Ao que parece, a intenção do governo é mandar um recado com a realização de uma “contra-manifestação”: mostrar que ainda conta com o apoio de parte da sociedade e, numericamente falando, tentar juntar nas ruas mais pessoas do que aquelas que integraram o outro movimento. Enfim, uma queda de braço. Porém, antes mesmo de sua realização e independente do número de adeptos que terá, a convocação acabou expondo graves cisões na direita brasileira.
VICTOR PICCHI GANDIN – No último dia 10, durante um evento da Caixa Econômica Federal, o Presidente da República Jair Bolsonaro (PSL) declarou, sem especificar a que se referia, que haveria “um tsunami” na semana seguinte. Tal semana chegou e nela de fato o governo passou por um de seus momentos mais delicados.
Nestes dias se intensificaram declarações contrárias ao modo como Bolsonaro vem tentando governar. Estas críticas, cada vez mais frequentes, partem de eleitores, ex-apoiadores e até mesmo atuais seguidores do presidente.
Reportagem publicada pela revista Época reuniu diversos casos de ex-sustentadores de Bolsonaro que se tornaram críticos, como integrantes do MBL e o músico Lobão. Enquanto isso, Olavo de Carvalho afirmava na internet que resolveu abandonar temporariamente o debate político.
Carlos Bolsonaro, vereador e filho do presidente, afirmou no Twitter que “o que está por vir pode derrubar o capitão eleito“, em referência à MP 870, que trata da reorganização das pastas ministeriais. Neste contexto, o colunista Reinaldo Azevedo notou que Bolsonaro pronunciou pela primeira vez a palavra “impeachment”.
Alguns dias depois, mas ainda nesta mesma semana, Bolsonaro divulgaria um texto de “autor desconhecido”, posteriormente encontrado, que afirmava que o governo brasileiro sofre “pressões de todas as corporações” e que o atual presidente “até agora não fez nada de fato“. Para alguns, a carta foi um indicativo de possibilidade de renúncia. Para outros avaliadores, um ataque ao Congresso, indicando que o governo buscará um viés mais autoritário.
Ao longo da semana também surgiram notícias sobre investigações no gabinete de Flávio Bolsonaro (PSL), defendido pelo pai, que afirmou: “não vão me pegar“. A turbulência continuou com Joice Hasselmann e Carla Zambelli, deputadas do próprio PSL, brigando em público no Twitter, sendo a segunda acusada de “nepotismo cruzado” pela primeira.
Em meio a este cenário conturbado, ocorreram as maiores manifestações de rua durante o governo Bolsonaro até então. Estudantes, professores e servidores ligados à Educação se mobilizaram em mais de duas centenas de municípios ao redor do Brasil.
Um dia antes da data marcada para as manifestações, o governo parecia preocupado com o impacto que estas poderiam ocasionar (ou apenas tentava desencorajar sua realização). Líderes partidários que haviam se reunido com Bolsonaro, inclusive o líder de seu próprio partido na Câmara, afirmaram que o corte de recursos na Educação estaria cancelado. O termo “corte” foi utilizado literalmente por deputados aliados ao governo.
Em seguida, o Ministério da Educação e a Casa Civil do governo negaram as informações sobre o cancelamento do corte/contingenciamento. Delegado Waldir (PSL) ficou com cara de mentiroso e desabafou: “quem disser que não é verdade está mentindo. A Casa Civil é atrapalhada. A Casa Civil e a Joice estão desmentindo o presidente da República. Eu não sou mentiroso. Eu não sou cego, nem surdo nem mudo. Eu vi o que o presidente falou“.
Outro deputado aliado do governo, Capitão Wagner (PROS), afirmou que presenciou o presidente ligar para Weintraub e afirmar “com todas as letras” que “agora o corte está suspenso“. Wagner chegou a resumir uma “estratégia” que parece recorrente ao atual mandatário da presidência: “Quem criou o boato? Foi o governo, que voltou atrás e depois voltou atrás de novo”.
Resultado: em mais uma derrota governista, deputados aprovaram um pedido para que o Ministro da Educação Abraham Weintraub fosse convocado (e não convidado, leia-se) para ir à Câmara dos Deputados explicar os cortes ou contingenciamentos na Educação. Apenas 82 deputados votaram favoravelmente ao governo, que se viu realmente apoiado apenas por seu próprio PSL e pelo NOVO.
Durante seis horas, Weintraub falou de tudo. Distorceu dados sobre a importância da produção das Ciências Humanas, culpou governos anteriores, mandou indireta aos deputados dizendo questionando se estes conhecem a “carteira de trabalho”, afirmou que a “autonomia universitária não é soberana“, disse não ter “ódio no coração” e “odiar o pecado e não o pecador” e classificou a confusão realizada no dia anterior, da qual teria recebido uma ligação de Bolsonaro, como “puta telefone sem fio“.
