Lincoln Secco – Nos estertores da Ditadura Civil-Militar, a extrema-direita brasileira enfrentou uma crise de direção e teve que mudar. Os ideólogos militares se voltaram para novas teorias que a esquerda brasileira debatia no final dos anos 1970, entre elas a de Antonio Gramsci (1).
A atenção se justificava porque a luta armada não existia mais, o alvo havia se embaçado e, apesar da repressão, o Partido Comunista havia sobrevivido eleitoralmente no MDB e continuava ativo no meio sindical.
Os serviços de inteligência precisavam de novas funções. Muitos delatores civis foram abandonados e se envolveram na criminalidade comum (2). Entre março de 1978 e maio de 1981 os grupos de repressão militares realizaram 40 atentados (sequestros, assassinatos e explosões). (3) Mas eram atos de desespero diante da iminente retirada de cena.
A subversão passou a ser identificada pelos oficiais brasileiros numa suposta estratégia indireta gramsciana operada por partidos, escolas e Igreja Católica. A Regional Nordeste I da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil era acusada de ensinar a tomada do poder num de seus cadernos pastorais com base em Gramsci (4).
A formulação do gramscismo nos anos 1980
Na “Síntese da situação da subversão no Brasil”, documento da delegação militar brasileira na 17ª Conferência dos Exércitos Americanos, 30% dos constituintes eram considerados subversivos (5). O evento transcorreu em novembro de 1987 em Mar del Plata, na Argentina.
Naquela conferência havia representantes de 15 Exércitos das Américas (entre eles o do Brasil), os quais assinaram um acordo que previa “ações nos demais campos do poder”, além do estritamente militar, para “a segurança e defesa do continente americano contra o Movimento Comunista Internacional”.
O informe de inteligência apresentado àquela Conferência dos Exércitos Americanos apontava Antonio Gramsci como o ideólogo da nova estratégia do Movimento Comunista Internacional. Para a América Latina, essa estratégia recebeu o nome de “amerocomunismo”, em adaptação do “eurocomunismo” adotado na Europa. Dizia o relatório:
“Para Gramsci, o método não consistia na conquista ‘revolucionária do poder’, mas em subverter culturalmente a sociedade como passo imediato para alcançar o poder político de forma progressiva, pacífica e perene […]. Para este ideólogo, a ideia principal se baseia na utilização do jogo democrático para a instalação do socialismo no poder. Uma vez alcançado esse primeiro objetivo, se busca impor finalmente o comunismo revolucionário. Sua obra está dirigida especialmente aos intelectuais, profissionais e aos que manejam os meios maciços de comunicação social” (6).
Recuo e retomada nos anos 1990
Ao lado dessa preocupação com as ideias de Gramsci, vários organismos de difusão do ideário pró-mercado foram fundados nos anos 1980. Mas o fracasso do governo Collor, identificado com aquela visão, levou a um retrocesso e à queda das atividades dos think tanks liberais (7).
Apesar disso, em 1994 o escritor Olavo de Carvalho, que viria a se tornar um ideólogo da nova direita, lançou um livro contra Gramsci, em que o descrevia como o “profeta da imbecilidade, o guia de imbecis” (8). Carvalho manteve uma intransigência doutrinária constante mesmo sob a mais severa marginalização. Inspirou-se no exemplo dos neoliberais da época de Hayek, os quais souberam esperar os ventos propícios às suas ideias.
O autor associava a esquerda ao crime organizado e investia contra o “comunismo disfarçado do PT”. Ele usou várias metáforas sexuais para descrever conceitos de Gramsci: “sedução”, “estupro”, “sacudir as banhas” (sic), “sacanagem”, “suruba ideológica”, “etapa orgiástica”, “Antônio-só-a-cabecinha-Gramsci” e “penetração camuflada”. Para ele, Gramsci estaria para a sedução como Lênin para o estupro. Mais tarde ele escreveu o artigo “Máfia Gramsciana” (9), completando com analogias entre o marxismo e associações criminosas.
