Política

Direita usa moralismo como arma desde antes da ditadura, diz historiador

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Daniel Buarque  – Professor da Universidade da Califórnia San Diego, Benjamin Cowan discute o uso do discurso moralista pelo presidente Jair Bolsonaro, diz que isso ecoa o que foi usado durante a ditadura militar e explica que este tipo de mobilização política é usado pela direita ao longo da história do país.

A publicação de um vídeo obsceno pelo presidente Jair Bolsonaro colocou em evidência a importância do discurso em torno de valores morais conservadores que levaram à sua ascensão ao posto mais alto do Executivo. O professor de relações internacionais na FGV Matias Spektor comentou o caso em sua coluna na Folha e indicou que este tipo de ativismo moralista deve ser visto como “um ato político da maior importância”, um “expediente de longo pedigree nos anais da história brasileira”.

Autor da principal referência para compreender o uso deste tipo de discurso por políticos ultraconservadores no Brasil desde a década 1920, historiador Benjamin Cowan alega que é possível relacionar este tipo de discurso moralista histórico com a ascensão de Bolsonaro, justificando a manutenção deste tipo de ativismo no novo governo brasileiro.

“A situação não é só comparável, mas diretamente relacionada. Os moralistas anticomunistas dos anos 1940, 1950, 1960, e 1970 tornaram-se a nova direita dos 1980, e juntaram-se com ainda mais aliados não só no Brasil mas também no exterior”, explicou Cowan em entrevista ao blog Brasilianismo.

Doutor pela UCLA e professor da University of California San Diego, Cowan estudou o radicalismo de direita, moralidade, sexualidade e imperialismo do século XX, tratando do caso do Brasil durante a Guerra Fria, com especialização na história cultural e de gênero da era pós-1964. Ele é autor do livro “Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil”, publicado pela University of North Carolina Press em 2016.

Na entrevista abaixo (concedida antes do carnaval), Cowan analisa as semelhanças e diferenças entre o ativismo conservador no Brasil, nos EUA de Donald Trump e em outras partes do mundo, avaliando a força da ascensão da nova direita internacional. “‘Direita’ tornou-se uma categoria identitária, cheia de paixões que têm pouco a ver com legislação ou política propriamente dita e mais a ver com reações a uma suposta mudança nos equilíbrios de poder (raciais, sociais, de gênero)”.

Brasilianismo – Seu livro fala sobre moralidade e repressão durante a ditadura. Acha que é uma situação comparável à da nova direita que chegou ao poder no país? Qual a relevância dessa moralidade para a direita brasileira?
Benjamin Cowan – A situação não é só comparável, mas diretamente relacionada. Os moralistas anticomunistas dos anos 1940, 1950, 1960, e 1970 tornaram-se a nova direita dos 1980, e juntaram-se com ainda mais aliados, não só no Brasil mas também no exterior. Basta pensar em figuras como Dom Geraldo Proença Sigaud [Arcebispo-emérito de Diamantina] ou em Dom Antônio de Castro Mayer [Bispo da Diocese de Campos]. Os dois começaram no grupo de ‘O Legionário’, passaram ao ativismo na TFP [Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade] e à liderança de grupos conservadores no contexto do Concílio Vaticano, tiveram influência na criação de um programa de moralismo dentro do regime militar, e desempenharam um papel essencial no desenvolvimento de um catolicismo conservador moralista, anticomunista, anti-progressista, pro-autoritário, tradicionalista, e anti-democrático, que formou parte da base da direita de hoje.

A vinculação entre oposição a mudanças morais/culturais percebidas como ameaças (feminismo e direitos LGBT, por exemplo, ou mesmo mudanças na estrutura familiar tradicional) e oposição aos estados de bem-estar e aos programas de redistribuição de renda não tem que ser assim — mas foi articulada por pessoas e organizações no Brasil que tiveram uma atuação muito importante no apoio à ditadura militar.

Brasilianismo – A eleição de Jair Bolsonaro no Brasil foi vista por muitos como um reflexo da ascensão de Donald Trump nos EUA, tanto que ele chegou a ser chamado de “Trump dos Trópicos”, mas seu trabalho acadêmico indica que as coisas não foram tão simples assim. Que tipo de influência a Nova Direita dos EUA realmente teve sobre o Brasil?
Benjamin Cowan – É uma ótima pergunta, mas para mim a questão seria mais sobre as influências que as direitas em ambos países tiveram entre si. Ou seja, a ultra-direita católica no Brasil, baseando-se em um passado fascista-integralista, e de reação à modernização cultural, econômica, social e religiosa do século XX, acabou tendo muito em comum não só com anti-modernistas evangélicos no Brasil, mas também com suas contrapartidas nos EUA. Portanto, criou-se um terreno comum entre ativistas norte-americanos e os do Brasil no que tocava a certos assuntos-chave: anticomunismo (de forma variavelmente relacionada com a realidade do comunismo); moralismo e tradicionalismo cultural; anti-modernismo nas doutrinas cristãs e especialmente oposição à Teologia da Libertação e outras manifestações de progressismo cristão; hostilidade frente aos estados de bem-estar, vistos como “socialistas”; e uma rejeição semelhante dos movimentos sociais, desde reivindicações para justiça social e de raça até o feminismo. Nesse contexto, fez-se muito mais fácil uma troca de idéias e de táticas entre as direitas do Hemisfério Norte e do Brasil, fazendo com que exista, hoje, uma agenda ou programa comum às direitas hemisféricas, e que a direita no Brasil possa chamar-se assim, descaradamente, num contexto nacional onde, antigamente, evitava-se auto-identificar-se como “de direita.”

