Priscila Figueiredo – Civilização em declínio: o que um filme sobre a força da “Jihad” pode dizer a respeito dos que, humilhados pela ordem, encontraram caminho apenas na ultra-direita.
O filme tunisiano Meu querido filho, de Mohammed Ben Attia, tem muito de um estampido seco. Acho que esse efeito migra para dentro do espectador também, que é tomado depois de uma tristeza seca, abafada, com a qual não é possível chorar. A primeira cena nos surpreende com um vômito escancarado, vermelho, amarelo, e faz lembrar um tanto os irmãos Dardenne a câmera desde então pegada nos atores – muitas vezes nas costas do pai, Riadh, no corpo afadigado do operador de guindastes, que no entanto se movimenta nervoso de lá pra cá e cujas ações são muitas vezes interrompidas pela montagem, com o sentido da trama custando a se formar até certa altura. Depois sabemos que o vômito está ligado a uma enxaqueca, e muitas cenas depois que esta pode apontar para uma depressão. O filho, Sami, interpretado por um ator de rosto angelical e um olhar levemente estrábico, o que aumenta a impressão que temos de ser um jovem sensível e deslocado, de fato dá sinais disso: isola-se no quarto, parece estressado demais com as provas do vestibular que se aproxima, vai a uma festa e se sente um peixe fora dágua, não atende a telefonemas dos pais, cuja vida parece se movimentar só em torno dele e sua doença. Um belo dia, o estudante desaparece e leva todos os pertences com ele. Descobre-se que foi para a Síria e pouco depois que ingressou no Estado Islâmico. Riahd resolve ir buscá-lo, passa pela Turquia, depois por cidades já no país de destino, e numa delas um velho homem que administra uma hospedaria diz algo assim: “Essa cidade atraía turistas pelos sítios arqueológicos, agora é rota de jihadistas”. Os lugares pelos quais passa o viajante apresentam de fato ruínas mais recentes, justapostas aos vestígios de civilizações milenares, mas, desde que façamos a abstração destes, os planos que destacam essas zonas de passagem para milícias nos devolvem ao Brasil e sua paisagem urbana deteriorada, assim como tantos trechos de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro nos evocam essas paisagens longínquas estilhaçadas pela guerra,
Talvez tenha sido a frase do homem um resquício diurno do sonho que o pai tem à noite: jihadistas correm se esgueirando entre ruínas. Um deles parece o filho, é o filho, ele consegue alcançá-lo, o abraça muito forte, mas, se me recordo direito, o moço se paralisa não apenas para seguir o pai, mas também para seguir seus companheiros terroristas. Ele senta no chão, o velho roga que se levante, puxa-o pelo braço, mas o rapaz, invadido de melancolia, se fixa como uma pedra no meio do seu próprio caminho, inamovível, e ao apelo para voltar ele responde “Não tem sentido”, frase que ecoa a cada motivo que o pai apresenta: para fazer faculdade, para ter filhos etc. “Prefiro não”, como uma espécie de Bartleby, menos resistente ou turrão que desprovido de todo élan vital porque a vida lhe é tão estranha. Mas esse é um sonho, e em realidade Sami de fato se juntou ao Ísis, o que, em contraponto com a cena onírica onde víamos uma espécie de dupla deserção que o fazia estacar entre o pai que quer levá-lo e os companheiros em fuga, indica que sua entrada no movimento derivaria menos de convicção que de desesperança. Ele, que não pôde se animar no quadro reduzido de expectativas em que lhe foi dado viver, escolheu ao menos a forma pela qual teria sua dissolução.
Tempos depois de o pai já ter retornado para junto de Nazli, a esposa, vemos Sami –sem que houvesse na narrativa nenhum alarde ou preparação dramática para isso –numa imagem de Skype, sentado com uma mulher usando burka e um bebê no colo. A mãe, na Tunísia, reclama muito nervosa da falta de som do computador, e nós experimentamos mais uma vez aquela sensação de estampido seco, provocado pela percepção de uma deriva radical, muito fora do ordinário, que no entanto ocorreu e segue em sua “normalidade” específica. Aumenta para nós a impressão de frontalismo, mas também o teor fugitivo, inapreensível, da imagem na tela dentro da tela, o fato de o filho mexer a boca sem que possamos ouvir o que diz, com a moça a seu lado calada, embora tranquila e risonha, formando ambos com a criança uma espécie de ícone de uma família primordial. Ele se conectou, se reaproximou, mas é na verdade uma sombra remota, como num sonho angustiante em que alguém familiar ressurge, às vezes dentre uma névoa, gesticulando, movendo os lábios, mas nada do que diz é sonoro, pois ele está entre nós como uma efígie muda do que foi e já pertence a um mundo longínquo. Como Alceste, que na peça de Eurípedes está impossibilitada de se comunicar por uma espécie de quarentena ritual a ser observada pelos que retornaram do reino dos mortos — pois assim se previne que não testemunhem aos vivos sobre o que viram. O pai digita “Como você foi ter uma família no meios desses monstros?!”, capitula, apaga e escreve apenas “Parabéns pelo bebê!”, resignado com a própria perplexidade, que não pode ter resposta à altura, e resignado com o fato de que seus desejos não são os dele. “Nunca fazemos nada pela felicidade dos outros, só pela nossa!”, tinha dito o velho da hospedaria, numa solidão quase mítica, também ela uma espécie de ruína, em resposta ao forasteiro que dizia querer a felicidade daquele a quem procurava.
Em alguns eleitores de Bolsonaro parece haver uma desistência parecida — às vezes nem atribuíam sua escolha a um ódio ao PT ou à corrupção, mas a seu modo diziam “a tudo isso aí”, e esse “isso” é muito mais do que podemos imaginar; diziam claramente que estavam fazendo uma aposta. Um deles certa vez rebateu, com a fisionomia extenuada, depois de eu perguntar se essa aposta não seria arriscada demais: “Pode ser, pode ser uma loucura, mas pra continuar essa vida não dá!”, essa vida cheia de estafa e temores. Um motorista de Uber como que acrescentou dias depois à explicação: “Que se arrebente com tudo então, eu quero algo novo”. O novo, a aposta que faziam parecia ser o último frisson ou emoção com que levantariam seu cadáver.
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