Antonio Gracias Vieira Filho – 1. Tudo começou com um Atari
Nasci em 1980 e sou, portanto, um filho da chamada “década perdida”. Pessoalmente, sempre achei um epíteto pouco justo para esses dez anos, posto que neles assistimos à redemocratização do Brasil, o início das missões com os ônibus espaciais da NASA e a febre do Atari 2600 – este lançado em 1977, nos EUA, mas um ícone cultural dos anos 80, sem dúvida. Justamente com o Atari comecei minha caminhada pessoal no mundo da eletrônica e informática. Ganhei uma unidade do console em 1987 e lembro de gastar semanas em partidas intermináveis de Enduro e Atlantis. Em minhas criativas noites de insônia, fico a imaginar uma contagem do poder de processamento do meu smartphone em Ataris. Para emular meu “celular” seriam necessários dezenas, centenas ou milhares de Ataris? Ou essa conta é simplesmente impossível de realizar?
Do Atari passei ao Top Game (uma versão nacional do NES), depois ao Mega Drive e, por fim, ao Super NES – o primeiro PlayStation já entrou na cota de meu irmão caçula, 7 anos mais jovem. Caso você não esteja acompanhando, todos os nomes citados na frase anterior dizem respeito a consoles destinados a jogos, os chamados vídeo games. Entre o Atari, em 1987, e o Super NES, em 1995-1996, passaram-se cerca de 10 anos. Então tive acesso ao meu primeiro computador, um 486 DX2 que era um estouro: clockde 66 MHz, 4 megabytes de RAM e tão pouco espaço em disco que nem me lembro quanto era. Depois tive um Pentium I e um Pentium II, este com a revolucionária tecnologia MMX. Confesso que chego a ficar emocionado ao lembrar desse início um tanto “romântico” com a computação pessoal.
2. A chegada da internet comercial, um depoimento
Meu primeiro contato com a internet comercial ocorreu em 1996, em uma feira de informática na cidade de Ribeirão Preto (SP). Eu, um autêntico nerd, fã de novas tecnologias, games e RPGs, tive uma percepção quase instantânea do que seria esse novo espaço para troca de informações: um repositório de tudo, principalmente conhecimento. Lembro que fui a essa feira com dois amigos e, enquanto o atendente do estande de um “provedor de internet” olhava para o lado, tentamos ver se a revista Playboy já tinha um site. O responsável pelo espaço chegou a tempo de evitar um vexame público e voltamos do passeio impressionados com essa perspectiva de um espaço em que, em algum momento do futuro, poderíamos tomar contato com “tudo”.
Entre 1998 e o dia de hoje, em um lapso de 20 anos, acompanhei transformações notáveis nesse meio:
- A evolução dos mecanismos de comunicação, de uma simples conta de e-mail aos aplicativos de conversa instantânea, como o WhatsApp;
- O YouTube, de uma plataforma capenga que levava dias para carregar um vídeo a esse espaço que concentra quase todos os produtores de conteúdo audiovisual do mundo;
- A morte do rádio e sua ressurreição via podcasts;
- A microcomunicação via Twitter; etc.
Tive a oportunidade de acompanhar, também, a evolução do grotesco. Primeiro, a criminalidade mais desprezível prosperou na rede, com grupos que propagam o ódio a minorias; outros que vivem da exploração sexual de crianças e adolescentes; e aqueles, ainda, que se organizam em coletivos obscuros para a mais nova “moda” das execuções em massa, sobretudo em escolas.
