ANA LUIZA BASILIO – Pesquisadora fala sobre a diminuição do fundo e o risco do domínio de grupos empresariais na educação.
Desde o seu ápice em 2014, o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) vem diminuindo progressivamente a oferta de novas vagas. O programa que, no ano, chegou à marca de 733 mil novos contratos e também era responsável por 21,3% dos ingressantes no Ensino Superior privado veio, ao longo do tempo, sendo substituído por programas de financiamento próprio das instituições. Em 2017, essas linhas de crédito já respondiam pelo ingresso de 28,3% dos estudantes na etapa, contra 5,7% do programa do governo federal.
Os dados constam do Mapa do Ensino Superior no Brasil 2019, lançado pelo Semesp (Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo) no último dia 13.
O cenário aponta para o que a professora titular da Universidade Federal do Pará (UFPA), Vera Jacob, também pós-doutora em Educação, define como o processo de “financeirização da educação”, entendido a partir da transformação da educação em mercadoria por conglomerados financeiros que têm o lucro como objetivo final.
Em entrevista a CartaCapital, a especialista explica como o Fies naturalizou entre a sociedade a ideia de que o financiamento estudantil é a alternativa para acessar o Ensino Superior, deslocando a pauta do investimento na universidade pública, e de como o modelo serve à proliferação de linhas de crédito privada e ao surgimento de grandes grupos empresariais no campo da educação.
CartaCapital: Como explicar a diminuição do Fies ao longo dos últimos anos?
Vera Jacob: Esse cenário não é novo e a gente já esperava que isso fosse acontecer em relação aos novos contratos. Vários estudos já comprovaram que o Fies traz problemas sérios para o orçamento da União. Ao mesmo tempo que promove um deslocamento de recursos públicos para financiar o setor privado, implica no aumento da dívida pública. A diminuição dos novos contratos acontece a partir de 2015, justamente para tentar conter o grande número de adesões ao programa. [O Fies sofreu alterações em 2015, no governo de Dilma Rousseff, entre elas a fixação da taxa de juros a 6,5% ao ano para tentar corrigir distorção diante das condições vigentes no mercado econômico – antes era de 3,4% ao ano; maior prazo para amortizar a dívida; a priorização de financiamento a cursos com notas 4 e 5; o estabelecimento de um teto salarial familiar máximo de 2,5 salários mínimos; e o atrelamento do programa a nota média de 450 pontos no Enem e diferente de zero na redação – antes só era necessário ter prestado o exame. Em 2017, a gestão Temer anuncia novas três modalidades de financiamento, a juros zero e para estudantes baixa renda, uma segunda com taxa de juros de cerca de 3%, e uma terceira, chamada de P-Fies, gerida diretamente por bancos privados].
CC: Por que o Fies incide negativamente sobre a dívida pública?
VJ: Um primeiro dado é que o recurso orçamentário gasto com o Fies é maior do que o aprovado. Por exemplo, dados do Tribunal de Contas da União (TCU) de 2014 mostram que a Lei Orçamentária tinha previsto 1,5 bilhão ao Fies, só que o valor executado foi de 13,3 bilhões. Outra questão é a operação financeira feita no empréstimo. O Fies é pago com o título da dívida. Funciona assim: o aluno entra no sistema, faz o empréstimo e o governo repassa o valor para a instituição de ensino não em dinheiro vivo, mas como um título, que o empresário (dono da universidade) pode resgatar no momento que ele quiser. A questão é que, no momento do resgate, incide sobre o valor a ser retirado não só o IPCA (inflação acumulada), mas também a taxa Selic (a taxa básica de juros da economia).
Tem um estudo feito pelo TCU que mostra que, só com essa operação, o governo perde 40% do valor do empréstimo. Ele empresta mil para o estudante e vai receber 600, justamente porque o valor emprestado vai ser corrigido no momento que o empresário o retira.
CC: As taxas de inadimplência pioram esse cenário?