A importância do autor é que ele antecipou uma linguagem apelativa e anti-intelectual antes que esse tipo de abordagem encontrasse um lugar e um instrumento eficiente de disseminação nas redes sociais, então inexistentes.
Até então esse tipo de escrita era bastante marginal e os escritores liberais procuravam pontos de contato com a tradição de esquerda, endereçando-lhe críticas mais sofisticadas, como foi o caso de José Guilherme Merquior, assessor informal do ex-presidente Fernando Collor. Outros se abrigavam em seu lócus ideológico de maior força: a teoria neoclássica, como a maioria dos economistas. Mas isso mudou.
A virada à histeria coletiva
No seu livro A Revolução Gramscista no Ocidente: a Concepção Revolucionária de Antônio Gramsci em os Cadernos do Cárcere, de 2002, o General Sérgio Augusto de Avellar Coutinho escreveu que a versão “gramscista” de tomada do poder seria “levada a efeito após a conquista legal do governo”, sob “máscara constitucional”, e só podia ser evitada pela intervenção político-militar em resposta ao apelo da sociedade nacional.
Em nome da defesa da Ordem é preciso sacrificar a Constituição, pois ela permite a execução da estratégia indireta do “gramscismo”. Embora aparentemente baseada na consulta da edição brasileira dos “Cadernos do Cárcere”, portanto uma pesquisa dotada de lógica interna, a cadência da exposição é quebrada por denúncias da base “nasserista” (sic) do PT, do marxismo de Lula e de José Serra, entre outros comentários políticos.
Anos depois o Instituto Von Mises denunciaria “o veneno de Bakhtin, Gramsci, Piaget e Freire” (10). Até o geógrafo Milton Santos estaria maculado pelo gramscismo, conforme o blog O Anti-Gramsci, destinado a combater “a Revolução Silenciosa que embota a consciência brasileira”. A Escola de Frankfurt, Althusser e Edward Said também seriam pais da “Nova Ordem Mundial” e da perestroika (sic), esta entendida como “uma virada estratégica rumo à dominação mundial através de uma lenta revolução cultural encabeçada pelo ecologismo” (sic).
A Biblioteca do Exército, através de Nilson Vieira Ferreira de Mello, membro do seu Conselho Editorial, divulgou o citado livro A Revolução Gramscista no Ocidente de Sérgio Coutinho. Haveria uma “estratégia gramsciana de implantar o socialismo sem recorrer às armas convencionais” (11).
Da teoria à prática
A campanha da extrema-direita à presidência foi baseada no combate à cultura de esquerda, à “ideologia de gênero” e à visibilidade de comportamentos dissonantes da tradicional família brasileira. O Vice dele, General Mourão, afirmou que “o marxismo cultural e suas derivações como o gramscismo, se uniu às oligarquias corruptas para minar os valores da nação e da família brasileira” (12).
Na verdade era uma cópia de um trecho do plano de governo de Bolsonaro. O empresário Flavio Rocha, dono das lojas Riachuelo, disse que precisamos atacar o gramscismo que está espalhado pelo país (13). Para o General Osvaldo Ferreira, assessor de Bolsonaro para a educação, o objetivo seria o de reduzir a influência de Gramsci e Paulo Freire na formação de professores (14).
A onda contra o gramscismo atingiu até um tradicional jornal paulista, que conta entre seus articulistas intelectuais liberais de origem gramsciana, como Marco Aurelio Nogueira e Luiz Sergio Henriques. Pouco depois de publicar um artigo contra o marxismo cultural do General Rômulo Pereira (15), O Estado de S. Paulo fez publicar um editorial “contra doutrinação do marxismo gramsciano” (16). A International Gramsci Society, seção brasileira, produziu uma Carta Aberta em resposta à ameaça do “gramscismo” (18).
Técnicas de manipulação
A maioria dos professores sabe que a melhor maneira de se fazer de um aluno um adversário é doutriná-lo. A cátedra não é o púlpito ou a tribuna. Há o ideal da neutralidade axiológica, a oferta de múltiplas abordagens e até a honestidade intelectual de revelar o ponto de partida teórico. Isso é educar para a liberdade.
