Janaína Simões – Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole analisa mercado de ônibus coletivo na cidade de São Paulo
Segundo o estudo, políticas públicas das últimas décadas mudaram a cara do mercado, mas concentração aumentou
Pesquisa desenvolvida no Centro de Estudos da Metrópole (CEM) da USP mostra que grande parcela do mercado de ônibus coletivos em São Paulo é controlada por seis grupos de proprietários e famílias desde pelo menos a década de 1980. No entanto, processos como a municipalização do sistema, em 1992, a privatização da Companhia Municipal de Transportes Coletivos (CMTC), em 1995, e a recontratação de empresas em 2002, com a entrada dos permissionários, trouxeram novos atores para o sistema, mudando a cara desse mercado.
Há maior mudança de proprietários do que se imagina, sobretudo quando se percebe a constituição de um novo oligopólio a partir de fins da década de 2000, formado pelos antigos cooperados, hoje permissionários. “Ou seja, hoje observamos a existência de dois grandes oligopólios, resultando em maior concentração de capital”, explica Marcos Vinícius Lopes Campos, no artigo Os “altos círculos” no mercado de transportes de São Paulo, publicado na Revista Brasileira de Gestão Urbana (URBE). “É preciso um ajuste da narrativa sobre a atuação do setor privado no setor”, completa.
O pesquisador investiga os processos de constituição e transformação do mercado de empresas privadas operadoras de ônibus, fazendo uma análise descritiva sobre a composição do mercado ao longo das últimas décadas. Com base em um banco de dados inédito, que inclui dados de vínculos de propriedade e da frota das empresas responsáveis pela operação dos serviços de ônibus no município de São Paulo, Campos analisa duas dimensões do mercado privado: os vínculos de propriedade entre pessoas físicas e jurídicas nos mercados como um todo, e os graus de concentração de capital para os anos de 1983, 1992, 1997 e 2015. O estudo não abordou o resultado da licitação feita pela prefeitura em 2019.
O artigo integra a pesquisa que Campos realizou em seu mestrado em Ciência Política na USP, Ferramentas de governo: instrumentação e governança urbana nos serviços de ônibus em São Paulo, na qual trata da centralidade da compreensão dos efeitos das ferramentas e tecnologias eletrônicas na estruturação de relações de poder, da lucratividade e do controle estatal sobre a prestação do serviços de ônibus na capital paulista.
Nessa pesquisa, orientada pelo vice-coordenador do CEM, professor Eduardo Marques, Campos analisa três elementos interconectados politicamente e sobrepostos no espaço, o governo da receita tarifária, das linhas de ônibus e dos dados operacionais referentes à coleta de passageiros. Os principais argumentos da dissertação foram publicados no capítulo nove do livro do CEM A Política do Urbano em São Paulo, organizado por Marques.
Estudando as últimas quatro décadas, a pesquisa argumenta que “este período pode ser caracterizado como um processo histórico de longo prazo da transição do padrão de governança analógica para o eletrônico. Por meio da reinstrumentação das políticas públicas, levadas a cabo, sobretudo, por governos de centro-esquerda, esta transição teve como principal resultado a expansão substantiva das capacidades estatais regulatórias e, em um caso que vai na contramão das teorias sobre o capitalismo regulatório, até mesmo da capacidade estatal de provisão. O que surge deste quadro é que não é possível sugerir relações de captura entre Estado e empresas privadas no município de São Paulo, mas sim de construção mútua, de simbiose”.
Na pesquisa referente ao artigo publicado na URBE, os indicadores mostram que o mercado entre as concessionárias está muito mais concentrado do que antes, ou seja, há menos proprietários diferentes no setor. Em sua análise, Campos tomou a magnitude das frotas disponibilizadas por cada empresa como proxy das parcelas de mercado. O autor identificou que um grupo de seis proprietários, dos mais antigos, detinha 46,92% do mercado em 1997; em 2015, passou a ter 77,2% do mercado. Por outro lado, o trabalho demonstra também que uma tendência similar é encontrada entre os novos atores, os antigos cooperados. Neste, uma mínima parcela entre antigos operadores tornou-se proprietária de grandes empresas, demonstrando a existência de um processo abrupto de constituição de um segundo oligopólio no setor.
Dentro dos 77,2% do mercado ocupado por apenas seis concessionários em 2015, 42,15% estavam nas mãos das empresas VIP, Via Sul (hoje Via Sudeste Transportes Urbanos), Viação Campo Belo, Expandir (hoje Viação Metrópole Paulista) e Viação Cidade Dutra (que hoje integra a Viação Grajaú, mais conhecida como Bola Branca), todas pertencentes a um mesmo grupo, o da família do empresário José Ruas Vaz. O restante dessa fatia concentrada do mercado se divide entre os grupos empresariais Belarmino Marta, Tupi, Gatusa e Santa Brígida. Todos estão atuando pelo menos desde os anos 1980.
Em 1983, o Grupo Ruas detinha 29,77%; passou para 39,76% em 1992, depois caiu para 30,72% em 1997, chegando ao patamar atual de mais de 40%. A viação Sambaíba detinha 6,47% do mercado em 1983 e passou para 14,45% do total do mercado entre os concessionários em 2015. O aumento ocorreu também com a Santa Brígida: de 2,91% em 1980, passou para 9,46% desse mercado em 2015.
