Fernando Horta – O controle perverso que os fascistas querem exercer sobre os corpos, as consciências e as almas de todos, se manifestou lá nos regimes do século XX como se manifestam hoje no Brasil.
A esta altura do campeonato não há mais dúvida sobre o caráter fascistóide de Bolsonaro. Nem dentro, nem fora do Brasil. O mundo se pergunta como a barbárie, a ignorância e idiotia puderam tomar as civilizações do século XXI de forma tão avassaladora. O Brasil está num local favorável para discutir esta questão. Gostemos ou não, estamos vendo parentes, amigos, vizinhos, que há dois anos se passavam por pessoas civilizadas e normais, tornarem-se os monstros que foram capazes, em outros tempos, de dizimar judeus, negros, ciganos, homossexuais, latinos e etc. na Alemanha de Hitler.
O Fascismo é um fenômeno complexo. Apenas falar no papel de Goebbels ou das FakeNews e da Cambridge Analytica não explica o problema. Da mesma forma, culpar as populações mais pobres – com termos horríveis como o “pobre de direita” – não contribui para pensarmos o Brasil de hoje ou os caminhos para sairmos deste pântano. Uma mudança tão radical quanto experimentamos no Brasil de 2013 para cá (ou na Alemanha de 1923 até 1933) não é fruto de um único interesse, ou de poucos agentes movidos por grandes forças estruturais como “o capital”, “o imperialismo”, “os EUA” ou “a grande burguesia brasileira” … É claro que todos estes têm sua parcela de responsabilidade em nos colocar onde estamos, mas é preciso também compreender atores que comumente não aparecem nas análises sobre o fenômeno. Falo aqui em especial da classe média conservadora que geralmente também ocupa postos-chave nas instituições políticas e jurídicas dos países.
O Fascismo é um movimento de classe média que engloba, no limite, trabalhadores urbanos e a pequena burguesia. O espectro amplo de apoio, no que tange às questões de classe, impõe que o discurso fascista seja necessariamente aberto, com significados que falam coisas diferentes a pessoas diferentes. “Pátria”, “família”, “Deus”, “luta contra a corrupção”, são todos termos que remetem a significados diferentes de pessoa para pessoa. A estes termos se unem outros de interdito moral, os quais ninguém em sã consciência seria contra, como “melhorar o país”, “luta contra pedofilia” ou “acabar com a corrupção”. Esta mescla de temos polissêmicos com interdições civilizacionais e morais claras são as ferramentas de entrada do discurso fascista nos grupos de menor acesso à educação. E o sistema, uma vez no poder, se assegura que tais grupos manipuláveis serão aumentados em número, exatamente pelo ataque sistemático à razão e à educação.
Tudo isto já foi visto, entendido e explicado quando da primeira experiência da monstruosidade fascista, na Europa do início do século XX. Lá também se detectou a primeira contradição que este texto fala. Foi Gramsci que chamou à atenção para o fato de que o fascismo não seria apenas um movimento “da burguesia”. Ao analisar as raízes do fascismo italiano, Gramsci já apontava o conluio de dois grupos: “a burguesia capitalista”, tomada em seu sentido marxista mesmo, e os “descontentes” urbanos, que naquela época eram os apoiadores do nacionalismo italiano de Mazzini, e a antiga aristocracia da Itália. Gramsci ainda não tinha dados de outros lugares, mas já apontava para a existência de um interesse firmemente econômico e outro de natureza sociológica, política e até psicológica na composição do fenômeno do fascismo.
O historiador Eric Vuillard, no recente livro “A Ordem do dia” afirma que no primeiro dia de Hitler como chanceler, houve uma reunião com os maiores empresários alemães (Opel, Krupp, Siemens, Bayer, Agfa e etc.) buscando apoiar (financeiramente) o novo regime em troca da “estabilização da economia”. O vetor de classe é fácil desvendar. O objetivo dos empresários lá (como os que apoiaram Bolsonaro aqui) era o aumento da taxa de expropriação pela diminuição e precarização do trabalho. Para isto precisavam destruir ou apoderarem-se dos órgãos de classe (como sindicatos) e contar com a grave crise de desemprego que ocorreu em 1929 e também no Brasil, em função dos acontecimentos de 2008, 2010 e 2013-2014. Aqui, muitos intérpretes do fascismo do século XX cometeram o erro de dizer que ele era uma manifestação burguesa. Tal erro foi fatal para os partidos socialista e comunista alemão, que tentaram usar as ferramentas partidárias para combater o fascismo apenas para verem horrorizados que quanto mais organizados eles se tornavam, mais força o nazismo adquiria.
