Rodrigo Casarin – “As mulheres exibiam sua riqueza e elegância proporcionalmente à importância de seu companheiro no bando. Carregavam nos bornais tudo o que tinham: remédios, ouro, dinheiro, mudas de roupa, comida, munição, maquiagem (batom e pó de arroz) e toucador (espelho e pente). E guardavam um segredo: sob o tecido grosso, vestiam traje de seda e lingerie – não existia sutiã entre as cangaceiras –, e se perfumavam com os caros e concorridos Dorli ou Serenata. Tudo isso mais um revólver calibre 32, por vezes outro, 22, e um pequeno punhal na cintura”.
Dessa forma que as moças do cangaço andavam pelo sertão nordestino segundo o jornalista Wagner G. Barreira, autor de “Lampião & Maria Bonita – Uma História de Amor e Balas”. Apesar do famoso romance só aparecer mesmo já para o final do livro lançado pela Planeta há alguns meses, é a partir dele que temos os momentos mais interessantes da obra. Lampião e seus comparsas não permitiam que mulheres se juntassem ao bando que tocava o terror ao mesmo tempo em que levava esperança a muitos daqueles que cruzavam seu caminho. Entretanto, as coisas mudaram quando Virgulino Ferreira, o maior cangaceiro da história do país, conheceu Maria Gomes de Oliveira, a Maria Bonita. Por conta da paixão, alterou as regras do próprio cangaço e passou a “incorporar mulheres a uma organização militarizada, clandestina e baseada no nomadismo”.
Existiam normas de conduta, é claro. As moças só permaneciam no bando enquanto estivessem compromissadas com algum dos cangaceiros. As raras mulheres flagradas traindo seus parceiros eram penalizadas com a morte – vingar o chifre com sangue era parte do torpe código de honra dos bandoleiros. Como o grupo estava sempre em movimento, não havia casa que as moças precisassem cuidar, portanto estavam dispensadas dos serviços domésticos. E aquelas que optavam por – ou eram forçadas a – seguir com o bando, tinham algumas outras vantagens em relação às mulheres que levavam uma vida comum na região naquele mesmo começo de século 20.
“Havia uma dupla moral cangaceira. As companheiras levavam uma vida de liberdade inimaginável para os padrões sertanejos, mas, em ações públicas, o bando punia, por exemplo, moças de cabelo curto (anos depois, Maria introduziria o corte à la garçonne entre as cangaceiras, diante de um perplexo Lampião), maquiagem e roupas que mostravam o corpo – as mesmas que as garotas do bando usavam nos esconderijos. Qualquer postura que os cangaceiros julgassem indecente era castigada”, registra Barrera.
Também podiam beber e fumar. Maria Bonita, contudo, por mais que gostasse de um tabaco, não fumava na frente de Lampião – aquilo era visto como um sinal de respeito. Não que se submetesse sempre aos caprichos, desmandos ou absurdos vindos do chefe do cangaço. Logo que tiveram a única filha do casal que vingou, Expedita, Maria Bonita solicitou que o grupo se locomovesse mais devagar por conta do bebê. Lampião não gostou daquilo e ordenou que a mulher se livrasse do rebento. Furiosa, Maria Bonita recusou a ordem e atacou Lampião com uma cabaça. O homem apenas riu.
Indo além da relação entre os dois, o ágil livro de Barreira é uma boa pedida para quem deseja conhecer a história de Lampião, cuja trajetória traz muitos elementos em comum com a de outros homens e mulheres que despertaram o pavor, o ódio e a paixão de tantos pelo Brasil em diferentes épocas. Órfão, sem terra, sem dinheiro e querendo vingar a morte do pai, viu no cangaço uma chance para sobreviver e, quem sabe, ter alguma coisa na vida.
Perambulava por regiões desprezadas pelo Estado e que possuíam leis e moral próprias. Muitas vezes atuava não apenas como bandido, mas como o justiceiro de onde a justiça formal não existia. Apostava no terror para que, se não o respeitassem de fato, ao menos o temessem. Quando o próprio Estado ausente achou conveniente tê-lo como aliado – para combater a Coluna Prestes –, não se importou em abastecê-lo com armas, munição e dinheiro, além de lhe conferir patente militar. Mais tarde, o mesmo Estado o matou, degolou e exibiu sua cabeça em praça pública. Figura repleta de nuances, não por acaso sua história foi contada e romantizada por muita gente ao longo do tempo, por isso que Barreira opta por tratar boa parte dela como uma “ficção coletiva”, um acerto do jornalista:
“A história de Lampião é ficção coletiva, contada há quase um século por narradores e protagonistas dos eventos que, por vezes, moldam a História às suas necessidades, convicções e ambições, por autores que tomam partido ou simplesmente escancaram a ficção. Há de tudo nas narrativas, um arco que vai do herói sertanejo que combateu desigualdades, passa pelo homem de negócios que transformou o cangaço em meio de vida e chega ao assassino sanguinário, bandido sem escrúpulos. São formas justas e possíveis de tratar um sujeito complexo feito Lampião, que foi tudo isso – e muito mais”.
https://paginacinco.blogosfera.uol.com.br/2019/05/07/ensinar-que-machado-de-assis-foi-negro-tambem-sera-doutrinacao-ideologica/
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