LUÍS MARCELO MARCONDES E PEDRO VERÍSSIMO FERNANDES – A indústria brasileira gerava 27,4% dos empregos no início dos anos de 1970. Em 2014, esse número caiu para 10,9%.
A burguesia só pode existir se revolucionar os instrumentos de produção e, como consequência, as relações sociais. Nesse caso a referência veio de Marx e Engles, mas poderia vir de muitos autores liberais que embasaram parte das crenças capitalistas. A moda da vez é o empreendedorismo. “Seja uma empresa de si mesmo”, dizem. Uma versão 4.0 da ideia de “burguesia revolucionária”. Basta uma volta nas livrarias para constatar que essa ideia está presente na lista dos livros mais vendidos.Acontece que essa transformação constante a que somos convocados parece não surtir muito efeito quando tratamos da relação entre poder público e desenvolvimento econômico. Não é de hoje que vemos cidades se arruinarem por não diversificarem sua economia e ficarem reféns de poucas empresas, até mesmo uma, como principal fonte de arrecadação.
Esse texto inicia uma série de três matérias que tratarão das mudanças recentes do capitalismo e como as cidades vêm se adaptando, ou não, a essa nova lógica.
A arrecadação municipal e nossa falta de planejamento a longo prazo
O capitalismo traz em sua raiz a busca incessante por formas de baratear os custos de produções e maximizar os lucros. Neste processo surgem novas tecnologias e produtos, bem como a migração da produção para locais onde o custo da terra e mão de obra sejam mais baratas. Não faltam exemplos pelo mundo de regiões que foram verdadeiros eldorados industriais e que passaram por um processo de decadência econômica e social, deteriorando a condição de vida de milhões de pessoas. Talvez o caso mais emblemático seja o Rust Belt (Cinturão de Ferrugem), região compostas por cidades que até o início da década de 1980 lideravam a indústria metal-mecânica dos EUA, que testemunhou nos últimos 30 anos a debandada de fábricas.
No Brasil, a desindustrialização também é perceptível. Em estudo de 2017 que trata desse processo no país, os autores constataram que a participação da produção industrial no PIB brasileiro caiu de pouco mais de 35% em 1985 para menos de 15% em 2012. De acordo com o relatório da UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development), de 2016, a indústria brasileira gerava 27,4% dos empregos no início dos anos de 1970. Em 2014, esse número caiu para 10,9%.
Duas regiões do estado de São Paulo exemplificam bem esse drama, mas por razões distintas. A primeira delas é o polo têxtil de Americana, localizada na região metropolitana de Campinas, que durante décadas sustentou o título de principal polo têxtil do país até o processo de abertura econômica iniciado pelo então presidente Fernando Collor de Mello em 1990. A entrada indiscriminada de produto estrangeiro, em especial da China, foi um baque para economia local. Segundo informações do Sinditec (Sindicado das Indústrias de Tecelagem de Americana, Nova Odessa, Santa Bárbara D’Oeste e Sumaré), a alta carga tributária brasileira e o baixo preço do produto similar importado, justificado por uma carga tributária menor, além de subsídio por parte do governo chinês, têm sufocado as indústrias da região, que ano após ano se veem obrigadas a demitir milhares de trabalhadores.
A outra região que registrou uma brusca transformação em sua dinâmica econômica e social foi o Grande ABC, composta por sete municípios que integram a região metropolitana de São Paulo. Considerada berço da indústria nacional, a região abriga as principais montadoras do país, assim como toda uma rede de empresas que dão suporte a essa extensa cadeia produtiva. Recentemente, duas de suas cidades se viram no centro de uma possível crise com a ameaça de fechamento de duas importantes fábricas da região: a Ford, em São Bernardo do Campo, e General Motors, em São Caetano do Sul. Essa questão levantou debate sobre o quanto a economia da região, e principalmente dessas cidades, são dependentes da indústria automobilística, uma das que mais tem sofrido pressão das transformações tecnológicas e até dos hábitos de consumo, em que o carro está sendo visto cada vez mais como um serviço do que como um bem de depreciação rápida.
A chamada “uberização” não figura como nova categoria de trabalho por acaso. Além da nova relação do consumidor com o automóvel, esse processo se insere também como consequência das transformações nos modelos de produção. Mas trataremos melhor desse ponto no terceiro texto da série.