A insistência de Hitler e Mussolini em usar o léxico da esquerda e disputar os sentidos das palavras (numa época em que pouca atenção se dava às funções da linguagem) tornava as ferramentas dos partidos de esquerda inúteis. Todos (os nazistas e seus opositores) lutavam “para melhorar a vida do proletariado”, todos lutavam para “diminuir o desemprego e dar uma vida digna para o trabalhador alemão” … as palavras de ordem de classe tinham sido neutralizadas pela disputa de seus sentidos. Os nazistas aproveitavam-se das organizações de classe tal qual um vírus se aproveita das estruturas celulares que invade. E quando as organizações de classe passaram e ostentar palavras de ordem “apolíticas”, irmanaram-se aos fascistas no anticomunismo que – para todos os efeitos – inutilizou a organização partidária na luta contra a barbárie.
Como, contudo, explicar as rupturas entre os parceiros (o capital e os “descontentes”) que já se manifestavam em 37 e 38 com, por exemplo, a Noite dos Cristais? Uma corrente explicativa busca na incongruência entre o “novo” e o “tradicional” esta explicação. Por exaltar o antigo e o tradicional, o conservadorismo se manifestava no fascismo e no nazismo. Ao mesmo tempo, o regime só conseguia se sustentar pelo uso das novas tecnologias (o rádio e a propaganda) e através das pesquisas e desenvolvimento de tecnologia de guerra. A antinomia do “novo e o velho” tinham valoração pendulares nos regimes fascistas. Ora as forças que impulsionavam a novidade, a inovação e o desenvolvimento eram bem vindas, ora eram tidas como destruidoras das tradições e veículos da “corrupção”.
E assim o capital (e os capitalistas) foi passando da condição de aliado do fascismo, para a condição de opositor.
Dito de outra forma, o capital e os capitalistas não se contentam apenas em deter o poder econômico, disputam o poder político, no todo ou em parte. O fascismo, entretanto, não aceita partilhar nada. Do ódio aos pobres que a classe média ostentava, e que servia de base para criminalizar toda forma de ideologia que buscava igualdade social, passava-se – subitamente – ao “ódio aos ricos”. A “corrupção” que era usada para atacar os comunistas, passava também a atacar os grandes empresários, os juízes, promotores, jornalistas e todos os que se atreviam a disputar o poder político com o nazi-fascismo. Paulatinamente o capital se afastava da monstruosidade que ajudara a construir passando, repentinamente, a defender a “democracia” e “liberdade”.
É justamente o que está acontecendo no Brasil. Não apenas a falta de crescimento econômico e o enfraquecimento de Paulo Guedes preocupam os capitalistas brasileiros. É o completo desinteresse para com a economia, demonstrado pelos bolsonaros, combinado com os constantes ataques do governo aos empresários (a título de “combate à corrupção) que já sinalizam a ruptura política no regime brasileiro, semelhante a que aconteceu no alemão. Guedes parece não ter conhecimento nem força política suficiente para implementar uma política de crescimento que foi – sem dúvida – o que permitiu a Hitler e Mussolini angariarem tanta força nos regimes nazi-fascista europeus. Sem o crescimento, o desquite dos capitalistas e o descontentamento dos proletários tornam o regime de Bolsonaro somente possível na variante da ditadura escancarada.
