Política

“É o pior início de governo desde o fim da ditadura”

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Gabriel Brito – O go­verno de Jair Bol­so­naro com­pleta três meses e os tra­di­ci­o­nais 100 dias de paz po­lí­tica para apre­sentar suas cre­den­ciais pas­saram longe de ser a marca do pe­ríodo. Em meio a epi­só­dios con­fusos e cons­tran­gi­mentos quase diá­rios, a in­só­lita prisão do ex-pre­si­dente Mi­chel Temer. Em en­tre­vista ao Cor­reio, o so­ció­logo Ruda Guedes Ricci afirma que “Bol­so­naro não con­se­guiu as­sumir a in­ves­ti­dura de pre­si­dente da Re­pú­blica. Ele não di­rige o Exe­cu­tivo. Há um vazio de poder que os mi­li­tares tentam ocupar. Isso pre­cisa ficar muito claro”.

Sobre a breve prisão de Temer, Ruda en­quadra como uma re­ve­lação das dis­putas entre o novo e o an­tigo bloco de poder. Com van­tagem para as ve­lhas ra­posas da po­lí­tica bra­si­leira.

“Isso veio numa toada de ata­ques e pressão ao Go­verno Fe­deral, uma vez que Maia ten­tava au­mentar seu es­paço e de seu par­tido, através da di­mi­nuição de es­paços do go­verno e im­po­sição de al­gumas der­rotas em vo­ta­ções. Bol­so­naro não cedeu e o Exe­cu­tivo re­solveu atacar com a prisão de Temer. Deu er­rado, porque Maia cercou o go­verno.”, ana­lisou.

Além de cri­ticar a vi­sita de Bol­so­naro aos Es­tados Unidos, na qual nada de con­creto foi tra­zido ao Brasil, Ricci também co­menta o atual mo­mento da opo­sição de es­querda, des­man­te­lada pela di­nâ­mica po­lí­tica dos anos em que teve livre acesso ao go­verno e a crise dos sin­di­catos. Mas afirma que há um “re­torno aos eixos” do país após o avanço da ex­trema-di­reita nas ruas e urnas.

“Em pri­meiro lugar, é grande a falta de co­or­de­nação. Os mi­nis­té­rios pa­recem, vá­rios deles, um go­verno solo, que não com­põem um con­junto de mi­nis­té­rios li­de­rados por um go­verno (….) A saída par­la­mentar já é tra­tada por al­guns com de­sen­vol­tura. Os mi­li­tares não querem golpe, não querem uma ação fora das ló­gicas e re­gras cons­ti­tu­ci­o­nais, pois sabem que têm a imagem ma­cu­lada de­pois do re­gime mi­litar”, sin­te­tizou.

A en­tre­vista com­pleta com Ruda Guedes Ricci pode ser lida a se­guir.

Cor­reio da Ci­da­dania: Como você ava­liou a prisão e sol­tura de Temer em poucos dias? O que sig­ni­fica no atual con­texto? 

Ruda Guedes Ricci: A prisão, como vá­rias da ope­ração, não ocorreu dentro da nor­ma­li­dade. Em mo­mento algum Temer si­na­lizou pos­sível fuga do país ou se ve­ri­ficou algum ato de obs­trução de jus­tiça. Não há mo­tivo para prendê-lo por in­dí­cios de cor­rupção antes do di­reito à de­fesa e sem ne­nhuma si­tu­ação que gera di­fi­cul­dade na apu­ração de fato apa­ren­te­mente ilí­cito. No es­tado de­mo­crá­tico de di­reito há pro­ce­di­mentos a cum­prir, nos quais a pessoa é ino­cente até prova em con­trário. É um ci­dadão com plenos di­reitos.

A prisão do Temer foi mais uma ação de uso do Ju­di­ciário e da lei para atacar e pres­si­onar po­li­ti­ca­mente algum poder cons­ti­tuído. No caso, ficou evi­dente uma ação de­li­be­rada do Exe­cu­tivo fe­deral contra o Le­gis­la­tivo, em es­pe­cial a Câ­mara dos De­pu­tados, con­si­de­rando também a prisão do Mo­reira Franco, que tem pa­ren­tesco com o Ro­drigo Maia.