Um estudo publicado pelo Conjusc aponta que o PIB industrial da região encolheu 16% em termos nominais, passando de R$ 28,9 bilhões em 2013 para R$ 24,3 bilhões em 2016. Em termos reais, após descontar os efeitos da inflação, a retração foi de aproximadamente 39%, uma queda muito mais acentuada se comparada aos valores registrados no Estado de São Paulo (14,73%) e no Brasil (11,5%). A mesma tendência dramática se apresenta nas taxas de desemprego do ABC. A taxa média de desemprego agregada passou de 10,3%, em 2012, para 17,7%, em 2017. Entre 2014 e 2016, período em que a crise econômica se intensificou no país e especialmente na região, o número de desempregados passou de 126 mil para 243 mil.
Mas diferentemente do que ocorreu com a maioria das cidades do Rust Belt, que viu sua população encolher junto com sua economia, o ABC registra crescimento populacional, ainda que tímido. Desde o último Censo, em 2010, estimasse que a população cresceu 8,6% até 2018, saltando de 2,5 milhões de pessoas para 2,7.
A soma desses fatores coloca a região em uma posição de fragilidade perante as mudanças que têm ocorrido nas últimas décadas. Nem mesmo o esforço do governo estadual, que ofertou um pacote de incentivos para que as montadoras permaneçam onde estão, é um grande alívio, uma vez que a qualquer momento, com um plano de restruturação debaixo do braço, essas empresas podem deixar a região em busca de custos menores. A GM afirmou que irá permanecer com sua planta em São Caetano do Sul, apresentando um plano de investimento de R$ 5 bilhões nos próximos 10 anos. Já a saída da Ford de São Bernardo do Campo faz parte de um plano de reestruturação que aos poucos tem transformado sua planta em Camaçari na Bahia no principal centro de produção da marca no país. Estima-se que com o fechamento da montadora, 2,8 mil funcionários serão demitidos e a cidade deixará de arrecadar R$ 18,5 milhões.
O papel das políticas públicas
Mas mesmo com a possibilidade de a esfera estadual oferecer incentivos à indústria automobilística prevendo desonerações em troca de investimento e geração de emprego, os municípios, entes que lidam diretamente com as externalidades negativas e positivas desse tipo de atividade, deveriam se dedicar na elaboração de políticas públicas que diversifiquem sua matriz econômica.
Do ponto de vista econômico, por exemplo, pareceria rentável investir na indústria automobilística, a final de contas, o incentivo ao transporte individual ainda é grande e a construção de estradas, viadutos e todo tipo de obra urbana sempre foi um bom modelo para dar vazão ao capital excedente. Só para se ter uma ideia, “em apenas dois anos, de 2011 a 2012, a China produziu mais cimento que os Estados Unidos em todo o século XX”. Acontece que a mesma China que investiu pesado em obras urbanas como forma de fazer circular seu capital, também vem tomando grande parte do mercado industrial do mundo. Não cabe aqui discutir o motivo nem o modelo dessa nova lógica, a intenção é reforçar que a circulação e produção respeitam uma lei complexa de territorialização e reterritorialização. Desconsiderar esses fatores é arriscar demais em um mundo cada vez mais competitivo.
A realidade das grandes cidades se transforma muito rápido, independentemente de estarem planejadas ou não. Forças estão agindo o tempo todo para impor uma dinâmica mais célere e transformadora. E nada mais justo, para discutir tais questões que transformam nossos lugares de viver, que envolver a população nas tomadas de decisão.
Pesa sobre o planejamento urbano a pecha de ser tecnicista e verticalizado, em que o poder público determina os destinos. A lei brasileira prevê mecanismos de participação na elaboração e revisão dos planos diretores, no entanto a assimetria de informação e poder entre os atores envolvidos acaba resultando em planos orientados para os grupos mais fortes.
De maneira geral, a transformação urbana é determinada muito mais por pressões do mercado do que por orientação de um planejamento. Não por acaso as plantas de fábricas migram ao bel prazer de poucos investidores. O desenvolvimento de uma cidade é um processo complexo que demanda o envolvimento de todos os setores interessados e afetados por ações políticas e econômicas. É preciso planejamento e regras que preveem a revisão constante das estratégias.
É sobre esse tema que trataremos no nosso próximo texto. Como o poder público, as empresas e sociedade civil estão se organizando para discutir as cidades?
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