Ladislau Dowbor – Nos EUA, um estudo do Roosevelt Institute reconhece: as lógicas do neoliberalismo estão devastando as sociedades, a natureza e a própria Economia. É hora de resgatar direitos e limitar o poder das finanças e mega-corporações
Resenha de:
New Rules for the 21th Century
Roosevelt Institute – 2019 – 77p
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Um choque impressionante de realismo caracteriza esta excelente síntese dos novos caminhos que os Estados Unidos precisam trilhar para que a economia volte a servir à sociedade, não o contrário. Não se trata de “mais um estudo” de economia, e sim de uma sistematização dos principais desafios e medidas a tomar. O eixo central do relatório está centrado no duplo movimento necessário: reduzir o poder das corporações, e resgatar o papel das políticas públicas. O Roosevelt Institute, a começar por Joseph Stiglitz, se caracteriza pela seriedade das suas pesquisas e o bom senso das propostas.
O relatório impressiona também por fugir de simplificações ideológicas, buscando claramente as medidas cuja utilidade já foi comprovada. E ajuda muito a clareza ao mostrar as dimensões políticas, de poder de decisão efetivo sobre o uso dos recursos, que temos de enfrentar. O problema não está na falta de recursos, e sim no seu desvio por corporações que em vez de fomentar a economia a drenam, apropriando-se para este fim das políticas públicas. Ou seja, o relatório enfrenta a questão central. E esta questão, evidentemente, não se limita aos Estados Unidos. “As generalizações sobre a ineficiência do governo e sua pouca efetividade são exageradas (overblown), enquanto as consequências negativas das soluções baseadas no mercado têm sido muito frequentemente desconsideradas…A América deixou de lado um poderoso instrumento de governo: a provisão pública direta de bens e serviços. ” (47/48)
Ou seja, o que sentimos no relatório é que finalmente a onda neoliberal está refluindo já não em rincões da esquerda, mas em instituições de grande peso. “Nos últimos 50 anos, temos desinvestido (disinvested) do poder público e dito que o governo é o problema. Sabemos que isso está errado. Sabemos também que o governo é a base para as instituições e os bens tangíveis que constituem o tecido das nossas vidas cotidianas –escolas e segurança pública; estradas e pontes; alimentos e medicamentos mais saudáveis; ar e água mais limpos” (63). “O presente relatório vai ilustrar a necessidade crucial de se reduzir o poder corporativo e resgatar o poder público. Mostraremos que ambos são necessários para mover nossa nação para um futuro que se apoia no que houve de melhor na nossa história, corrige erros cometidos e se adapta aos tempos modernos” (10).
Fugindo das polarizações, o relatório mostra que o fortalecimento da capacidade de governo é central inclusive para o funcionamento da economia em geral. “O efeito combinado de poder corporativo concentrado e do poder público corrompido tem sido devastador para o nosso país… O governo não está investindo na população, nos programas públicos, na tecnologia ou na infraestrutura física – o tipo de investimentos que uma economia forte e em expansão exige” (21). Lembremos que no Brasil ‘investir na população’ é qualificado de ‘gasto’.
Não se trata aqui de algum flerte com socialismo. Trata-se, na minha interpretação, de um choque de realismo para que o próprio capitalismo volte a funcionar. Tenho qualificado essa busca de ‘capitalismo civilizado’. O próprio documento sugere uma ‘visão de mundo progressiva’ (progressive world-view). Mas as propostas destoam profundamente do neoliberalismo: “A história não tem sido caridosa com o neoliberalismo, esse caótico saco de ideias baseadas na noção fundamentalista de que os mercados se autocorrigem, alocam recursos com eficiência, e servem bem o interesse público. Aprender a lição de que o neoliberalismo sempre foi uma doutrina política a serviço de interesses especiais pode constituir o fio condutor na nuvem que hoje recobre a economia global” (1). Leram bem, um documento assinado entre outros por quem já foi economista chefe do governo Clinton e do Banco Mundial.
Os interesses especiais, obviamente, são as corporações, que se transformaram numa máquina rentista, que extrai da economia em vez de contribuir: “Como tanto poder das corporações é direcionado para “extração de renta” (rent-extraction, aspas dos autores), – tomar uma parte maior do bolo econômico da nação ao tirar vantagens de outros – em vez de criar riqueza, reduzir o poder corporativo vai inclusive fortalecer o conjunto da economia” (3). Temos aqui a evidente consequência da financeirização. O processo se agravou com a apropriação da política: “No final, isso permitiu que os muito ricos convertessem o seu poder econômico em poder político concentrado que, por sua vez, permitiu que eles torcessem ainda mais as regras a seu favor e capturassem mais poder econômico” (7). É a máquina infernal: poder financeiro que gerou poder político, que por sua vez permite torcer as leis para gerar mais poder financeiro.