Isso veio numa toada de ata­ques e pressão ao Go­verno Fe­deral, uma vez que Maia ten­tava au­mentar seu es­paço e de seu par­tido, através da di­mi­nuição de es­paços do go­verno e im­po­sição de al­gumas der­rotas em vo­ta­ções, como no caso da Me­dida Pro­vi­sória que im­pedia acesso à in­for­mação pú­blica fe­deral. Ele der­rotou aquela MP e em se­guida afirmou que “o DEM está dis­posto a me­lhorar o fluxo do go­verno na Câ­mara e no Se­nado”, duas casas di­ri­gidas pelo DEM, em troca de mais es­paço. Bol­so­naro não cedeu e o Exe­cu­tivo re­solveu atacar com a prisão de Temer. Deu er­rado, porque Maia cercou o go­verno.

É uma prisão muito es­tranha e ex­tem­po­rânea, em­bora haja in­dí­cios de que, de fato, Mi­chel Temer tenha co­me­tido crimes. Mas temos de se­guir as re­gras de­mo­crá­ticas.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que dizer da Lava Jato a esta al­tura?

Ruda Guedes Ricci: Não re­sisto ao tro­ca­dilho: está fa­zendo água. Não é in­tenção do Bol­so­naro, tanto que tem Moro como mi­nistro, mas desde que as­sumiu são der­rotas atrás de der­rotas da Ope­ração. É pos­sível que aquele arco de ali­anças que apoiava a Lava Jato contra o PT tenha com­pre­en­dido que a ope­ração já cum­priu a ta­refa de tirar o an­tigo go­verno e se se­guir em frente vai pegar os alvos não pe­tistas. Assim, já teria “ba­tido no teto”.

Tenho a im­pressão de que daqui em di­ante vamos ter vá­rias mu­danças no clima po­lí­tico vi­vido pelo Brasil desde 2015. Para lem­brar, o ápice da ex­trema-di­reita no Brasil e mo­bi­li­zação da po­pu­lação contra pautas de es­querda foi, se­gundo o Vox Po­puli, de­zembro de 2015. A partir de então, co­meçou a cair a par­cela da po­pu­lação que pede volta da di­ta­dura, prega o ódio etc. O voto con­ser­vador se es­ta­bi­lizou, mas não o ra­dical de ex­trema-di­reita.

Sig­ni­fica que, len­ta­mente, o país co­meça a voltar aos eixos e deixar os ar­roubos de lado, cujo ápice foi 2015. A Lava Jato de certa forma está no bojo deste re­torno do bu­me­rangue po­lí­tico-ide­o­ló­gico bra­si­leiro. Foi ao li­mite do es­paço aberto pela ex­trema-di­reita em 2015 e co­meça a voltar ao normal. Nisso, vemos a queda ace­le­rada de po­pu­la­ri­dade do go­verno Bol­so­naro, fruto de tal con­texto.

Cor­reio da Ci­da­dania: Nesse sen­tido da queda da po­pu­la­ri­dade do pre­si­dente, qual ava­li­ação pode ser feita no mo­mento em que serão com­ple­tados os pri­meiros 100 dias de go­verno, tra­di­ci­o­nal­mente um pe­ríodo de maior com­pre­ensão por parte do pú­blico? 

Ruda Guedes Ricci: Um de­sastre com­pleto. É o go­verno de início mais de­sas­troso desde o fim do re­gime mi­litar. Em pri­meiro lugar, é grande a falta de co­or­de­nação. Os mi­nis­té­rios pa­recem, vá­rios deles, um go­verno solo, que não com­põem um con­junto de mi­nis­té­rios li­de­rados por um go­verno. Fica evi­dente que nunca houve pro­jeto po­lí­tico es­tra­té­gico.

Dessa forma, co­meça a ser cor­ro­bo­rada uma tese forte do ano pas­sado: o bloco que o levou ao poder não ima­gi­nava que ven­ceria a eleição. Só no final do pri­meiro turno co­meçou a per­ceber a pos­si­bi­li­dade. É um go­verno sem co­or­de­nação e pro­jeto, que perdeu as bases no Con­gresso. E há um dis­curso nos bas­ti­dores de que os mi­li­tares de dentro do go­verno já co­meçam a dis­cutir in­ter­na­mente a saída par­la­men­ta­rista, a fim de di­mi­nuir o poder de Bol­so­naro. É o início de uma si­tu­ação cons­tran­ge­dora para o Exér­cito.

A si­tu­ação do pre­si­dente é a pior pos­sível, ini­ma­gi­nável para quem viu sua vi­tória. Uma vi­tória emo­ci­onal, jo­gando muito pe­sado em cima da his­tória da fa­cada e também da onda de fake news, em es­pe­cial na reta final do pri­meiro turno e início do se­gundo.

Mas, de fato, há uma di­fe­rença muito grande entre ga­nhar uma eleição e ter poder para go­vernar. Ele con­se­guiu ga­nhar uma eleição, mas não tem base po­lí­tica e nem so­cial para dar rumo ao go­verno.