Se o Brasil não cresce, Bolsonaro não tem condições de sequer minimizar o descontentamento social de seus apoiadores. Para implementar uma agenda mínima que atenda à burocracia estatal judiciária, aos militares e à classe média urbana, Bolsonaro precisa de dinheiro. Até agora ele tem tentado aumentar impostos. Contra os trabalhadores ele conseguiu. Ontem surgiram impostos sobre verbas rescisórias trabalhistas que antes não eram cobrados. O governo espera receber 20 bilhões em dez anos com estes novos impostos. Sobre os ricos, contudo, Bolsonaro ainda não obteve sucesso. O fiasco da nova CPMF acirra a contradição entre os dois grupos originários no condomínio fascista, e quanto mais o capital se fortalecer na defesa dos seus interesses, mais vai levantar os “descontentes” a denunciarem a “corrupção” dos ricos. E, assim, a ditadura é o único caminho para manter o poder.
Se a primeira contradição interna dos regimes fascistas já se manifesta no Brasil (aquela entre o capital e os descontentes), a segunda também aparece. Há um vetor de monstruosidade no fascismo, denunciado por Hannah Arendt e Wilhelm Reich, que não pode ser ignorado. O controle perverso que os fascistas querem exercer sobre os corpos, as consciências e as almas de todos, se manifestou lá nos regimes do século XX como se manifestam hoje no Brasil. Para os fascistas os corpos devem ser domados ou mortos. Daí o uso frequente das noções de “bandido” e “cidadão de bem”. O primeiro é o resistente, o diferente e o que não se submete. Precisa ser morto ou neutralizado. O segundo é o detentor do direito de controlar, de agredir e de impor. Esta dicotomia é o caldo liberador das perversidades humanas. O policial, por exemplo, que atirou na menina Agatha (ou em Kauan, Kauê ou Jenifer) não tem o mínimo remorso ou qualquer culpa. Sem os controles institucionais, os monstros afloram.
Ocorre que para o capitalismo corpos mortos não produzem. Há uma evidente tensão entre o interesse de submeter os corpos ao controle econômico da extração de mais-valia e a vontade de submeter e eliminar o todo o diferente. E que não se diga que o número dos mortos não impacta na extração de mais valia! Isto porque a violência que é depositada no tecido social afeta todo o processo produtivo. Não apenas as comunidades que sofrem com esta violência são impactadas economicamente, como também acirram as disputas de classe e trazem atrito ao tecido social em todo o país, tudo o que o capitalismo mais abomina. Pouco a pouco, Bolsonaro deixa de ser lucrativo para o capital, passando a ser neutro (como é agora) e vai chegar ao ponto de ser destrutivo, prejudicial e incômodo. Não é só uma questão do prejuízo imediato dado ao agronegócio, por exemplo, pela política externa calamitosa do governo. É também o ataque sistemático à educação, à ciência, à tecnologia, aos empresários da cultura, do entretenimento, artistas, intelectuais e etc.
A destruição da educação no curto, médio e longo prazo asseguram um prejuízo enorme aos setores produtivos, seja pela estagnação da já pequena capacidade de inovação brasileira, seja pela diminuição do nível técnico da mão de obra. Sem a formação em escala de geração de consumidores com capacidade financeira para tanto não há aumento de demanda e o capitalista sofre. A concentração de riqueza que o fascismo promove não consegue eludir a falta de crescimento e o país vai entrando num beco sem saída. Os apoiadores do regime vão se tornando cada vez mais ricos e menos numerosos, ao mesmo tempo a violência usada como controle social vai aumentando exponencialmente. Entre um sistema de social democracia e distribuição de renda, o capitalismo prefere a promessa liberal (neoliberal) que o fascismo inicialmente faz. Acontece que entre o capitalismo conservador iliberal que o fascismo permite se formar e os sistemas de social democracia, o capitalismo se recalibra e prefere este último. Na Alemanha e Itália o fantástico período de crescimento que estes países experimentaram no início dos regimes fascistas deu fôlego para os monstros. No Brasil, o desastre técnico, econômico e político que é o governo Bolsonaro se auto-implode. O país que Bolsonaro almeja é inóspito para o capital, para as artes, para a cultura, para a ciência e rapidamente os capitalistas vão se dando conta disto.
https://jornalggn.com.br/artigos/as-duas-contradicoes-que-levarao-o-governo-bolsonaro-a-lona/
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