VJ: De fato, o programa alcançou altas taxas de inadimplência [o Mapa do Ensino Superior no Brasil mostra que, atualmente, 2,26 milhões de estudantes têm contratos ativos do Fies, sendo que 511 mil não fizeram o aditamento semestral do contrato (a prorrogação obrigatória dele) durante os dois semestres anteriores, e são considerados “evadidos”. Enquanto isso, os contratos que já foram finalizados e estão na fase da amortização – quando o ex-aluno paga de volta o valor emprestado – seguem com inadimplência alta. O valor devido chega a mais 2 bilhões de reais de um total de 11,2 bilhões que os universitários ainda devem ao governo federal]. Mas a questão é que, ainda que a taxa de adimplência fosse de 100%, ou seja, todo mundo pagasse, o governo já sairia perdendo os 40%. É uma política que não permite restituir o dinheiro investido.
CC: Diante disso, é possível afirmar que o Fies não é uma boa política educacional?
VJ: Não é uma boa política na medida em que, primeiro, promove um deslocamento do investimento público em instituições privadas que não têm uma avaliação de alta qualidade em nosso País. Basta ver os índices e rankings, algumas universidades privadas com notas negativas têm recebido recursos do Fies. Segundo ponto é que o Fies cria na população a naturalização da ideia de que o estudante precisa ser financiado para estudar no Ensino Superior, uma orientação que vem do Banco Mundial.
Se sustenta uma tese de que quem tem que financiar esta etapa da educação é a família, ou seja, o benefício é levado para o campo individual. Quando na verdade é o contrário. Um país que quer se desenvolver precisa investir em um quadro altamente qualificado no nível superior para a graduação.
CC: Você fala de investir na educação superior pública?
VJ: Sim. A alternativa é, de fato, investirmos na universidade pública e na formação de quadros de alta qualificação. O governo fica dizendo que não tem recurso porque destina quase 50% dos fundos públicos, de tudo que é arrecadado da população, para o pagamento da dívida que cada vez está mais alta. Temos um problema sério de prioridade no uso dos recursos. Quem mais paga imposto no nosso país é população pobre, já que a maior quantidade de impostos vem do ICMS. A maior carga tributária recai sobre a população que tem renda mensal de até dois salários mínimos. Quem ganha mais de 30 salários mínimos paga menos de 30%, segundo dados do Ipea.
Se a população pobre é quem paga mais, deveria ter pelo menos um retorno em políticas sociais. Mas o que é colocado é o seguinte: o Ensino Superior de qualidade é para poucos, então não há um investimento efetivo do governo brasileiro no financiamento do ensino superior público, que já provou que tem qualidade porque tem pesquisa. Os empresários do nosso País não investem em pesquisa, eles querem tudo na mão para poder explorar. Temos uma visão empresarial capitalista extremamente atrasada.
CC: O Fies, de certa forma, contribui para essa lógica?
VJ: Sim, na medida em que o governo despende recursos públicos para favorecer o setor privado. É um absurdo, por exemplo, você ter os recursos que vão para as universidades federais contingenciados, uma vez que essas universidades não conseguem gastar 100% dos recursos totais aprovados pela lei orçamentária, porque o governo segura todo ano. Já o Fies ultrapassa em mais de 400% o recurso previsto. De onde está vindo esse recurso para pagar o Fies? Também das universidades federais.
A despesa com as universidades federais em 2017 foi de 52,6 bilhões, com o Fies, 22,6 bi. Ou seja, 43% do orçamento das universidades foi para o setor privado. Outra questão que vale colocar é que o percentual de recursos da União para a educação no nosso país de 2003 a 2018 foi de 2,88%. Pra saúde, 3,89% do recurso acumulado. Para amortizar juros e dívida, que é dinheiro vivo que sai do orçamento, 20%. Então dizer que tem que cortar recursos da educação, da saúde, da assistência social, ciências e tecnologia que, juntas, não gastaram nem 10% do recurso da União nesse período, é uma distorção muito grande.
CC: Você fala sobre a financeirização da educação. Do que se trata? O Fies contribui para esse movimento?