Cor­reio da Ci­da­dania: As es­pe­cu­la­ções de que o mer­cado pode pular fora da barca do go­verno, além do tra­ta­mento que al­guns em­pre­sá­rios deram ao ge­neral Mourão em evento na Fiesp na úl­tima se­mana, sig­ni­ficam o que em sua visão? 

Ruda Guedes Ricci: Em pri­meiro lugar, em fe­ve­reiro, no pe­ríodo de re­cu­pe­ração pós-ope­ra­tória de Bol­so­naro, o Re­la­tório Re­ser­vado, pu­bli­cação criada em 1966, uma das mais lon­gevas do país e vol­tada ao em­pre­sa­riado, já des­ta­cava que os mi­li­tares ti­nham de­ci­dido pelo que se cha­mava de “tu­tela mi­litar do go­verno”. Já havia uma cisão no go­verno.

Vale lem­brar que os mi­li­tares têm cerca de 130 cargos de pri­meiro e se­gundo es­ca­lões, oito mi­nis­tros e o vice-pre­si­dente. É o prin­cipal bloco no in­te­rior do go­verno, em termos de co­esão. De­pois tem o bloco dos em­pre­sá­rios, ca­pi­ta­neado pelo Paulo Guedes, e os evan­gé­licos. Mas ne­nhum dos dois tem a mesma força.

A saída par­la­mentar já é tra­tada por al­guns com de­sen­vol­tura. Os mi­li­tares não querem golpe, não querem uma ação fora das ló­gicas e re­gras cons­ti­tu­ci­o­nais, pois sabem que têm a imagem ma­cu­lada de­pois do re­gime mi­litar.

A si­tu­ação é: Bol­so­naro está iso­lado. É o pior mo­mento de sua vida po­lí­tica. Os fi­lhos atra­pa­lham; há re­la­ções com mi­lí­cias; no­me­a­ções obs­curas de as­ses­sores; a morte da Ma­ri­elle; gastos com cartão de cré­dito cor­po­ra­tivo; pro­nun­ci­a­mentos in­de­vidos, com ata­ques a ou­tros países des­ca­bidos para a maior au­to­ri­dade na­ci­onal, como se es­ti­vesse no pa­lanque de cam­panha. Isso tudo afeta sua li­de­rança de forma ace­le­rada e hoje ele está na mesma al­tura de antes: um mero par­la­mentar.

Bol­so­naro não con­se­guiu as­sumir a in­ves­ti­dura de pre­si­dente da Re­pú­blica. Ele não di­rige o Exe­cu­tivo. Há um vazio de poder que os mi­li­tares tentam ocupar. Isso pre­cisa ficar muito claro.

Quanto aos em­pre­sá­rios, eles pres­si­onam pela Re­forma da Pre­vi­dência, mas ao que pa­rece não será apro­vada se co­lo­cada em vo­tação. Pos­si­vel­mente, será fa­tiada para que os itens mais caros sejam ne­go­ci­ados e pre­serve-se o con­junto da obra. O que é cen­tral nela? A ca­pi­ta­li­zação da Pre­vi­dência e a cri­ação da pre­vi­dência pri­vada, prin­ci­pal­mente para seg­mentos da po­pu­lação de renda média ou média-alta.

Paulo Guedes ne­gocia com sin­di­catos de ser­vi­dores pú­blicos fe­de­rais a volta de uma con­tri­buição pa­re­cida com a CPMF e com ela os em­pre­sá­rios dei­xa­riam de re­co­lher sua parte para o fi­nan­ci­a­mento da Pre­vi­dência. E com este fundo se ban­caria a pre­vi­dência pú­blica dos mais po­bres. Quase sempre as no­tí­cias não re­velam as ne­go­ci­a­ções efe­ti­va­mente em curso, que dão a en­tender que a re­forma não tem voto no Con­gresso Na­ci­onal hoje.

Cor­reio da Ci­da­dania: Sobre a vi­sita de Bol­so­naro aos Es­tados Unidos o que você co­menta e como ela co­loca o Brasil re­gi­onal e glo­bal­mente?

Ruda Guedes Ricci: Ficou a im­pressão de que Bol­so­naro achava que es­tava na Dis­ney­lândia. Ele não trouxe nada ao país. E o que pa­recia estar tra­zendo para a área econô­mica o agro­ne­gócio re­jeitou. Ele voltou com um boné. Essa foi a grande van­tagem da vi­agem: um boné do Trump.

