Raquel Rolnik – Aproveitando minha passagem por Boston para participar do encontro da Latin American Studies Association (LASA) tive o privilégio de conhecer Mel King, urbanista popular, referência da luta antirracismo e pelo direito à cidade, temas que aliás são completamente indissociáveis nas cidades do continente americano.
Encontrei Melvin King, um senhor negro de 91 anos, sentado em torno da grande mesa redonda da cozinha/salão de sua casa, onde naquele domingo, assim como nos domingos dos últimos 50 anos, era servido um brunch enquanto ativistas, líderes comunitários e religiosos discutiam os temas políticos da conjuntura, os últimos acontecimentos assim como os planos e propostas em debate na cidade naquele momento.
King, filho de imigrantes caribenhos estabelecidos em Boston desde os anos 1920, sempre esteve envolvido em trabalhos comunitários no South End, bairro que – situado para além dos trilhos do trem – passou no início do século 20 a concentrar migrantes, com uma forte presença negra. É ali, inclusive, que se estabeleceu a grande cena de jazz na cidade. Em meados dos anos 1960, um grande projeto de renovação urbana da área foi proposto pela administração municipal, apoiado por fundos federais. Entre outras intervenções, propunha a construção de um mega edifício garagem em uma área vazia onde haviam sido demolidas casas. Este era então um dos projetos propostos no âmbito da transformação da antiga área ferroviária em torres corporativas, centros de convenção, articulado a um sistema de vias expressas.
O bairro então se organizou para se opor ao projeto e, empoderados pela conjuntura de ascensão do movimento de direitos civis dos negros norteamericanos, Mel King e outros ativistas ocuparam o terreno enfrentando a polícia. Ali se instalaram em barracas para impedir o projeto, defendendo que o terreno deveria ser destinado para moradia popular, em um projeto que respeitasse as morfologias e agenciamentos espaciais existentes no bairro, um dos únicos remanescentes na cidade de conjuntos da casas geminadas vitorianos.
Essa luta resultou na inauguração, 20 anos depois (!), de um conjunto residencial de quase 300 apartamentos, denominado Tent City, cristalizando a memória desta luta. O empreendimento foi construído pela Tent City Corporation – uma entidade controlada por representantes da comunidade e representantes dos órgãos municipais, estaduais, federais e investidores privados que financiaram a construção. São moradias de aluguel, sendo metade destas aluguel moderado ( ou seja, abaixo do preço de mercado) e 25% de aluguel social, mobilizando para isto fundos e subsídios públicos.
Mel King continua morando até hoje na casa que foi de seus pais, vizinho do emblemático Tent City Apartments. Sua trajetória envolveu a docência de urbanismo no MIT em Community Fellows Program; foi eleito deputado na Assembleia do Estado de Massachussets e a foi o primeiro candidato negro que conseguiuser o indicado nas primárias para a prefeitura de Boston, entre outras iniciativas políticas e comunitárias.
Neste domingo, sentada na mesa de Mel, pude ouvir ativistas indígenas preocupados com o tema da moradia para os americanos nativos migrantes em áreas urbanas, líderes religiosos batistas envolvidos na organização de atividades para promoção e proteção de direitos LGBT em suas igrejas e movimentos de moradia apontando para a emergência de uma verdadeira crise decorrente do aumento de alugueis na cidade.
Voltei para o local onde acontecia o evento da LASA – um complexo de shoppings com grandes hotéis de bandeira internacional e centros de convenções – para participar de uma excelente mesa redonda sobre a necessidade de repensar o território na America Latina. Que sorte a minha poder ter conhecido naquela manhã de domingo as camadas de história enterradas naquele lugar, que continuavam vivas naquela outra mesa redonda, pulsante e viva, a poucas quadras dali.
https://raquelrolnik.blogosfera.uol.com.br/2019/06/03/uma-visita-a-historia-das-luta-pela-moradia-e-cidade-em-boston/
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