Antonio Gramsci é citado no Brasil desde 1923 e, na expressão do estudioso italiano Guido Liguori, sempre foi um autor “conteso” ou seja, “disputado”. Foi, portanto, um legítimo objeto de estudos acadêmicos. Assim, não surpreendia a ninguém que um pensador liberal erudito como J. G. Merquior discutisse suas ideias nos anos 1980 ou que o professor da USP Oliveiros Ferreira, um profundo e respeitado intelectual conservador, fizesse uma tese acadêmica sobre Gramsci. Depois disso, raramente um acadêmico conservador pesquisou o pensamento gramsciano, exceto em artigos de ocasião com baixo valor intelectual (18).
Entretanto, a ninguém passava pela cabeça que qualquer pensador importante pudesse simplesmente se tornar o centro de uma teoria conspiratória. O problema não está na estatura intelectual, em geral sofrível, do adepto desse tipo de teoria. No Brasil nenhum intelectual reconhecido aderiu a posições de extrema-direita. Teóricos importantes como Heidegger, Hjalmar Schacht e Carl Schmidt aderiram ao nazismo.
Mas o problema está na própria extrema-direita. Ela se resume no fim das contas a uma manipulação racional da irracionalidade de seus seguidores. Isso impede qualquer sofisticação teórica. Seus ideólogos não podem ser profundos, apenas técnicos ou criadores de palavras de ordem simplórias, boatos e conspirações. Daí a glorificação do “especialista” e o desprezo pela Filosofia, enquanto a História se torna palco de disputas entre a “verdade sufocada” e a “manipulação” promovida pela quase totalidade dos historiadores profissionais.
“Memes”, manipulação de imagens e notícias, palavras de ordem mentirosas repetidas ad nauseam e redução de todo pensamento e comportamento diverso a uma caricatura já existiam. Goebbels foi um mestre nessa técnica. Mas um aspecto formal indispensável foi a combinação de três vertentes opostas: referências supostamente eruditas; linguagem apelativa e vulgar; convite à ação. Vamos a elas.
Em primeiro lugar, o “erudito” da nova direita cita autores que ele supõe serem marxistas, ampliando bastante o conceito para nele incluir qualquer um que dele discorde. De São Tomás de Aquino a Leonardo Boff, de Fernando Henrique Cardoso a Marilena Chaui, são todos revolucionários.
A linguagem tem um ritmo: recurso à história, suposta demonstração de conhecimento do “pensamento de esquerda” e citações (normalmente cópias de índices onomásticos ou “copia e cola” de textos da internet para “provar” a leitura dedicada das obras de Gramsci, por exemplo).
Em segundo lugar, há um recurso preponderante, uma técnica e um método. O recurso é a linguagem envilecida, com abundância de adjetivos, combinada com a “erudição”, constituindo uma miscelânea propositalmente confusa. A técnica é a redução de conceitos a simplificações e agressões verbais. O método é a argumentação ad hominem e, seu corolário, a explicação do pensamento oposto pelas qualidades que seriam intrínsecas ao adversário.
O adversário é um pseudo-intelectual, um homem ou mulher medíocre. A esquerda é incapaz, fracassada, de classe-média e lideranças de trabalhadores são qualificadas de apedeutas, analfabetos funcionais, delirantes etc. Note-se que parece se tratar do medo que o próprio formulador tem de estar fazendo uma autodescrição.
Por fim, há um apelo à ação. Começa pela autoglorificação do próprio fracasso, do isolamento, do não reconhecimento intelectual. A culpa seria da penetração “gramscista” nos meios de comunicação e do monopólio dos adeptos de Paulo Freire nas escolas, universidades, jornais, revistas e até na Rede Globo. Vincula-se a isso a citação de autores ultraliberais sem repercussão acadêmica. Eles são apresentados como gênios incompreendidos, resgatados do limbo.