VJ: A partir do momento que o Fies proporciona o resgate da dívida do financiamento com um título sobre o qual recai a maior taxa de valorização de dinheiro do nosso País, temos um grande problema. As universidades privadas aumentaram o seu capital, começaram a comprar pequenas faculdades, e formaram grandes grupos empresariais. Hoje temos quatro que dominam a Educação Superior no País: Kroton Educacional, Estácio, Ânima Educação e Grupo Ser Educacional.
O rendimento líquido da Kroton, em 2014, veio 75% do Fies. Há um favorecimento, um investimento pesado do dinheiro público para o setor privado, mercado que também opera ações na bolsa de valores. É isso que eu chamo de financeirização.
Com a redução do Fies em 2015, e a já difundida ideia do financiamento estudantil como caminho de acesso ao Ensino Superior, começam a proliferar as novas linhas de crédito estudantil. Além de contarem com uma linha de crédito geral – Pra Valer, ligada ao Banco Andbank (Brasil) S.A e BV Finaceira S.A -, os grupos passaram a criar suas próprias linhas, caso do PEP (Parcelamento Estudantil Privado) da Kroton. Há uma divulgação maciça desses empréstimos entre os estudantes – que é um empréstimo como outro qualquer, com bancos – sem nenhum controle por parte do MEC e com o discurso de que não há juros.
CC: Quais os riscos dessas operações?
VJ: A questão é que se trata de uma divulgação enganosa, eles dizem que os juros são menores, mas não é bem assim. Eles praticam a taxa de juros do Fies, mas a questão está no prazo que o estudante tem para quitar a dívida e no acumulado que isso gera. Por exemplo, um curso que tem quatro anos e o aluno paga em oito: o que não é pago dentro de um semestre, acumula para o seguinte com a taxa do IOF. Outra questão é que a mensalidade dos cursos aumenta de acordo com o número de disciplinas ofertadas, se no primeiro semestre são quatro disciplinas e no segundo sete, o valor aumenta estupidamente.
É absurdo e as pessoas não têm a projeção de para quanto vai a dívida inicial, é como um cartão de crédito. O que se tem com isso é o endividamento familiar para financiamento estudantil. Os EUA já colocam o endividamento familiar estudantil como o segundo maior entre as famílias americanas. [Dados do Federal Reserve de 2018 mostram que quatro de cada dez pessoas que concluíram os estudos universitários têm de devolver algum tipo de empréstimo. O total é mais de 1,5 trilhão de dólares – 5,9 trilhões de reais – montante que ultrapassa a riqueza de uma economia avançada como a da Espanha].
CC: Acha que a tendência é o governo acabar com o Fies?
VJ: Acho que não porque a oferta do dinheiro público para o setor privado é interessante. Acho que a tendência é continuar com a redução para tentar buscar um controle. Vale dizer que o efeito financeiro da redução do programa iniciada em 2015 só passa a ser sentido agora em 2019, 2020. Outra questão é que a finalidade do programa, de estimular as linhas de financiamento como as existentes nos EUA, já foi atingida.
Agora, por outro lado, fica ainda uma questão preocupante relativa à falta de controle dessa oferta do Ensino Superior privado que deveria ser uma responsabilidade do governo, já que a educação privada é uma concessão do Estado. A primeira coisa nesse sentido aconteceu ainda no governo FHC – que criou o Fies como sucessor do Crédito Educativo, criado em 1976 pelo regime militar – quando se extinguiu as delegacias do MEC que tinham o papel de fiscalizar as empresas privadas que ofertavam educação. O MEC não tem mais interesse em acompanhar isso, o que é uma irresponsabilidade com a população. Para o setor privado, claro, é ótimo, porque o lucro dessas linhas de crédito estudantil vão direto para os bancos que são, inclusive, acionistas dessas empresas. Agora, volto a dizer que não acho que o programa chegará ao fim, até porque ao usar o modelo, o governo o fortalece: passa a credibilidade à população de que financiar o Ensino Superior é a saída.
Fies: ruim para a educação pública, bom para a educação privada
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