Assim, “este vale-tudo do setor privado prejudicou o bem-estar dos indivíduos e das comunidades pelos Estados Unidos afora, mas também travou o crescimento econômico, já que permitiu que os super-ricos retirem lucros do rentismo e de outras atividades que aumentam a sua riqueza sem fazer a economia crescer” (7). O sistema descolou claramente das contribuições produtivas: “Markups, ou seja, o montante que a companhia cobra acima dos custos, aumentaram de 18% acima do custo marginal em 1980, para 67%. Isso sugere que os lucros corporativos compreendem não retornos produtivos sobre o capital e o trabalho, mas rentas” (10).[1] Ou seja, remuneramos essencialmente aplicações financeiras, não investimentos: “Antes de 1970, as corporações americanas pagavam 50% dos seus lucros aos acionistas e o resta era reinvestido no negócio. Hoje, o pagamento aos acionistas está na ordem de 90% dos lucros declarados (Mason 2015a)” (17).
O relatório tira as consequências em termos de resgate da produtividade do setor financeiro. “Para assegurar que a função das finanças seja socialmente benéfica, a reforma do setor financeiro devera buscar, acima de tudo, reduzir os riscos macroeconômicos e limitar as práticas predatórias. Além disso, as reformas deveriam buscar o aumento do crédito produtivo, que poderia estimular pequenos negócios que atualmente enfrentam limitações de capital, facilitar empréstimos simples eficientes e a baixo custo, e servir as famílias não bancarizadas ou insuficientemente bancarizadas que atualmente estão sendo exploradas por financeiras de alto custo” (39).
No nosso caso, evidentemente, os próprios bancos fazem o papel de agiotas, em escala incomparavelmente mais nociva. Mas é útil ver que o problema do resgate da utilidade social e econômica dos intermediários financeiros seja colocada com clareza. “Apesar dos avanços tecnológicos que deveriam ter tornado a indústria das finanças – um serviço de ‘intermediação’– menos caro e mais competitivo com o tempo, o custo unitário das finanças hoje é tão caro como era em 1900, porque o setor financeiro não repassa essas economias para os consumidores e sim para aumentar os lucros” (24).
Os autores apontam inclusive o fato de que a existência de um forte sistema financeiro público é essencial para estimular a qualidade dos serviços prestados pelos mercados: “O provimento público de serviços financeiros básicos não constitui um defeito, mas precisamente o objetivo. Essencialmente, haver uma alternativa pública tende a disciplinar os mercados para assegurar o acesso, qualidade e quantidade de bens e serviços essenciais.” (54) Ou seja, precisamos não só de regulação, mas de empresas públicas que forneçam diretamente bens e serviços para servir de contrapeso, abrindo alternativas para a população e colocando limites à agiotagem e rentismo financeiro. Para nós, que estamos atolados em negociatas de privatização, é importante esta compreensão de que a existência do setor público provedor de serviços é essencial para tornar o setor privado mais performante.
O documento no seu conjunto buscar resgatar o papel do setor público. “Os agentes políticos (policymakers) deveriam expandir o poder do governo, ao prover diretamente as políticas, com dois objetivos na linha de frente de uma nova visão de mundo progressiva: acesso universal aos bens e serviços e investimentos transformadores na busca de objetivos nacionais.” (51) Invertendo as narrativas neoliberais, o texto mostra a maior produtividade sistêmica alcançada quando o governo assume um papel de provedor direto de políticas. E mostra a falácia da chamada austeridade: “Na realidade, está comprovado que gastar pouco demais leva no fim das contas a custos muito mais elevados (em termos de prejuízo para a vida das pessoas e para o crescimento econômico) do que gastar demais. ” (13)
No Brasil, sentimos isso na pele, na medida em que o travamento do acesso às políticas públicas força as pessoas a recorrer a serviços privados muito mais caros, resultando em perda de produtividade sistêmica. É bom lembrar que durante os anos 2003 a 2013, que o Banco Mundial qualificou de “década dourada” (Golden Decade) da economia brasileira, houve forte expansão de renda e de acesso a bens e serviços públicos, o que dinamizou o a economia e limitou o déficit, pois gerou aumento de receitas. O déficit se torna significativo a partir da era da austeridade de 2014 em diante. Para o detalhe, veja o capítulo 12 do meu A Era do Capital Improdutivo, disponível em http://dowbor.org .
