Asne Seierstad – Antes de supostamente matar 50 muçulmanos que rezavam em duas mesquitas de Christchurch, na Nova Zelândia, no dia 15 de março, Brenton Tarrant, um australiano de 28 anos, teria postado na internet um manifesto de 74 páginas intitulado “A Grande Substituição”. Em seu tratado, Tarrant escreveu que tinha uma única verdadeira inspiração: o terrorista político norueguês Anders Breivik, que matou 77 pessoas em 2011.
Sempre achei que Breivik era mais perigoso antes que soubéssemos quem ele era, quando tudo que tínhamos eram as fotos tratadas em Photoshop que ele havia postado na internet, onde aparecia alto, musculoso, loiro e ariano, posando com sua arma.
Breivik queria fama. Queria que seu manifesto, uma miscelânea de 1.500 páginas, fosse lido por muitos, e queria um palco, seu julgamento em Oslo. Ele via a bomba que detonou perto do gabinete do primeiro-ministro em Oslo e o massacre que executou na ilha de Utoya como o “lançamento” de seu livro. Ele contou à Justiça norueguesa que havia calculado quantas pessoas precisava matar para ser lido. Chegou ao número de doze, mas acabou matando 77.
Oito anos após o massacre na Noruega, o terrorista político norueguês continua sendo lido por seu público desejado: em fóruns de extrema-direita na internet, o termo “fazer o Breivik” significa um comprometimento completo com a causa.
Enquanto eu pesquisava sobre Breivik, processo durante o qual cheguei a trocar cartas com ele na prisão, encontrei uma vida repleta de vergonha, fracassos, maus tratos e rejeições. Um menino que nunca recebeu a atenção ou o cuidado que uma criança merece; um adolescente rejeitado e sem graça; um homem que já com quase 30 anos foi morar com sua mãe e praticamente só jogava videogames. Isolado e revoltado, mas com amigos recém-encontrados na dark web, ele decidiu como seria visto, ouvido, reconhecido e temido. Ele planejou seu ataque com uma plateia em mente.
Depois de publicado meu livro sobre Breivik, era comum me perguntarem: por que você divulga as palavras e métodos dele? Eu acreditava que ele seria mais perigoso como um símbolo e menos como uma inspiração quando visto com todos seus defeitos humanos. Após sua prisão, ele se queixava do café morno e da falta de creme hidratante na prisão, e reclamava por não ter um PlayStation 4.
Mas seus simpatizantes e seguidores ignoraram os textos críticos escritos por jornalistas e foram direto para seu manifesto, que continua atraindo novas audiências. Christopher Hasson, tenente da Guarda Costeira dos Estados Unidos e autointitulado nacionalista branco que queria desencadear uma guerra racial, se inspirou no norueguês.
O tratado de Tarrant é uma versão mais leve do manifesto de Breivik, repleto de referências a memes e piadas de internet, mas similar em conteúdo, estrutura e tom. Ambos publicaram seus textos na internet logo antes de seus ataques. Embora o norueguês não tenha conseguido transmitir seu ataque pelo YouTube como havia planejado, as autoridades dizem que Tarrant transmitiu seu ato terrorista ao vivo pelo Facebook.
Os dois homens misturam raiva com autopiedade. Eles se veem como vítimas e usam termos como “invasão”, “imigração em massa” e “genocídio branco” para descrever o que veem como a destruição da Europa e da raça branca. Tanto o australiano quanto o norueguês mal mencionam suas próprias pátrias e focam na Europa e nos Estados Unidos. Tarrant vê a população branca da Austrália e da Nova Zelândia como europeias.
Ele escreve como decidiu realizar sua “cartada final” depois de visitar a França em 2017, onde ele viu como os franceses europeus haviam sido “substituídos” pelos “não-brancos”. Daí o título de seu manifesto: “A Grande Substituição”.
Assim como o norueguês, Tarrant é obcecado por índices de natalidade e descreve a Europa como um continente que está se enfraquecendo e envelhecendo. O terrorista norueguês queria criar maternidades estatais onde mães loiras e de olhos azuis dariam à luz uma dúzia de crianças cada. Tarrant quer recuperar aquilo que ele chama de “valores de família tradicionais”.
Embora o manifesto de Tarrant seja direcionado para sua plateia na dark web, às vezes em linguagem cifrada, ele tenta criar um contexto de normalidade ao citar poemas de Rudyard Kipling e referir-se a figuras de direita mais conhecidas. Da mesma maneira, Breivik costumava citar pessoas como Thomas Jefferson, como se ele fosse o devido herdeiro de ideias consolidadas.
O principal objetivo deles é o mesmo: acabar com a imigração muçulmana. Tarrant quer “deportar esses invasores que já vivem em nosso solo”. Breivik sugeriu que todos os muçulmanos deveriam ter a chance de se converter ao cristianismo e assumir um nome cristão. Aqueles que não obedecessem seriam deportados ou executados. Todos os exemplos de arte islâmica deveriam ser destruídos, inclusive todas as mesquitas; línguas como árabe, farsi, urdu e somali seriam proibidas.
Uma das mesquitas atacadas na Nova Zelândia foi construída em um local onde costumava ficar uma igreja. Enquanto o atirador de Christchurch mirou diretamente em seus alvos, Breivik queria matar os chamados traidores, membros da elite progressista e do Partido Trabalhista que haviam deixado os muçulmanos entrarem no país.
Ambos mencionaram em seus textos que se sacrificariam por uma causa maior e previam que seriam soltos da prisão por seus seguidores, depois que uma “revolução conservadora” tomasse conta do mundo.
Breivik foi diagnosticado com transtorno de personalidade narcisista por psiquiatras forenses; Tarrant exibe características similares. Ele escreveu em seu manifesto que não só espera ser solto, como também prevê que receberá o Prêmio Nobel da Paz. Ele deverá estar livre depois de 27 anos, escreveu, como Nelson Mandela, depois de cumprir pena “pelo mesmo crime”.
Embora partes do manifesto de Breivik possam ser lidas como um manual para um ato de terrorismo, ele é um chamado à ação. Tarrant repete esse chamado, ao escrever: “Enquanto você espera por um sinal, seu povo espera por você”. Ambos se descreveram como fascistas e usaram metáforas de guerra para justificar os assassinatos.
Somos cúmplices em disseminar as ideias desses fascistas ao escrevermos sobre eles? A resposta é não. A radicalização acontece antes de tudo na internet, onde extremistas violentos se encontram e incitam uns aos outros, e onde eles deveriam ser rastreados e monitorados.
Não podemos nos permitir ser ignorantes. Para combater o terrorismo, precisamos investigar como os indivíduos se tornam terroristas. Precisamos analisar e expor os pensamentos fascistas e a violência.
Pessoas como Breivik e Tarrant espalham mitos e conspirações travestidas de fatos. Eles usam armas para serem lidos. Seus pensamentos vicejam na escuridão, feitos sob medida para uma comunidade clandestina. Precisamos expor as ideias e as vidas desses supremacistas brancos. Somente então poderemos dissecá-los adequadamente.
https://noticias.uol.com.br/midiaglobal/the-international-new-york-times/2019/03/20/opiniao-para-combater-o-terrorismo-branco-precisamos-expor-os-pensamentos-fascistas-e-a-violencia.htm
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