Suas explicações, porém, deixaram a desejar. O jornal Estadão avaliou que os “protestos contra cortes na Educação elevaram o desgaste do governo”. Um auxiliar próximo ao presidente, segundo o comentarista político Gerson Camarotti (G1), reconheceu que falas anteriores do ministro haviam estimulado os protestos, dando um pretexto para sua convocação na Câmara, e um jornalista do site Poder360 avaliou que a articulação política do governo passava por seu pior momento.
Durante as manifestações, Bolsonaro esteve nos Estados Unidos, longe do Brasil, rodeado apenas por apoiadores (algo perceptível nos gritos feitos durante vários vídeos gravados no local), bem à vontade, portanto, para fazer os ataques que o seguraram como deputado durante quase trinta anos, mas que não ajudam na tarefa de se conciliar uma Nação e torná-la governável.
Antes de ganhar aplausos raivosos por “destruir” uma jornalista, atacando seu trabalho, numa avaliação completamente equivocada, Bolsonaro afirmou que os estudantes que lutavam pela Educação eram “idiotas úteis“, “imbecis” e utilizados como “massa de manobra“.
Um presidente pode até pensar desta maneira, mas nunca dar tais declarações publicamente, colocando em confronto aqueles que estão sob seu governo. Ainda mais sendo um presidente que há não muito tempo era aclamado em manifestações organizadas por outro espectro político.
O vice-presidente General Mourão (PRTB) foi rápido em apresentar um comentário mais conciliador, afirmando que o primeiro grande protesto ocorrido durante a gestão Bolsonaro “faz parte do processo democrático“. Esta visão mais institucional, porém, não é a predominante no governo.
Delegado Waldir (PSL) deslegitimou o movimento ao considerar que seus participantes o fizeram para não trabalhar no dia (conclusão expressa no questionamento “Hoje é feriado?“). Disse ainda que “as pessoas são manipuladas” e que seus participantes compõem “uma minoria” (por acaso houve alguma vez na história uma manifestação com mais de 105 milhões de brasileiros, a “maioria simples” de nossa população?).
O deputado foi mais além e, preconceituosamente, afirmou que aqueles que estavam nas ruas eram “fumadores de maconha” e “baderneiros“. Joice Hasselmann (PSL), líder do governo no Congresso, endossou as críticas e afirmou que Bolsonaro “nunca compactuou com esse tipo de manifestação ideológica“, considerada por ela “barulhenta”.
Segundo a deputada, que há alguns anos ganhou mais relevância ao participar de manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff (PT), que contavam com a organização e participação de grupos ideológicos (no caso, à direita), “não tem como fazer diálogo com gente que está na rua gritando, esperneando, xingando o governo”.
“Isso não é diálogo, é baderna”, declarou a deputada sobre uma das manifestações mais pacíficas já realizadas no Brasil, que contou até mesmo com grupos de estudantes apresentando gratuitamente a importância de suas pesquisas à população em geral, indo além do âmbito acadêmico-universitário.
A participação de movimentos de esquerda em meio aos protestos foi a justificativa encontrada por lideranças políticas para minimizar seu impacto e deslegitimar uma mobilização que era apartidária. Isso não significa que seus integrantes deveriam impedir a participação de movimentos de esquerda (o que não seria nada democrático), e sim que as manifestações foram convocadas por estudantes, professores e associações ligadas à Educação de modo geral, e não por um partido político específico. Líderes partidários e organizações sindicais tem experiência organizacional neste tipo de ato, mas não coagiram participantes, que organizaram-se e aderiram espontaneamente.
Devemos nos lembrar que as manifestações favoráveis ao impeachment de Dilma Rousseff (PT) tinham bandeiras do MBL e foram organizadas por movimentos de direita. Por esta lógica, também não seriam “válidas”, afinal estavam “contaminadas” por vários grupos ideológicos, no caso, à direita. É contraditório ver pessoas que se notabilizaram ao participar de manifestações, como a deputada Carla Zambelli (PSL) e sua “colega” Joice falarem tão mal do próprio ato de se organizar uma manifestação.
Pode até ser que com o avanço da organização dos atuais protestos, estes se ampliem perante outros setores da sociedade e acabem assumindo de fato características anti-Bolsonaro (em oposição a seu governo de modo geral, e não apenas protestando por cortes ou contingenciamentos na área da Educação). Nesta composição, tais protestos também seriam válidos, como também o são aqueles compostos por participantes de camisetas amarelas. A participação de movimentos de direita em protestos da época do impeachment era tão legítima quanto a participação de movimentos de esquerda nos protestos atuais.