Não houve van­tagem ou li­de­rança ne­nhuma, ele su­bor­dinou a li­de­rança do en­contro ao Trump e não ob­teve nada. Como dito, foi pas­sear na Disney.

Cor­reio da Ci­da­dania: Con­si­dera que já existem res­postas opo­si­ci­o­nistas ao que está em an­da­mento? Como en­xerga o papel de se­tores de es­querda que foram go­verno por mais de uma dé­cada e agora se en­con­tram nesta po­sição?

Ruda Guedes Ricci: O que se per­cebe é: temos um bloco de ex­trema-di­reita que avançou muito nas elei­ções em queda, em de­ses­tru­tu­ração. O PSL, a se­gunda ban­cada, é um par­tido sem li­de­rança, ra­chado, de­ses­tru­tu­rado. Vemos novo avanço de se­tores con­ser­va­dores e de centro-di­reita. Mas não vemos uma es­querda ocupar es­paço. Vemos eventos po­lí­ticos da es­querda, mas esta não tem pro­jeto es­tra­té­gico uni­fi­cado. E ainda sente muita di­fi­cul­dade para lidar com a base da so­ci­e­dade bra­si­leira.

Isso porque du­rantes os go­vernos lu­listas os mo­vi­mentos so­ciais se con­cen­traram nas ne­go­ci­a­ções com o Es­tado. O mo­vi­mento de ha­bi­tação sen­tava pra ne­go­ciar com a Caixa Econô­mica Fe­deral; o de edu­cação com o MEC; o da agri­cul­tura fa­mi­liar com o Mi­nis­tério do De­sen­vol­vi­mento Agrário; o de luta pela terra com o INCRA etc. Tal ló­gica de frag­men­tação, que tem como base a fo­ca­li­zação das po­lí­ticas so­ciais, e não mais sua uni­ver­sa­li­zação, calou fundo nos mo­vi­mentos so­ciais. Por isso está tão di­fícil uni­ficar a agenda.

Pa­ra­le­la­mente, temos uma crise no mo­vi­mento sin­dical e sua fonte de fi­nan­ci­a­mento, dado que a Re­forma Tra­ba­lhista tirou o im­posto sin­dical e agora se exige que a men­sa­li­dade de­ci­dida em as­sem­bleia seja paga pelo tra­ba­lhador em bo­leto, in­di­vi­du­al­mente.

Fi­nal­mente, há uma mu­dança de ca­rac­te­rís­ticas da so­ci­e­dade, con­forme dados do Vox Po­puli. O elei­to­rado de es­querda tem hoje a mesma di­mensão do de di­reita, cerca de 30%. A an­ti­es­querda, do dis­curso de ódio, só 8%. O res­tante con­fi­gura 40%. Esses 40%, de­pen­dendo do lado para o qual pen­derem, dão a eleição para algum can­di­dato. Lula con­se­guiu abo­ca­nhar grande parte desta faixa e seu par­tido venceu quatro elei­ções.

Com a es­querda des­gar­rada de sua base so­cial após o des­gaste de seus go­vernos, Bol­so­naro con­se­guiu atrair parte sig­ni­fi­ca­tiva deste bloco, so­mado ao per­cen­tual já de di­reita. E quem saiu da base lu­lista e foi para a base de Bol­so­naro? Os evan­gé­licos, prin­ci­pal­mente as mu­lheres. Haddad teve leve van­tagem entre ca­tó­licos. Entre evan­gé­licos(as) a van­tagem de Bol­so­naro era quase o triplo. E este elei­to­rado se pre­o­cupa com a questão da fa­mília, sobre a qual a es­querda não con­segue falar. A es­querda sabe falar de di­reitos co­le­tivos dos tra­ba­lha­dores, não de fa­mília.

Mas tal elei­to­rado está pre­o­cu­pado com a fa­mília, sua uni­dade mais bá­sica. Por isso du­rante a onda das fake news o grande alvo não eram os co­mu­nistas ou a es­querda; eram mu­lheres e gays que querem “hor­ro­rizar” a vida das fa­mí­lias, cri­anças e “mu­lheres ho­nestas”. A questão se­xual que di­vide es­querda e di­reita é o fun­da­mento da dis­puta ide­o­ló­gica de va­lores da so­ci­e­dade. A es­querda, sin­di­catos e mo­vi­mentos so­ciais (os úl­timos até con­se­guem) não falam deste tema e assim perdem es­paço.

http://www.correiocidadania.com.br/34-artigos/manchete/13720-e-o-pior-inicio-de-governo-desde-o-fim-da-ditadura-2

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