“A política pública, executada com cuidado relativamente às dinâmicas de mercado subjacentes, deveria constituir o mecanismo básico (default mechanism) para prover bens e serviços que são essenciais para a dignidade e atuação humanas, tais como acesso à habitação, cuidados de saúde, e serviços bancários. O provimento público direto dos serviços é essencial em casos em que o público tem um forte interesse em ter acesso universal, e em que os setores privados têm como exercer um poder de mercado sobre os que buscam acesso. Há justificações econômicas para utilizar o poder do governo para prover bens e serviços essenciais. Uma vasta literatura mostra os benefícios econômicos de se assegurar um nível básico de serviços que incluem o cuidado infantil, a educação inicial e aposentadorias. Particularmente significativo é o fato que um maior investimento nas pessoas assegura uma maior produtividade econômica no conjunto.” (52)
As mudanças, na visão dos autores, não se darão sem uma transformação do processo decisório nas próprias corporações, na chamada governança corporativa. “Para se criar um sistema que sirva aos interesses de todos os atores interessados (stakeholders), e não só dos executivos e da comunidade de aplicações financeiras, deveria ser exigido dos conselhos de administração das corporações a inclusão, no mínimo, de uma proporção substantiva de trabalhadores bem como de representantes de outros stakeholders que não sejam acionistas.” (37) O texto mostra como isso funciona na Alemanha e outros países.
O relatório recomenda inclusive o reforço dos próprios mecanismos de regulação. Em particular, explicita como funciona o sistema de proteção do consumidor de serviços financeiros (Consumer Financial Protection Bureau: CFBR) “que materializou a visão de um governo federal que serve e reforça a democracia, e é fortemente apoiado pela população” (43). E explicita as necessidades de uma transformação da política tributária: “Elevar as alíquotas tributárias marginais no topo e taxar rendimentos de capital permitiria extrair mais recursos que as firmas usam para pagar aos acionistas e executivos (CEOs).” (60). Não custa lembrar aqui que o CEO da Disney embolsou um salário equivalente a cerca de 1500 vezes o salário médio dos seus empregados, provocando inclusive indignação de uma das netas do Disney. O executivo em questão não tem 1500 vezes mais filhos para criar.
Igualmente interessante é a proposta de uma política proativa de inclusão produtiva. “Uma política de garantia federal de emprego (Federal Jobs Guarantee – FJG) constituiria uma fonte direta de empregos com poder público de literalmente terminar com o desemprego involuntário e pobreza de trabalho.” (57) Tal política poderia assegurar que “independentemente de falhas de mercado – tais como choques econômicos, acordos comerciais mal planejados, discriminação estrutural – cada americano teria o direito a um emprego e à renda e dignidade associadas com o trabalho. Uma garantia de emprego poderia funcionar como uma opção pública que coloca uma regra básica para benefícios, compensações e práticas equitáveis que formatariam o mercado de trabalho no seu conjunto” (61).
Claramente, na visão dos autores, o enfoque econômico não é suficiente. Para as necessidades básicas humanas, temos de nos voltar para o ‘argumento dos direitos’. Mas mesmo em termos macroeconômicos, temos de inverter o raciocínio: “É muito mais provável que o problema que temos de enfrentar seja de demanda agregada inadequada e desemprego elevado, do que sobreaquecimento e inflação.”(58) Expandir a demanda agregada, evidentemente, melhora a situação das famílias e reduz o desemprego. Nada de radicalmente novo aqui, mas sim muito bom senso. Adeus austeridade.
Volto a mencionar que não se trata, nesta análise do Roosevelt Institute, de propor rupturas sistêmicas, e sim de civilizar o processo. Para nós, que nos debatemos no primitivismo ideológico e em narrativas absurdas de que sacrificar a população é “ao fim e ao cabo” bom para ela, vejo este documento como extremamente útil. Qual seja o realismo das propostas, o desmonte do sistema por uma instituição que está no coração dele, com argumentos muito bem organizados, ajuda muito. Não é crítica externa por opositores, é um choque interno de lucidez, por parte de quem conhece o sistema em profundidade. Francamente, são sessenta e poucas páginas que constituem um excelente custo-benefício. Só para não esquecer: a bibliografia é ótima, com artigos e estudos disponíveis online, de acesso aberto e imediato. Para quem quer aprofundar, uma ferramenta.
Acessem a íntegra do relatório em https://rooseveltinstitute.org/wp-content/uploads/2019/04/Roosevelt-Institute_2021-Report_Digital-copy.pdf
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