrática quando a maior preocupação de um jovem negro periférico é voltar vivo para a casa.

Sempre lembro de uma senhora negra num bairro periférico em São Paulo que me disse um dia: “Ser mãe negra neste País é saber que teu filho nasce e tem muitas chances de você chorar ele no caixão, morto por uma bala, anos depois”. Outro soco no estômago. A mesma frase poderia ter sido dita pela mãe de uma pessoa trans. Segundo dados da TransRespect, a expectativa média dessa população no Brasil é de 35 anos. Como pensar em democracia quando a vida não está garantida?

É isso, não adianta. O Brasil tem a violência e o extermínio como fundadores, o assassinato como projeto social e político, tendência que se mantém ao longo do tempo. Há períodos de suave melhora dos índices, há períodos nos quais os diversos Witzels do momento parecem empurrar esses índices ao infinito. As matemáticas do horror continuam e continuam…

Quando afirmamos ser preciso radicalizar a democracia, eu ao menos, é disto que se fala, da luta pela vida. No Brasil, radicalizar a democracia é lutar pela vida. Não faz sentido, nós, brancos e bem situados, espernearmos nos momentos de maiores riscos e depois que estes passam ficarmos calados diante dos vários genocídios brasileiros, só por não sermos as vítimas. Um país genocida é antidemocrático por definição. Como construir uma democracia se a vida não for um direito para todos?

Vivíamos em um ambiente de fato democrático antes de Bolsonaro?

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