O escopo é evidente: os que os retiram do esquecimento estão retirando a si mesmos de uma condição análoga e ainda demonstrando que a “esquerda” é ignara a ponto de desconhecer aqueles autores fundamentais para a história da filosofia. Paralelamente, propõem o fim da própria Filosofia, mediante sua proibição nas escolas e retirada de verbas nas universidades públicas e convidam todos à ação moralizadora.
Uma “conclusão gramsciana”
Não existe “gramscismo” em Gramsci, é óbvio. Ele é a autodescrição dos seus próprios criadores. A caricatura do pensamento do outro existe porque as teorias conspiratórias são basicamente fetichistas. Agarram-se a “fatos” e descrições sumárias de comportamentos e indivíduos que personificariam a “estratégia” do inimigo. Assim, uma mulher lésbica não é uma pessoa e sim a personificação de uma ideologia.
Eles não podem jamais conceber a complexidade do pensamento adversário. Seu modus operandi consiste no uso de técnicas ideológicas de penetração cultural nos meios de comunicação para difundir a ideia de que há um núcleo conspiratório “marxista cultural”, de forma semelhante à conspiração “judaico-bolchevique” do passado. Os “gramscistas” são eles mesmos.
***
Pra quem realmente quiser entender o pensamento gramsciano para além das distorções do “gramscismo” formulado pela extrema-direita brasileira, recomendamos consultar o Dicionário gramsciano, organizado por Guido Liguori e Pasquale Voza. A obra destrincha os principais conceitos de Antonio Gramsci em uma enciclopédia com mais de 600 verbetes, elaborados por alguns dos mais importantes estudiosos de sua obra no mundo.
Notas
1 Versão modificada de um artigo publicado originalmente em espanhol. Lincoln Secco, “Gramscismo: Una Ideología De La Nueva Derecha Brasileña”, em: Revista Política Latinoamericana, (7), 2018, Buenos Aires.
2 C. Guerra, Memórias de uma Guerra Suja. Depoimento a Rogério Medeiros e Marcelo Netto (São Paulo: Editora Topbooks, 2012).
3 H. Silva, O Poder Militar (Porto Alegre: LPM, 1987), p. 543
4 O Estado de S. Paulo, 23 fev. 1988.
5 O Estado de S. Paulo, 27 set. 1988.
6 Folha de S.Paulo, 25 set. 1988.
7 Camila Rocha, “O papel dos think tanks pró-mercado na difusão do neoliberalismo no Brasil”, MILLCAYAC – Revista Digital de Ciencias Sociales / Vol. IV / N° 7 / 2017. ISSN: 2362-616x. (pp. 95-120), Centro de Publicaciones. FCPyS. UNCuyo. Mendoza.
8 Olavo de Carvalho, A Nova Era e a Revolução Cultural: Fritjof Capra & Antonio Gramsci (Rio de Janeiro: Instituto de Artes Liberais, 1994), p. 82. As metáforas sexuais citadas adiante estão nas páginas 68, 71, 72, 76 e 77.
9 Jornal da Tarde, 25 nov. 1999.
10 Ubiratan Jorge Iorio, “Gramsci, Paulo Freire e a batalha da linguagem: nosso declínio começou com a deturpação das palavras”, Mises Brasil, 24 nov. 2016.
11 Idem.
12 Gabriel Hirabahasi, “Mourão não sai do zero”, Em: Época (Blog: Expresso, por Murilo Ramos). Acesso em 8 de maio de 2019.
13 Bruno Góes, “As companhias de Flavio Rocha”, O Globo – Lauro Jardim. 2 mar. 2018.
14 Folha de São Paulo, 18 ago. 2018.
15 O Estado de S. Paulo, 19 de abr. 2017, p. 2.
16 O Estado de S. Paulo, 29 abr. 2018.
17 Marcos Del Roio, “CARTA ABERTA em resposta à ameaça do gramscismo”, International Gramsci Society.
18 Um exemplo: Denis Lerrer Rosenfield, “Gramsci e o MST”, O Estado de S. Paulo, 13 dez. 2004.
http://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/13766-gramscismo-uma-ideologia-da-extrema-direita
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