3. A conversão da internet em doença social
De forma ainda mais recente, todavia, tenho assistido à metástase de uma doença social que, de modo geral, não é percebida em todo seu potencial destruidor. Refiro-me à atual configuração da internet. O sonho de democratização do conhecimento, com visitas virtuais aos melhores museus e bibliotecas do mundo, foi substituído por uma realidade controlada por algorítimos. As famigeradas redes sociais formam bolhas ao redor dos indivíduos que, cada vez mais atomizados, só desejam consumir o que lhes oferece conforto. Magicamente, as tais redes só apresentam conteúdo que possa agradar de forma imediata e que seja monetariamente consumível. E, além das bolhas, temos o concurso para ver quem grita mais alto. A sucessão de imagens bizarras e a disputa incessante por “cliques” e “curtidas” assumiu tal extremo que, sem muito esforço, você pode encontrar os seguintes conteúdos na rede:
- O vídeo do sujeito que jogou água fervente sobre a própria cabeça, para conseguir maior número de visualizações;
- O rapaz que se jogou em uma banheira cheia de Nutella;
- Todas as compilações de acidentes com carros, motos, caminhões e, eventualmente, troca de socos e palavrões entre motoristas;
- Misoginia, machismo, preconceito, lacração, acusações, assassinato de reputações, ofensas, tudo real ou simulado, com o objetivo de promover canais/sites, sem a menor preocupação com fatos ou possíveis efeitos colaterais;
- Exposição da própria vida ou da privacidade alheia, o que vai de fotos íntimas a “confissões” de incrível poder destrutivo. Fica difícil até pensar em uma estatística dos suicídios ocasionados por tamanha exposição tóxica.
4. A internet e sua metástase no mundo do trabalho
Além de todos esses elementos mais facilmente identificáveis como nocivos, há uma verdadeira hecatombe produtiva associada às múltiplas possibilidades de articulação entre capital e trabalho via internet. Esquematicamente:
- Pessoas querem vender produtos e serviços;
- Pessoas querem comprar produtos e serviços;
- Quem vai intermediar essa relação?
Caso estivéssemos lidando com a internet e o compartilhamento de dados dos anos 1990-2000, diríamos que uma empresa “tradicional” faria tal intermediação. Em outras palavras, uma empresa responsável por produtos e serviços, com sede, funcionários, endereço e telefone ofereceria seus préstimos ao consumidor/comprador, de forma bastante evidente. O e-mail ou a informatização de processos seria fundamental para competição no mercado e garantia de eficiência, mas ainda não seria o negócio em si. Pois esta é a realidade atual: o virtual* converteu-se no novo normal, no padrão, no negócio em si.
Vejamos um exemplo. Temos milhões de produtores de conteúdo, nas mais variadas plataformas (destaque para o YouTube), e bilhões de consumidores, mas não fica evidente que há uma relação comercial estabelecida. O youtuber produz, a audiência consome e, no meio disso, o Google, a caminho de se tornar o maior empregador do mundo, realiza a intermediação comercial. São milhões de produtores, bilhões de consumidores e praticamente nenhuma proteção ao trabalho, em uma relação comercial habilmente camuflada – ou você acha que aquele anúncio no rodapé do vídeo está ali por acaso? Essa dinâmica se reproduz no aplicativo de transporte, nas entregas e sempre que um ícone do seu smartphone substitui a legislação trabalhista. O requinte de crueldade surge no exato momento em que se diz tal dinâmica produz empreendedores que irão triunfar pelo mérito.
5. E ainda vai piorar!
Notem que, para além de todos os itens citados acima, ainda há um interminável rol de problemas. Assistimos à crescente perda de privacidade resultante do monitoramento das atividades na internet, tanto por empresas quanto agências governamentais. Ressurgem os tribunais inquisitoriais: uma acusação, com base real ou não, pode ser o ponto de partida para uma caçada avassaladora, em que o/a outrora pop star se converte em lixo da humanidade, alvo dos mais odientos comentários em redes sociais. E se o/a acusado/a for inocente? Quem paga a destruição de uma vida? O linchamento virtual deve ser encarado como banalidade?
Os afetos tornam-se expostos, mercantilizados e reproduzem a lógica da vitrine de açougue, com a substituição do ideal amoroso pela multiplicação das opções de pornografia.
Enfim, muitas vezes me perguntam por que não produzo textos mais positivos e alegres, com possíveis “soluções”. A minha resposta, encarnada neste texto sobre a internet, é a seguinte: como propor a cura a uma sociedade que ainda nem sabe que está doente?
[*] Observação importante. Muito se fala sobre o “virtual”. Esta é outra grande contradição quando pensamos na internet. O tal virtual resulta de toneladas de equipamentos, computadores, cabos e tubulações, em uma vasta infraestrutura que consome quantidades absurdas de energia. O virtual inclui o poste, a fiação e o “técnico da NET”. O que nos faz pensar sobre como é possível que algo tão incrivelmente palpável seja visto como etéreo.
Deixe uma resposta