Chama a atenção o fato de que a mobilização da semana passada afetou não apenas universitários, mas também futuros universitários, estudantes de escolas públicas e até mesmo particulares que almejam adentrar em faculdades públicas. São jovens que reconhecem o papel da universidade pública e cuja força não pode ser ignorada.
Nitidamente, não são “militantes”, como disse o presidente para deslegitimar o movimento. São pessoas sérias lutando pela Educação e por seus direitos, reagindo como podem aos ataques feitos à universidade pública. Bolsonaro, além de diminuir a importância das Ciências Humanas, parece ele mesmo não ter aprendido com uma delas, a História. A longo prazo, o governo pode pagar caro por ter “mexido” com estudantes, ao atacar um dos únicos ciclos de ensino que ainda funcionam neste país, o ensino superior público.
Aos críticos, convém lembrar que o próprio ministro falou em corte (“terão verbas reduzidas”) no orçamento das universidades, falou em 30% e depois manejou estatísticas para divulgar um percentual menor (sobre despesas discricionárias e não sobre o total). Foi o primeiro passo para se estabelecer a confusão e inflamar aliados a chamarem estudantes e jornalistas de “burros” por “não saberem a diferença entre corte e contingenciamento”.
Economias na gestão pública são necessárias, mas cortes de investimentos atrelados a desculpas e pretextos criados (“balbúrdia”, “gente pelada”) são erros indisfarçáveis. Foi feito um ataque frontal ao conhecimento científico e tecnológico. Mais ainda, um ataque aos próprios estudantes, que sustentam o futuro do país a partir de suas pesquisas e estudos. Seja “corte” ou “contingenciamento”, a decisão prejudicou até mesmo obras de hospitais universitários, milhões de reais investidos (e não gastos) que seriam utilizados no atendimento da população e ajudariam a gerar empregos.
Apesar das mensagens difamatórias, o governo parece ter sentido um pouco o baque ao ver estudantes críticos mobilizados nas ruas. Como uma forma de “mostrar força”, como se ainda estivéssemos na época da campanha eleitoral, uma manifestação pró-Bolsonaro foi marcada para o dia 26/05 em resposta aos protestos em defesa da Educação.
Ao que parece, a intenção do governo é mandar um recado com a realização de uma “contra-manifestação”: mostrar que ainda conta com o apoio de parte da sociedade e, numericamente falando, tentar juntar nas ruas mais pessoas do que aquelas que integraram o outro movimento. Enfim, uma queda de braço. Porém, antes mesmo de sua realização e independente do número de adeptos que terá, a convocação acabou expondo graves cisões na direita brasileira.
Diversos grupos evitaram aderir à manifestação pró-Bolsonaro, afirmando que este novo movimento encampará pautas mais radicais, chegando a propor o fechamento do Congresso e do STF. O MBL – Movimento Brasil Livre, liberal e de direita, emitiu nota atribuindo a convocação da manifestação a um setor “mais radical”, que encamparia “pautas antirepublicanas”. Críticas públicas ao governo passaram a ser emitidas pelo MBL, antes aliado na agenda econômica e comportamental.
Janaina Paschoal (PSL), eleita deputada estadual com mais de 2 milhões de votos após notabilizar-se no processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), colocou-se pública e veemente contra as manifestações em apoio a Jair Bolsonaro (PSL). Segundo ela, estas “não têm racionalidade” e o presidente “está confundindo discussões democráticas com toma-lá-dá-cá“.
“Pelo amor de Deus, parem as convocações! Essas pessoas precisam de um choque de realidade. Não tem sentido quem está com o poder convocar manifestações! Raciocinem! Eu só peço o básico! Reflitam!“, implorou Janaína. Talvez a deputada lembrou-se de episódio ocorrido em 1992, quando o então presidente Fernando Collor (PRN) convocou a população a ir às ruas de verde e amarelo, no intuito de provar que seus opositores eram minoria. No caso dele, o tiro saiu pela culatra.
Com isto, o Brasil continua politicamente polarizado. Um lado disputa apoio popular com o outro, como se isso fosse necessário [por parte do governo] num momento em que Bolsonaro já foi eleito, não é mais um deputado “temático”, tem maiores responsabilidades e parece não ter entendido que suas falas e decisões enquanto presidente trazem consequências.
Agitar a plateia composta por seus “fãs” contra o “outro lado” realmente não faz muito sentido num momento em que a campanha eleitoral terminou e o presidente já está – há cinco meses, diga-se – sentado na cadeira presidencial.
Toda manifestação é legítima, desde que conduzida de forma democrática e visando procedimentos democráticos, independente de quem as organiza. Quanto ao governo, falta capacidade de gestão e articulação. Resolver problemas em vez de criá-los. Governar em vez de querer exaltar numericamente que boa parte da sociedade ainda o apoia apesar dos pesares.
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