A Viação Gato Preto detinha 8,38% em 1983, caiu a 3,91% em 1997, mas voltou a subir e em 2015 detinha 5,10% do mercado relativo às concessionárias. A empresa Gatusa detinha 2,18% do mercado em 1983; caiu para 1,56% em 1997, mas voltou a ter mais espaço, com 3,06% de participação em 2015. A Tupi ocupava 2,48% do mercado em 1983, caindo para 1,74% em 1997, ampliando a participação em 2015 para 2,96%. “Nem todos esses proprietários têm estratégia de expansão de mercado, apesar de terem conseguido sobreviver a todo o período e às mudanças”, ressalta o pesquisador.
Campos utilizou um software de análise de redes sociais e construiu sociogramas, técnica que mostra graficamente as várias relações entre sujeitos que formam um grupo. Com isso, ele pôde avaliar os agrupamentos de proprietários, formados por pessoas que compartilham a propriedade de uma ou mais empresas. Os sociogramas foram construídos a partir das fichas cadastrais das empresas, disponíveis no site da Junta Comercial de São Paulo, onde estão os registros de quem são os proprietários das empresas ao longo dos anos.
“Ao analisar os agrupamentos, mostro os graus de concentração do mercado a partir dos diferentes proprietários que existiram ao longo do tempo no sistema. Quando se observa os diferentes sociogramas, é possível ver o aumento da concentração de capital no setor, na medida em que se observa que temos uma redução de acionistas”, explica. Nota-se também uma sobreposição cada vez maior entre agrupamentos de proprietário e empresas e uma complexificação do mercado no período, com a entrada de novos atores. Um resultado atingido, segundo o autor, por efeito das políticas de transportes das últimas décadas, que buscaram a construção de empresas maiores.
“Ao contrário do que costumamos ouvir em discursos midiáticos ou de senso comum, a pesquisa mostra que não é suficiente dizer que temos os mesmos empresários atuando no setor desde os anos 1950”, aponta. “Tivemos a municipalização em 1992, a privatização da CMTC em 1995 e a recontratação das empresas em 2002, então os atores não são os mesmos. Há atores que atuam há décadas, mas também há uma relativa transformação, entre os antigos, e uma intensa inclusão de novos atores (como os ex-cooperados)”, afirma. Segundo ele, a transformação do mercado privado se deu no sentido da sua heterogeneização e da concentração desigual de capital na cidade.
Uma das mudanças significativas no sistema foi a entrada dos permissionários, na gestão de Marta Suplicy (PT), em 2002. As empresas tradicionais são concessionárias, uma modalidade que produz maior segurança jurídica. Já os permissionários surgiram em 2002 para que os chamados ‘perueiros’ ou ‘clandestinos’ se organizassem em cooperativas. “São operadores com trajetória completamente distinta dos empresários proprietários de empresas de ônibus, com outro vínculo com o mundo político, com burocracias, com o ‘mundo do crime’, e com outra origem social”, ressalta. Outra alteração relevante no período foi a adoção do Bilhete Único, que permitiu à Prefeitura obter informações mais precisas sobre o número de passageiros pagantes – antes ela tinha de confiar na marcação manual, por meio dos relatórios feitos pelos cobradores e entregues às empresas. Esse dado foi detalhado na dissertação de mestrado de Campos.
A dissertação traz argumentos para a melhor qualificação do debate público e o estabelecimento de uma outra narrativa sobre o setor que não se restringe a argumentos baseados apenas nas lógicas de corrupção e na captura do Estado. Algo que, para Campos, tem dificultado na hora de a sociedade enfrentar os gargalos peculiares ao provimento dos serviços de ônibus nas cidades e pensar o setor como um espaço onde é possível produzir mudança, regulação e melhora no provimento dos serviços aos cidadãos.
“A trajetória do setor mostra ser possível observar mudança e enfrentamento de gargalos por parte das administrações municipais, o que observamos, sobretudo, nas administrações de partidos de centro-esquerda.” Por outro lado, o autor afirma que Prefeitura e empresas privadas se fortaleceram nesse processo. Ele aponta ainda para a ocorrência de uma importantíssima e nova mobilização por parte de alguns atores da sociedade civil nos últimos anos, mas acredita que é preciso ainda uma maior ampliação das articulações e mobilização por parte da sociedade para que se intensifique as pressões por maior regulação.
Para ele, é hora de superar a narrativa simplista que costuma nortear os debates e ações públicos. “A atual administração da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, descontinuou os Centros de Controle de Operação, uma das principais frentes postas em jogo pela administração anterior para a ampliação do controle público sobre a operação privada das linhas e melhoria dos serviços”, conta. Ele questiona a permanência de práticas manuais, como o uso de pranchetas de programação de linha para controle do tráfego de veículos, usadas pelos fiscais de linha, sob o atual contexto tecnológico. “Ao fim e ao cabo, isso tudo nos leva ao debate já presente: quem é que vai pagar pelo custo dos serviços? A discussão sobre a regulação e a origem do fundo de financiamento dos serviços devem sempre vir juntas. É preciso problematizar e fiscalizar os limites da atual regulação da operação, os significados políticos dos atuais arranjos de financiamento e o porquê do fundo público ainda não ser capaz de financiar todo o serviço”, finaliza.
Concentração de capital no sistema de ônibus aumenta nas últimas décadas
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