Bruno Xavier Martins – Sobre Brumadinho vemos todos os dias, e em todos os jornais, uma nova contabilidade de mortos e desaparecidos. Os números operam em sentido inversamente proporcional: sobem os de mortos na medida em que baixam os de desaparecidos. Mas de que serve essa contagem focada no puro deleite dos próprios números, escoando inevitavelmente do segundo para o primeiro, se já bem sabemos o resultado da equação? A resposta indica, apenas, que nos números vamos, pouco a pouco, nos confundindo…
O mau tempo continua. Novos desastres são aguardados.
Guy de Maupassant
Enquanto não se afirma que são 347 mortos, decodificaremos o imenso número de 226 desaparecidos como a fagulha da esperança (?!) em Brumadinho. Esses são os dados de sábado, dia 02/02/2019, retirados do jornal Folha de São Paulo: 121 mortos e 226 desaparecidos que, juntos, dão o número de 347, nunca mencionados nos meios de comunicação. Esperemos, então, mas a verdade é que a peste mineira dá as caras novamente, expondo, ao mesmo tempo, as rugas do passado e um sorriso cínico acompanhado daquela piscadela sapeca de um olho só, como quem diz: te vejo no futuro.
São mortos e são esses 347. Já são, com certeza. Já eram, com altíssima probabilidade. E igualmente serão. Um exame transistórico. Houve no mundo igual número de pestes e de catástrofes. E ambas encontraram as pessoas igualmente desprevenidas. A peste mineira, no entanto, tem sua peculiaridade: ela anuncia a sua chegada, há séculos. E retorna, sempre. Se poderia dizer que haviam alcançado a paz estes indivíduos que sujavam os próprios sonhos com a eterna promessa de que um lodaçal putrefato a qualquer momento lhes arrancaria a terra verde do horizonte? Destruiria a horta, o bar, a igreja? Entraria pela cozinha, sala, quarto? Levaria ao mesmo tempo as memórias, o presente e o futuro? Viviam à sombra da morte catastrófica. Novos desastres, porém, são aguardados. A peste continua a passos largos.
Cumpre não perder de vista que o meteorito de Bendegó, alojado no Museu Nacional desde os finais do Império, sobreviveu ao fogo total do acervo no incêndio de 2018 que consumiu grande parte da historiografia material brasileira. Cumpre não perder de vista com o ato de Fênix do meteorito, que sua ressurgência das cinzas do museu incinerado é o sinal da concomitância cínica dos acontecimentos nacionais quiméricos que ele representa na história, tendo encontrado, em sua primeira aparição em nossas terras, o contexto de um Império decadente em transição a uma República desde sempre despedaçada. Bendegó nos vem agora com outro recado, fiquemos atentos!
Bendegó: maior metorito do Brasil e um dos maiores do mundo
Enquanto desciam do sertão baiano um maciço de ferro caído do céu, “vagaroso, silencioso e científico”, como disse Machado, com destino à capital do Império, era decretado o fim da escravidão negra mais longa da história mundial. Enquanto isso acontecia (talvez o maior acontecimento da história brasileira), uma imensa expedição da Sociedade Brasileira de Geografia e do exército imperial, liderado pelo comandante José Carlos de Carvalho, se encontrava focada em trazer para o Rio de Janeiro, em comitivas epopéicas de carros de bois e contingente humano sem fim, um pedaço de ferro disforme que caíra do céu. Fico imaginando o que passa pela cabeça do meteorito de Bendegó no contexto atual em que vivemos a sucessão de acontecimentos trágicos e a promessa declarada de tantos outros. O fogo lhe despertou em 2018 e não parece ter sido à toa.
De certo, percebeu piora. É inevitável a análise. Depois de uma longa jornada pela galáxia e um imenso périplo em terras brasileiras, presenciando a Guerra de Canudos, o flagelo, a miséria e a fome do sertão, ao menos desembarcaria em terras cariocas já com a libertação negra. Não fosse o bastante, eternizou em importante acervo do Museu Nacional, ainda que a serviço da tentativa patética (e frustrada) de servir de símbolo das intenções em se manter vivo o Império. Mas e agora? O que o meteorito vê senão uma sucessão de desgraças? Diz-se por aí que ele anda com desejos de voltar pro espaço, que as coisas estão mudadas por essas bandas e que no tempo dele, para cada grande desgraça, surgia ao menos um bom decreto compensatório.
Visita de Einstein ao Museu Nacional em 1925, acompanhado pelo comandante José Carlos de Carvalho e outros membros do exército brasileiro
A peste (epidemia, cólera, desgraça, como quiser chamar), toca mais uma vez o território mineiro e leva embora a tudo e a todos, inclementemente. 347? Não seria mais certo acrescentar a esse número também os outros crimes já consumados desde a criação da Vale do Rio Doce, como bem nos lembra Drummond? Ou então toda a horda de mercadorias negras trazidas para morrer prematuramente nos navios, nas minas, no chicote, na casa dos senhores? Jogamos ainda uma pitada indígena na refoga inicial que preparou o caldeirão da Colônia com o delicioso sangue nativo, formando a base de uma receita que deixa agora o Bendegó numa sinuca de bico.
“Junto a isso, um ‘bom’ decreto? Junto à tragédia de Brumadinho, me recompensas algo?” Perguntaria o colosso de mais de 5 toneladas. Não! Junto a isso a “gente frouxa”, em uma grande frente nacional, preparada para perpetuar a peste mineira pelos vales das duas principais bacias hidrográficas do estado: Rio Doce e São Francisco. Acrescente à lista da “gente frouxa”, caro Nuno Ramos, mais gente, todos que puder pensar. Acrescente ainda, além das pessoas influentes de hoje, os governos do passado, o Império, a Colônia, a forma como se deu a nossa história e a de todo o mundo. Tem saída? Temos uma pedra no sapato, uma pedra que, ao machucar, produz riqueza. Ora, por favor, não tentem dissociar uma coisa da outra. É preciso andar, sempre.
Você, caro leitor, conhece alguma vítima dessa última peste? Dos 347 mortos? Conhece algum dos escravos mortos nas minas? Algum indígena escravizado em nome de Deus e do progresso? Não conhece ninguém, não é mesmo, cara pálida? Então, e até por isso, me parece por bem juntar aos 347, os 19 de Mariana, os milhões da Colônia e do Império e chegaremos a um belo número! Semeados ao longo da história, porém, os milhões de cadáveres pulverizam-se na imaginação, perdem a importância e tornam-se, por assim dizer, números. Quando a peste ataca, já é muito saber o que é um morto. Entre as tantas tragédias, vamos ganhando, por força do hábito, a prática de compará-las. A de Mariana não foi tão grande assim. Lembra a de Brumadinho? Mas comparado à escravidão…
Pensei hoje, apenas por hipótese: mataram os honoráveis donos da Vale. Logo na sequência, forças maiores, não satisfeitas, mataram ao restante da família, todo o corpo do Conselho empresarial, além de destruírem casas, apartamentos e as escolas de seus filhos. Sem piedade, degolaram também seus acionistas espalhados pelo mundo. Encontraram, seguramente, os culpados por tais crimes contra a mineradora. Corre na justiça a condenação de genocídio, em homicídio doloso, quantificado em 347 anos de prisão, agravados em mais 19 por terem usado armas letais e, por fim, prisão perpétua, em uma estranha conta que alcançara também outros crimes ocorridos contra a família, no passado e no futuro.
Artigo enviado pelo autor
Deixe uma resposta