Brasilianismo – Por outro lado, que importância tem o Brasil na ascensão da nova direita no mundo?
Benjamin Cowan – O Brasil, com sua história de um movimento fascista (integralismo) cujos expoentes voltaram ao poder, de certa forma, na ditadura de 1964-1985, tem um lugar privilegiado na gestação de uma Nova Direita. No Brasil, as ideias da época entre guerras, inclusive o anti-semitismo de figuras como Dom Geraldo Proença Signed e mesmo Plínio Salgado, nunca foram completamente vencidas ou desacreditadas. Na ditadura do pós-1964, essas figuras e outras (Alfredo Buzaid, Tarcísio Padilha) voltaram a ter poder e influência. Acho que isso faz parte da razão pela qual brasileiros desempenharam um papel importante em momentos como, por exemplo, a reação às reformas propostas no Concílio Vaticano II, ou na criação de organizações como a World Anti-Communist League (LAM), o Concílio Internacional de Igrejas Cristãs (CIIC), e o International Policy Forum (IPF), que buscavam unir forças conservadores atrás de fronteiras nacionais e de confissão religiosa.

Brasilianismo – Este movimento de direita do Brasil tem características próprias que o diferencia do que há em outros países?
Benjamin Cowan – Nenhum movimento—e nenhuma face ou facção de movimento, se pensarmos assim—é idêntica a qualquer outro. É claro que as direitas de hoje no Brasil têm particularidades que as fazem distintas entre si e com relação às direitas de outros países. Mas eu acho que, neste momento, as semelhanças são muito mais impressionantes e muito mais significativas. O fato de que a direita brasileira partilha tanto com as direitas do hemisfério norte de hoje (xenofobia, nacionalismo racial, racismo articulado, sexismo articulado, reação aos movimentos sociais e às poucas conquistas dos regimes anteriores em termos de valores democráticos-liberais e programas de redistribuição, para nomear alguns), nos convida a contemplar não só os fatores estruturais internacionais que facilitaram tais posições e os populismo que as propagam, mas também as organizações, instituições e indivíduos que fizeram com que os programas dessas direitas existissem e se comunicassem entre si. Dessa perspectiva, certos detalhes—o fato de a direita brasileira ser muito mais disposta a, por exemplo, usar a palavra “comunista” em vez de “socialista”, como ocorre nos EUA—não têm tanta importância para mim. É muito mais importante entender como ambos cenários direitistas vieram a poder persistir em se opor ao comunismo ou socialismo em um mundo onde esses sistemas de governo quase não existem.

Brasilianismo – Por muito tempo o Brasil parecia avesso ao rótulo de direita na política. Acha que isso realmente aconteceu e mudou nas últimas eleições, ou foi era um erro ver a situação assim?
Benjamin Cowan – Houve todo um processo de re-introdução da direita auto-identificada ou, vamos dizer, “assumida” na política brasileira. Penso no pastor Joanyr de Oliveira declarando em 1988 que: “Não há nenhum desdouro em ser conservador. A grande Margaret Thatcher não é conservadora? E não foi conservador o maior estadista que a Inglaterra produziu neste século, Winston Churchill? Não sei por que razão os conservadores têm medo de afirmar sua posição. Deixam-se intimidar pelas acusações de radicais que os chamam de retrógrados, de direitistas, de reacionários…”. Nesse instante, 30 anos antes da eleição do Bolsonaro, já vimos um movimento claro para se auto-afirmar como “direitista” ou “conservador”. E foi num contexto histórico específico de reação: fim da ditadura brasileira, começo de uma nova era democrática, empoderamento da nova direita não só no Brasil mas em todo o hemisfério, e consolidação de um programa que tomou por base um moralismo inerentemente vinculado com anticomunismo, anti-estatismo e pavor frente às mudanças propostas por “progressistas” dentro e fora das igrejas, desde modernistas na teologia até feministas e ativistas LGBT.

Brasilianismo – Que futuro vê para esses novos movimentos de direita no Brasil e no mundo?
Benjamin Cowan – Prognósticos não são, deveria dizer, a perícia que vem naturalmente ao historiador. Mas acho que há várias razões para temer um endurecimento das direitas no Brasil e no mundo. Primeiro, “direita” tornou-se uma categoria identitária, cheia de paixões que têm pouco a ver com legislação ou política propriamente dita e mais a ver com reações a uma suposta mudança nos equilíbrios de poder (raciais, sociais, de gênero) .

Em outras palavras, é muito difícil você convencer uma pessoa que pensa num passado mitificado de bem-estar e ordem geral, e que se auto-identifica como “conservador”—para reter um senso (real ou imaginado) de poder e controle—, que os movimentos sociais ou os programas de redistribuição de renda e poder não são um “zero-sum game” [jogo de soma zero] e não estão desenhados para tirar recursos de ninguém mas para ampliar os recursos de todos.

Segundo, as redes sociais e os formatos da mídia (quanto social como profissional/corporativa) facilitam que as pessoas se definam mais e mais nas suas posições identitárias, em vez de discutir posições ou programas ideológicos. Esses dois fatores, entre outros, dificultam qualquer troca de ideias, e muito menos possibilitam que as direitas decomponham-se por razão das suas contradições internas. Nesta altura, são posições identitárias, sem vinculação necessária a particularidades de legislação ou até de retórica (pense, por exemplo, na tendência de persistir em apoiar um Bolsonaro ou um Trump, retrucando que a retórica tão ofensiva deles não significa ou não tem efeitos na realidade política).

https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2019/03/10/direita-usa-moralismo-como-arma-desde-antes-da-ditadura-diz-historiador/

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